Religião/Religiões
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
O Concílio Vaticano II significou um
passo inaugural na acolhida da diversidade religiosa. Foi a primeira vez que se
falou positivamente sobre as religiões num evento conciliar, embora de forma
cautelosa (Dupuis, 2004: 88). O pluralismo religioso vem reconhecido como um
fato importante, abrindo assim espaço para um tratamento diverso das religiões
no âmbito da igreja católica. O objetivo era criar um campo novo de abertura,
estima, compreensão e recíproca cooperação interreligiosa.
Para entender o tratamento concedido
às religiões no concílio, há que situar o contexto teológico do período. Na
ocasião, a teologia católica estava enredada numa abordagem limitada sobre as
religiões. Autores como Jean Daniélou, Henri de Lubac e Yves Congar situavam-se
numa perspectiva que veio identificada como teologia do acabamento ou da
realização. Nessa ocular, as outras religiões vinham percebidas como “marcos de
espera” ou “preparação evangélica” para a única verdadeira religião revelada
que se identificava com o cristianismo. Mesmo autores mais abertos, como Karl
Rahner, que já captavam traços de “transcendência” nas outras religiões,
mantinham-se vinculados, ainda que de forma distinta, na mesma lógica do
acabamento.
Em texto sobre a história das
religiões e a história da salvação, de 1953, Jean Daniélou traduz essa
perspectiva teológica de forma clara. As outras religiões vêm definidas como
“religiões naturais”, atestando “o movimento do homem para Deus”. O cristianismo,
ao contrário, vem reconhecido como uma religião “sobrenatural”, que revela “o
movimento de Deus para o homem”. Não se nega valor às outras religiões, mas
elas encontram o seu remate e aperfeiçoamento no cristianismo, que as “purifica
de todo erro” e “corrupção” (Daniélou, 1964: 106 e 108). Com base na reflexão
dos padres da igreja, Henri de Lubac também advoga semelhante posição, ao
entender que a igreja cristã tem a tarefa de integrar e assimilar o esforço religioso da humanidade,
complementando-o com uma purificação e
uma transfiguração. O que há de verdadeiro e bom no mundo (e nestas tradições),
“deve ser assumido e integrado na síntese cristã, onde será transfigurado” (De
Lubac, 1969: 113-115). Igualmente Yves Congar reconhece valor nas outras tradições
religiosas, e a possibilidade de salvação concedida a seus membros, mas sempre
com referência à igreja católica, enquanto instituição “divinamente instituída”
e com finalidade salvífica. Para ele, toda a presença de graça no mundo está a
ela referendada finalisticamente (Congar, 1963: 398).
É esta perspectiva teológica que
estará na base dos mais importantes textos do Concílio Vaticano II em torno das
outras religiões. Deve-se também sublinhar o esforço realizado por teólogos
como Daniélou e Henri de Lubac, peritos no concílio, de manter acesa e vigente
essa linha do acabamento. Enquanto consultor do Secretariado para os
Não-Cristãos, Henri de Lubac esforçou-se ao máximo para deslegitimar posições
que avançavam na linha do reconhecimento do valor salvífico das outras
religiões. A adoção pelo concílio do tema patrístico da “preparação evangélica”,
uma influência de De Lubac, sinaliza esse posicionamento cauteloso, que
exclui - ainda que de forma implícita –
a tese do valor salvífico das outras religiões (Morali, 1999: 257-258).
