sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Anos de vitalidade teológica


Anos de vitalidade teológica


Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF

            É para mim motivo de grande alegria poder testemunhar minha presença no Departamento de Teologia da PUC-RJ num período marcado por substantiva vitalidade, nas décadas de 1970 e 1980. No momento em que este Departamento, fundado em 1968, completa 45 anos, é louvável a iniciativa de buscar recuperar essa memória e celebrar essa caminhada. No caso específico da vida desse Departamento, a luz do passado pode apontar trilhas que talvez tenham se embaraçado em décadas de uma trajetória eclesial que nem sempre favoreceu a cidadania teológica e uma presença pública destacada do teólogo não apenas no âmbito eclesial, mas também na vida da sociedade.

            Minha entrada no Departamento de Teologia ocorreu em março de 1978, depois de ter concluído os cursos de Filosofia e Ciência da Religião na Universidade Federal de Juiz de Fora. Na ocasião de minha entrada na Teologia da PUC, para cursar o mestrado, o então chefe do Departamento era o prof. Álvaro Barreiro, que respondia também pela disciplina de eclesiologia. Depois de aprovado no exame complexivo tive que fazer várias cadeiras da graduação em teologia para complementar a formação teológica. Isso se deu simultaneamente com a presença nas aulas do mestrado em teologia sistemática. Levava-se uma média de quatro anos para a conclusão do mestrado naquele tempo. E tudo deu muito certo, facultado também pela presença de um excelente orientador de trabalho que foi o jesuíta João Batista Libânio. O tema de minha dissertação expressava a atenção teológica do tempo: “Comunidade Eclesial de Base: elementos explicativos de sua gênese”, e a defesa aconteceu em fevereiro de 1982.

            A imagem que tenho da formação teológica recebida nesse período é das mais impactantes. Mesmo numa conjuntura eclesiástica local sombreada, o Departamento de Teologia da PUC-RJ favoreceu uma formação acadêmica arejada e ousada, em profunda sintonia com a teologia da libertação. O corpo docente do período era muito aberto e de grande competência tanto no âmbito da teologia bíblica como da teologia sistemática, que eram as duas áreas de concentração disponibilizadas para a formação discente. No meu caso, escolhi a formação na área de teologia sistemática e ali encontrei excelentes professores: João Batista Libânio, Clodovis Boff, Felix Pastor, Alfonso Garcia Rúbio, Ulpiano Vazquez, Carlos Palácio, Mário França de Miranda, Antônio Moser e outros. Para o enriquecimento da reflexão bíblica veio também o importante aporte das disciplinas oferecidas por Gabriel Selong. E nas cadeiras eletivas tive a presença de outros docentes, entre os quais Pedro Ribeiro de Oliveira e Francisco Cartaxo Rolim. Ou seja, um corpo docente de primeira grandeza, de presença nacional e significativa produção intelectual.

            O processo de interlocução acadêmica foi também favorecido pela presença de um corpo discente muito singular. Foi um período que propiciou, talvez de forma original no Brasil, um grupo de teólogos leigos que se firmaram no campo teológico nacional: Maria Clara Bingemer, Tereza Cavalcanti, Ana Maria Tepedino, Paulo Fernando Carneiro de Andrade, Margarida Brandão e eu também, junto com essa turma. Registro ainda a presença de outros alunos, que estavam entre nós, como os jesuítas Marcelo Perini e Inácio Neutzling – que hoje brilha no Instituto Humanitas da Unisinos. Curiosamente, num circuito eclesial mais reticente, brota um ramo teológico leigo, de formação acadêmica aperfeiçoada, com sensibilidade social aguçada e viva atuação pastoral. 

            Os temas relacionados com a teologia da libertação e a práxis pastoral na América Latina estavam presentes como luz nas disciplinas em curso naquele dinâmico período, do final dos anos 1970 e inícios de 1980. Se voltamos nosso olhar para a publicação dos docentes da PUC-RJ naquele período vislumbramos esse influxo: João Batista Libânio. Discernimento e política. Petrópolis: Vozes, 1977; Alfonso Garcia Rubio. Teologia da libertação: política ou profetismo? São Paulo: Loyola, 1977; Álvaro Barreiro. Comunidades eclesiais de base e evangelização dos pobres. São Paulo: Loyola, 1977; Clodovis Boff. Teologia e prática. Teologia do político e suas mediações. Petrópolis: Vozes, 1978; Mário de França Miranda. Libertados para a práxis da justiça. A teologia da graça no atual contexto latino-americano. São Paulo: Loyola, 1980; Félix Alexandre Pastor. O reino e a história. Problemas teóricos e práticos de uma teologia da práxis. São Paulo: Loyola, 1982; João Batista Libânio. Teologia da libertação. São Paulo: Loyola, 1987. Na própria nomenclatura de disciplinas oferecidas no mestrado estava presente essa preocupação de sintonia com o tempo, de escuta aos sinais da história: A fé e a práxis do cristão de hoje; Comunidade eclesial de base; Igreja e mundo; Religiosidade popular etc. E uma reflexão teológica que se colocava à escuta da mediação das análises sociais, entendida como exigência fundamental para a práxis da fé. A título de exemplo, sublinho a presença de Clodovis Boff e de sua instigante reflexão naquele período. Ele acabava de voltar de seu doutorado em Louvain (Bélgica), sob a orientação de Adolphe Gesché, e partilhava com seus alunos o rico resultado de seu trabalho, em torno da metodologia da teologia da libertação. O seu livro sobre o tema, Teologia e prática, virou objeto dos cursos, mas também de grupos de estudos entre os alunos da pós-graduação em teologia naquele período. As aulas fervilhavam esse entusiasmo pastoral, essa preocupação com a práxis e o desafio de um compromisso cada vez mais efetivo com o futuro da Igreja na América Latina. Tempos muito interessantes.

