Em torno do “Pensamento
no Deserto” de L.F. Pondé
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
Depois de escrever o meu texto sobre L.F. Pondé[1],
voltei a retomar contato com outro livro dele, de 2009: “Do pensamento no
deserto: ensaios de filosofia, teologia e literatura” (Edusp). Debrucei-me mais
na rica e complexa introdução, que aborda a atitude teológica e no capítulo
dois, que trata “O pensamento no deserto – do método negativo em filosofia da
religião”.
Os textos confirmam os traços da reflexão que pontuei no
meu artigo. Trazem, porém, alguns outros elementos de reforço e ampliação do
posicionamento do autor. O livro é, na verdade, uma coletânea de artigos
escritos entre os anos de 2000 e 2006.
Pondé fala que esta obra é “uma espécie de acerto de contas
com uma obsessão filosófica dos últimos trinta anos”, ou seja, a sensação de
pessimismo e de “inviabilidade estrutural da espécie humana”. Pondé não se
reserva a tratar apenas da filosofia, mas também da teologia: da questão de
Deus que o tem ocupado nos últimos anos.
O especialista em epistemologia dura, com seu corolário de
ceticismo, abre-se para reconhecer algo estranho, que denomina “visitas” ou
“assaltos de Deus”. A consciência dessa presença operou para ele como “uma
espécie de ´super-ego` epistemológico”.
Sublinha que não pertence a nenhuma tradição confessional,
embora comungue de um vocabulário que se insere na tradição judaico-cristã. Seu
perfil é de filósofo, embora vague também pelos caminhos do Sinai. Por
“competência cognitiva” define-se como um trágico ou nihilista, mas percebe a
presença de brechas em sua vida onde experimenta “a fina materialidade da
beleza”, trazida pelos sopros da ortodoxia cristã, do judaísmo hassídico ou da
mística apofática.
É essa presença de Beleza, essa Visita do Mistério, que
temperam com doçura sua percepção da “dinâmica infernal do mundo”, apontando
caminhos inusitados de “transfiguração” dessa dinâmica de sub-solo.
O relato de seu itinerário intelectual-existencial aparece
no denso texto sobre o “Pensamento no deserto”. Começa falando de sua passagem
pela medicina, quando se dá conta da “efemeridade obscena de tudo que é vivo”,
do traço inevitável da impermanência, apesar de toda prática nominalista da
medicina em querer escamotear essa “dissipação inevitável”. Sublinha que
abandonou a medicina “não pelo que ela é, mas pelo que falta nela, isto é, a
capacidade de fazer daquela percepção latente uma consciência filosófica”.
Da medicina foi para a Psicanálise, quando então se deu
conta com mais força da “desqualificação ontológica do homem”. O contato com o
pensamento freudiano impediu qualquer acordo com a medicina, da qual Pondé
custava a se libertar, e o levou para os caminhos da filosofia.
Com a filosofia, o contato com Nietzsche, esse “trágico
alegre”. Não tinha ainda na ocasião um instrumental mais aprofundado para
tratar a questão da religião ou de Deus. Tudo isso se revolvia, como lembra,
naquele “beabá” da crítica à religião feita pelos mestres da suspeita. A
questão da “necessidade de Deus” revelava-se para ele como algo estranho e
distante. Os estudos de Henri Bergson abriram outras portas, levando-o a um
“desvio inesperado”, que envolvia a temática da mística. O percurso bergsoniano
significou, na verdade, um “esforço de pensar transcendentalmente”.
Essa “intrusa”, a
mística, ganhará depois um lugar
“nuclear” em sua reflexão, quando se depara com Pascal e Meister Eckhart. Como
ele mesmo sublinha, esse contato vai “redimensionar” seu pensamento. Com a
ajuda de Rosenzweig, pôde descobrir o que significou essa presença dos
“assaltos de Deus” no período de seus estudos sobre Pascal na França: “O
esforço reflexivo em se tratando do assalto que o pensamento de Deus causa no
ser humano é sempre precedido pela experiência inesperada da presença
irresistível de Deus”.
Não foi Pondé que buscou as questões da teologia, mas foram
elas que o “visitaram”, e acabaram sendo um recurso essencial para driblar sua
solidão de cético. Mas sobre essas “visitas” ele fala pouco, e novamente
Rosenzwig explica a razão para isso: “É exatamente a mesma coisa quando o homem
experimenta Deus: é incomunicável, e aquele que fala disso torna-se ridículo. A
modéstia deve cobrir como um véu esta solidão-acompanhada”.
Foi Pascal que
lançou para Pondé “as bases de uma espiritualidade em chave psicol
ógica
apofática”. E também essa consciência de que o telos essencial do ser humano só
ganha realização na medida em que ele se vê “habitado pela graça”. É o que
também diz Barth, outro autor que habita o repertório intelectual de Pondé.
Para Barth, em linha de continuidade com Paulo e Agostinho, “nada se sustenta
na forma do mundo”.
Essa entrada de Pondé na mística não se acha em contradição
com o seu ceticismo. Como ele mesmo lembra, o ceticismo – lido teologicamente
-, significa “um instante essencial em qualquer procedimento teológico
negativo: o místico conhece a epistemologia dura”. A mística respira bem essa
atmosfera de negatividade, ela lida com facilidade com a temática do vazio: o
deserto é o seu lar, como indica Pondé.
A narrativa mística expressa essa “experiência do vazio
diante Daquele que não tem nome”. A “insuficiência” revela-se, assim, como uma
“categoria essencialmente mística”. Sua gramática conhece bem o que significa
“perder-se em Deus”.
Agora uma novidade que poucos percebem: essa imersão no
vazio, essa exposição despojada no nada, acaba por provocar “uma alteração no
metabolismo do místico levando-o a théosis,
isto é, a capacidade de perceber (fisiologicamente) a presença contínua de
Deus”. Ao final de seu belo e provocante texto, Ponde sublinha: “Essa
experiência do vazio de si mesmo que retorna materializado na efemeridade de
uma voz que se repete no infinito, não é apenas signo da miséria, mas também a
possibilidade de descobrir que a travessia desse infinito da ausência de
sentido pode ser, na realidade, um método”.
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