No segundo volume de seus cadernos
do concílio, De Lubac relata que o papa Paulo VI havia sugerido um estudo mais
sério do Secretariado para os Não Cristãos sobre esse candente tema. Havia uma
inquietação a respeito de teses teológicas que defendiam o lugar “ordinário”
das outras religiões no plano da salvação e o reconhecimento do cristianismo
como uma via “extraordinária” (De Lubac, 2007: 394-395; Molari, 1999: 99). Tais
teses eram defendidas por autores como Heinz Robert Schlette, em obras
publicadas durante o evento conciliar (As religiões como tema da teologia –
1963; O confronto com as religiões – 1964; Colloquium salutis. Cristãos e não
cristãos hoje - 1965). Após o concílio, em sua exortação apostólica sobre a
evangelização no mundo contemporâneo (Evangelii
Nuntiandi – 1975), Paulo VI inverte os termos, situando os itinerários
“ordinários” da salvação na igreja, ainda que reconhecendo a possibilidade
salvífica por “vias extraordinárias” que só Deus conhece (EN 80).
Em relação aos outros temas
trabalhados pelo concílio, a questão das
religiões estava ainda em estado embrionário na reflexão teológica, marcada sobretudo pela temática da salvação
dos “infiéis”. Alguns teólogos mais abertos já vislumbravam perspectivas alternativas,
mas o pensamento dominante era mais cauteloso, mesmo entre os teólogos
considerados avançados e que atuavam como peritos no concílio. No âmbito,
porém, da cúria romana e da teologia romana a visão era bem mais restritiva, e
isto refletiu nos esquemas preparatórios do concílio, elaborados sob o controle
da primeira. Tais esquemas decepcionaram pelo fechamento e restrição aos
questionamentos ecumênicos, como expressou Congar em seu diário do concílio
(Congar, 2002: 57-58). Durante todas as sessões do evento, as resistências da
minoria estarão presentes, dificultando ou bloqueando os avanços na reflexão de
abertura ecumênica e inter-religiosa.
Ao sinalizar a visão mais geral do
concílio sobre o tema das religiões,
há que sublinhar que o intento geral do Vaticano II foi pastoral, traduzindo
uma visão mais aberta sobre o mundo e mais
otimista com respeito à dinâmica de salvação. Sob esta sintonia
pastoral, a preocupação do concílio não
era tanto doutrinal, mas de promover uma mudança de perspectiva a propósito das
religiões, no sentido de uma “recíproca compreensão, estima, diálogo e
cooperação” (Dupuis, 2004: 88).
Com respeito à questão da salvação
individual, o concílio inaugura um posicionamento de singular abertura,
revelando uma novidade com respeito ao passado. Não se fala mais em
possibilidade de salvação, mas afirma-se sua realidade em virtude da presença operativa
universal do Espírito, que atua no coração de todo ser humano de boa vontade
(GS 22). Como expressou muito bem Karl Rahner, a propósito desta passagem da Gaudium
et Spes, não seria possível
encontrar no século anterior teólogos católicos capazes de tamanha ousadia (Rahner, 1994:
106). Mas o traço talvez mais inovador foi o reconhecimento de traços positivos
nas outras tradições religiosas (NA 2 e AG 3). Diante da estreiteza de
horizontes do eclesiocentrismo dominante no período, o Vaticano II inaugura um
novo momento de abertura e de reconhecimento da positividade das religiões, mas
evitou de forma deliberada um juízo teológico positivo sobre o pluralismo
religioso (Geffré, 2003: 359). O que ocorre em realidade é o reconhecimento do
pluralismo religioso “de fato”, mas não “de direito”. Apenas aflorava, na
ocasião, a tomada de consciência de que “a ´esfera espiritual´ da
humanidade não é totalmente ocupada pela
igreja e que existem também as outras religiões” em sua irredutível identidade
(Quatra, 1998: 96-97).
Para a criação de um clima de abertura às
outras religiões, há que assinalar a presença decisiva do Secretariado para a
Unidade dos Cristãos, instituído por João XXIII em junho de 1960. Em sua
presidência, o cardeal Agostinho Bea, e Johanes Willebrands, como seu primeiro
secretário. Trata-se de um organismo que gozava de grande autonomia, nascendo
fora da engessada estrutura da cúria romana, mas tendo o mesmo direito que as
outras comissões conciliares. Importantes textos relacionados ao tema das
religiões foram elaborados por este secretariado na fase preparatório do
concílio, firmando-se como fundamental “corpus
conciliare”. É o caso do Decreto Unitatis
Redintegratio (sobre o ecumenismo) e as Declarações Nostra Aetate (sobre as religiões não-cristãs) e Dignitatis Humanae (sobre a liberdade
religiosa).