            No segundo semestre de 1982 interrompi o meu trabalho na PUC-Rj para fazer meu doutorado em teologia dogmática na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, sob a orientação do prof. Felix Pastor. O que ocorreu também com outros discentes da mesma instituição, como Inácio Neutzling, Paulo Fernando Carneiro de Andrade e Maria Clara Lucchetti Bingemer. Permaneci em Roma até inícios de 1986. Resolvidas algumas pendências relacionadas à minha missio canônica, retornei à PUC-RJ para o primeiro semestre letivo de 1986, assumindo também agora a docência de disciplinas nos cursos de graduação e pós-graduação em teologia. E dentre as disciplinas que recordo: Eclesiologia, Antropologia Teológica II (Teologia da graça), Teologia Moral,  Teologia do laicato, Teologia Pastoral, Comunidades eclesiais de base, Religiosidade popular, Diálogo Interreligioso, Questões de teologia pastoral e outras. 

            Registro também nesse meu novo momento de trabalho, exclusivamente na docência teológica, a riqueza e o entusiasmo do corpo discente daquele período. Além de seminaristas de dioceses do estado do Rio, como Volta Redonda, Duque de Caxias e Nova Iguaçu, um número importante de leigos atuantes em pastorais sociais e nas comunidades eclesiais de base. Tudo dava um calor muito especial às aulas e aos debates realizados. Com o tempo, o departamento também abriu suas portas para os alunos evangélicos, ampliando o campo da pluralidade nos debates e reflexões em curso. Lembro-me que foi num dos últimos cursos ministrados no departamento, no final da década de 1980, com essa riqueza plural entre os discentes, que se deu minha inscrição na reflexão sobre teologia das religiões, inaugurando uma linha de pesquisa que jamais abandonei.

            Tive também uma passagem na administração da pós-graduação em teologia, quando assumi a coordenação do mestrado e doutorado a partir de julho de 1988, ficando no cargo por quase dois anos. Foi também um trabalho muito gratificante.

            Gostaria ainda de falar de minha rica experiência com as disciplinas de cultura religiosa, que eram oferecidas para toda a comunidade da PUC-Rj. Atuei em várias dessas disciplinas: Ciência e Fé, Cristianismo, Ética Cristã e O Homem e o Fenômeno Religioso. Fui coordenador de área dessa última disciplina em dois períodos: de 1980 a 1981 e em 1987. Estava no grupo que trabalhou na elaboração temática dessa nova disciplina, que substituiu a anterior, Ciência e Fé. O acento antropológico e a abertura multidisciplinar davam o toque para a nova reflexão. O grupo de docentes que atuavam nessas disciplinas está guardado com muito carinho na memória: Fernando Soares Moreira (uma das pessoas mais generosas que conheci, e que teve um papel muito importante na minha acolhida na PUC-Rj), Teresa Cavalcanti, Juan Guervos, Rafael del Pozo, Luiz César Monnerat Tardin, Margarida Brandão e outros. Um grupo muito amigo e solidário, com uma visão teológica e pastoral muito aberta e engajada.

            Tivemos momentos difíceis nesses anos, quando alguns de nossos docentes se viram impedidos de continuar seu trabalho na PUC-Rj, em razão de procedimentos doutrinais-disciplinares. Sentimos duramente esse golpe com a saída dos professores: Clodovis Boff, Antonio Moser e Pedro Ribeiro de Oliveira. Apesar de toda reação da comunidade acadêmica e da associação de docentes (ADPUC), não houve forma de conseguir a reintegração desses professores que tanto abrilhantavam o nosso departamento. Foi talvez o lado mais sombrio do período em que atuei na instituição. Já se insinuavam no ar os primeiros efeitos da restauração romana, que a partir de então ganhará mais força por todo canto, e ela tinha fortes tentáculos na diocese do Rio de Janeiro. Graças à atuação do então chefe de departamento de teologia, o jesuíta Jesus Hortal – importante canonista -, as perdas não foram ainda maiores. Soube defender os docentes do departamento com muita garra e honestidade, garantindo a manutenção de um clima mínimo para poder se trabalhar teologicamente com dignidade. Mas aos poucos, e infelizmente, traços de controle, de auto-censura, de temor ou cuidado excessivo foram se implantando sorrateiramente na dinâmica do departamento, impedindo a continuidade daquela rica experiência primaveril vivida pelo departamento nos anos de 1970 e na década de 1980. Quero, porém, deixar aqui registrada a minha grande alegria de ter participado de momentos tão importantes, marcantes e vivos dessa linda caminhada teológica vivida pelo departamento de teologia da PUC-Rj, que considero também minha casa.

(Artigo-testemunho escrito por ocasião do evento comemorativo dos 45 anos do Departamento de Teologia da PUC-RJ. Publicado também na página da PUC-RJ


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