Ainda que abordando o tema das
religiões de forma indireta, a Declaração Dignitatis
Humanae (DH), ocupa um dos lugares mais singulares no Concílio Vaticano II.
É um documento que abre espaço para o reconhecimento do mundo da alteridade,
fornecendo uma “cognição importantíssima” para a superação da perniciosa teoria
dos direitos exclusivos da verdade, até então proclamada pela igreja
católico-romana. Na visão de Peter Hünermann, foi um documento decisivo não
apenas para a igreja, mas para a humanidade. Os princípios ali desenvolvidos
fornecem o “pressuposto estruturante para as relações ecumênicas e para a
convivência entre as religiões” (Hünermann, 2001: 459).
Até meados do séc XIX a igreja católica
manifestava viva resistência não só com a liberdade religiosa, mas também com a
liberdade de consciência. É só verificar a encíclica Mirari vos de Gregório XVI
(1832 – DzH 2730) e o Sílabo de Pio IX (1864 – DzH 2915). O Vaticano II, com a
aprovação da declaração sobre a liberdade religiosa vira essa página,
favorecendo uma nova cognição sobre a dignidade essencial da pessoa humana.
Esta vem reconhecida como precípuo fundamento da liberdade religiosa. Uma
mudança que se expressa de forma clara no nº 3 da declaração: “Cada um tem o
dever e, por conseguinte, o direito de procurar a verdade em matéria de
religião, para que, empregando os meios apropriados, forme prudentemente para
si juízos de consciência verdadeiros e retos” (DH 3). Passagem que encontra
fina sintonia com o número 14 da encíclica Pacem
in Terris de João XXIII (DzH 3961), publicada em 1963, entre a primeira e a
segunda sessão do concílio.
Embora os anseios em favor de
mudanças importantes na igreja católica fossem partilhados por muitos bispos
conciliares, as resistências contra as mudanças eram também muito fortes. Mesmo
estando a igreja em estado de concílio, com apelos renovadores, os “mecanismos
institucionais consolidados” não estavam congelados, mas vivos e atuantes em
segmentos da minoria conciliar. É verdade que predominava no concílio uma
maioria com convicções mais arejadas, entre os cerca 2.200 padres conciliares,
mas atuava também com vigor uma minoria de aproximadamente 220 padres, alguns
dos quais pertencentes à cúria romana. Era um grupo relativamente pequeno mas
de influência importante, com a preocupação renitente de salvaguardar a
continuidade da tradição católica, em particular do Tridentino e do Vaticano I.
(Pottmeyer, 1985: 58). As resistências mais tenazes vinham dos bispos
espanhóis, italianos e membros do Coetus
Internationalis Patrum, nascido em outubro de 1963. Dentre as objeções: o
favorecimento do subjetivismo e do indiferentismo; a difusão do erro; o
enfraquecimento do zelo missionário; a excessiva ênfase concedida aos direitos
do homem em desprestígio aos direitos de Deus; a tensão com a doutrina
tradicional da igreja (Routhier, 2001: 111) Alguns dos argumentos críticos ao
esquema sobre a liberdade religiosa impressionaram o papa Paulo VI, como
aqueles expressos pelos cardeais Giuseppe Siri (arcebispo de Gênova) e Ernesto
Ruffini (arcebispo de Palermo), na linha da salvaguarda da ordu divinus e da vera
religio (Routhier, 2001:104). Como aconteceu com outros textos do concílio,
por sugestão do papa acrescentou-se no proêmio do documento uma passagem que
resguardava a continuidade da doutrina tradicional católica sobre a verdadeira
religião: “É nossa fé que essa única verdadeira Religião se encontra na Igreja
católica e apostólica, a quem o Senhor Jesus confiou a tarefa de difundi-la aos
homens todos (...)” (DH 1). A inclusão dessa reflexão na introdução da
declaração exemplifica, mais uma vez, a tendência no concílio de justapor
posições para alcançar a unanimidade nas votações. Ou seja, restringe-se o
alcance da reflexão com a inserção de textos que favorecem um compromisso. Assim
como ocorreu na declaração sobre a liberdade religiosa, Paulo VI também
intervém na redação do documento sobre ecumenismo, movido por pressões da
minoria conciliar. Das 40 emendas propostas pelo papa, 19 foram aceitas pelo
Secretariado para a Unidade dos Cristãos, encarregado da redação final. As
emendas visavam uma formulação teológica mais correta, mas na prática
implicavam uma restrição na abertura até então alcançada.
Há cerca de 34 referências às outras
religiões ou tradições religiosas no Vaticano II. Isso acontece, por exemplo,
na Constituição Dogmática Lumen Gentium,
sobre a igreja, em seu número 16, quando vem abordado o tema dos não-cristãos.
Estes vêm identificados como aqueles “que ainda não receberam o evangelho”,
estando “ordenados” de diversos modos ao
povo de Deus. Trata-se de um vocabulário que retoma a posição de Pio XII na
encíclica Mystici Corporis, de 1943,
que também falava em “ordenação” ao “Corpo místico do Redentor” de todos
aqueles que se encontravam fora da igreja visível (DzH 3821). Há um cuidado
particular em acentuar a gradualidade da pertença à igreja: os fiéis católicos
são a ela incorporados plenamente; os cristãos não católicos gozam de “certa
união verdadeira no Espírito Santo”; e os não-cristãos estão em processo de
orientação ao povo de Deus. O documento reconhece que mesmo os que não se
encontram vinculados ao cristianismo são envolvidos pelo plano de salvação,
entre os quais os judeus, reconhecidos como um “povo caríssimo segundo a
eleição”; e também os muçulmanos, que mantendo a fé de Abraão adoram o mesmo
Deus único e misericordioso. Com base na tese da vontade salvífica universal de
Deus, acentua-se a positividade soteriológica daqueles que mesmo ignorando o
evangelho “buscam a Deus com coração sincero e tentam, sob o influxo da graça,
cumprir por obras a Sua vontade conhecida através do ditame da consciência” (LG
16). Retoma-se, assim, uma tese já introduzida por Pio IX, em encíclica de 1863
(DzH 2866) e resgatada posteriormente na carta enviada pelo Santo Ofício ao
arcebispo de Boston, em outubro de 1949, condenando a posição rígida de Leonard
Feeney, que exigia como condição para a salvação a pertença à igreja (DzH
3870).
Há um extremo cuidado no tratamento
dessa questão, e uma preocupação de não quebrar a continuidade com o pensamento
da tradição. Recorre-se também à teologia dos padres da igreja, em particular
Eusébio de Cesaréia, com a introdução da categoria “preparação evangélica”,
como instrumento para avaliar o que há “de bom e verdadeiro” entre aqueles que
não comungam o “conhecimento expresso de Deus”. É nítida a proximidade com a
linha de reflexão da teologia do acabamento, sobretudo com o pensamento de Henri de Lubac e Congar. Predomina a ideia
das religiões como “busca” humana de Deus. Elas partilham traços positivos, que
devem, porém, ser “sanados, elevados e aperfeiçoados” pela igreja (LG 17 e AG 9).
Ela, a igreja, é para a LG a verdadeira via, garantida por Deus em Cristo. O
Concílio reconhece, por um lado, a presença e a ação da graça nas outras
religiões; mas confirma, por outro, a unicidade da via representada por Cristo,
para a qual devem direcionar as diversas tradições. Deixa, porém, em aberto a
resolução de uma delicada questão: se as outras religiões gozam de uma
“fecundidade salvífica”; se seus membros alcançam a salvação na prática mesma
de suas próprias tradições (Sesboüé, 2004: 241).
O tema da “preparação evangélica” ou
de uma “pedagogia” para a realização das outras religiões vem retomado no
Decreto Ad Gentes, sobre a atividade
missionária da igreja. O documento não desconhece a ação operativa do Espírito
Santo entre os povos, culturas e religiões, mesmo antes da presença de Cristo
(AG 4). Essa “secreta presença de Deus” nas nações vem reconhecida, com seus traços
de “verdade” e “graça” (AG 9). São inúmeras as “riquezas” prodigalizadas aos
povos pelo Deus munificiente (AG 11), manifestadas não apenas no mundo
interior, mas vivificadas na objetividade das iniciativas religiosas (AG 3) e
nas tradições ascéticas e contemplativas (AG 18). Reforça-se, porém, a ideia de
um plano divino de acomodação eclesial daqueles que buscam a Deus “mesmo às
apalpadelas” (AG 3). A atividade missionária vem inserida nesse “plano”, com seu
intento evangelizador. Aponta-se a possibilidade da misteriosa ação
soteriológica de Deus, por “caminhos d´Ele conhecidos”, mas garante-se a
centralidade da igreja, como instituição necessária da salvação (AG 7).
A constituição pastoral sobre a
igreja, Gaudium et Spes, traz como
contribuição um olhar otimista sobre a presença universal da ação do Espírito,
com precisas repercussões no campo da relação do cristianismo com as outras
religiões. Em célebre passagem, o documento reconhece a presença operativa da
graça em todos os homens de boa vontade, em cujos corações atua de forma
misteriosa a ação do Espírito, favorecendo um vínculo essencial com o mistério
pascal (GS 22). O que antes na igreja se afirmava com cautela e prudência, como
campo de possibilidade, vem agora indicado com convicção novidadeira: a vontade
salvífica universal como traço concreto, em ação nas pessoas. Firmam-se as
bases para uma nova compreensão do pluralismo religioso, inserido agora num
misterioso desígnio que a todos escapa, exceto Deus (Geffré, 2003: 361).
Permanece, assim, resguardado o mistério e o enigma das riquezas escondidas por
Deus na criação e na história. É um momento luminoso do Vaticano II.
De todos os documentos do concílio
que tratam das religiões, a Declaração Nostra Aetate, sobre as relações da igreja com as religiões
não cristãs, é aquele que expressou de forma mais positiva a perspectiva de
abertura às religiões, sintonizada com a lógica pastoral do concílio. Há, de um
lado, um aspecto extremamente positivo na Declaração, voltado para o
compromisso ético e empenhativo da igreja católica em favor de um novo caminho relacional entre
as religiões, de superação dos preconceitos e divisões e de construção de uma
nova conversação. Mas de outro lado, uma carência de perspectiva teológica mais
arrojada sobre as religiões (Geffré,
2004: 133).
Um momento importante na gênese do documento foi o encontro
de João XXIII com Jules Isaac em junho de 1960. O historiador judeu
sensibilizara-se com o gesto de João XXIII de abolir em 1959 as fórmulas
negativas presentes no ritual romano sobre os judeus e muçulmanos, até então
definidos como “pérfidos”. Até o memorável encontro não estava nos planos do
papa a previsão de uma reflexão do concílio sobre o tema do judaísmo e do anti-semitismo
e muito menos de um documento sobre as outras religiões. Do encontro surgiu uma
esperança que se concretizou em setembro, quando então João XXIII designou o
presidente do Secretariado para a União dos Cristãos, cardeal Bea, para a
tarefa de preparar uma declaração sobre o povo judeu. O esquema ficou
substancialmene pronto em maio de 1962. Em razão da delicada situação política
do Oriente Médio, foi apresentado só mais tarde em novembro de 1963 pelo
cardeal Bea, como capítulo quarto do esquema mais amplo do ecumenismo, versando sobre a relação dos católicos com os
não cristãos e em particular os judeus. Embora o título do esquema fosse mais
vasto, a parte substantiva do documento visava os judeus. As reações ao
documento já começaram fortes na ocasião. O texto foi reapresentado em setembro
de 1964, agora separado do esquema do ecumenismo, mas ainda dedicado sobretudo
aos judeus. Nova mudança ocorreu, posteriormente, sob o impulso e reivindicação
de alguns bispos de regiões de prevalência não cristã, que manifestavam o
desejo de uma declaração de caráter mais ampliado, que pudesse acolher outras
tradições religiosas, além do judaísmo. O novo texto foi apresentado pelo
cardeal Bea em 20 de novembro de 1964, que ressaltou o dado pioneiro do
tratamento da questão na história da igreja. Como reforço para a nova
perspectiva contribuíram também outros fatores como a criação do Secretariado
para os Não Crentes (1964), a publicação da encíclica Ecclesiam suam
(1964) e a visita do papa à Índia (1964) (Dupuis, 2004: 88-89) . Assim nasce a
breve Declaração Nostra Aetate, voltada agora para a relação da igreja
com as religiões não cristãs.
A Declaração Nostra Aetate foi um “divisor de águas”
no modo de abordagem cristã da questão das outras religiões. Mediante uma
clareza desconhecida anteriormente em textos do magistério, explicita-se uma
relação novidadeira da igreja com as outras religiões. Há em particular uma
mudança na forma de tratamento. Vigora o respeito e a acolhida.
Em ordem inversa à trabalhada na Lumen Gentium, a Declaração Nostra Aetate parte da religiosidade
humana em geral. Reconhece que todos os povos formam “uma só comunidade”, tendo
como origem e horizonte o mesmo Deus de bondade (NA 1). As religiões são vistas
como instrumentos que favorecem aos homens respostas profundas a seus enigmas.
Assim ocorre com hinduísmo, com o budismo e as demais religiões. Constituem
modos plurais de resposta à “inquietação do espírito humano”. A declaração trata
com respeito e estima a tradição judaica, a riqueza de seu “patrimônio
espiritual”, e recorda o vínculo fundamental que une esta tradição ao
cristianismo (NA 4). Vislumbra também “com carinho” a religião dos muçulmanos,
que alimenta laços comuns com o cristianismo na veneração ao mesmo Deus vivo e
misericordioso, e exorta os cristãos a superar as dissensões e buscar uma mútua
compreensão (NA 3). Visando uma ética do diálogo, o documento assinala que “a
igreja católica nada rejeita do que há de verdadeiro e santo nestas religiões”,
mas dispõe-se a acolher com atenção seus “modos de agir e viver”, propondo-se a
um diálogo e cooperação com seus seguidores (NA 2). Excluindo toda perspectiva
discriminatória, o documento reitera ao final que não há como “invocar a Deus
como Pai de todos” recusando o tratamento fraterno àqueles que foram criados à
imagem de Deus (NA 5).
Como em todos os textos do Vaticano
II, percebe-se na declaração reverberações de uma teologia do acabamento. O
juízo salutar acerca das outras religiões não vem acompanhado de uma reflexão
acolhedora e explícita sobre os traços positivos que envolvem estas religiões,
objetivamente, no Mistério salvífico de Deus. O acento recai mais sobre “as
intenções subjetivas dos membros das outras religiões, sem levar a sério o
desafio colocado à fé cristã pela pluralidade das tradições religiosas,
considerada na sua positividade histórica” (Geffré, 2003: 356). Vigora nos
documentos, com raras exceções, a perspectiva apontada na Lumen Gentium 16 ou na Ad
Gentes 3, onde as distintas tradições religiosas vêm situadas como “marcos
de espera” ou “preparação evangélica” para seu remate na tradição cristã. Há
que assinalar por fim outra questão que é grave, a respeito da linguagem
utilizada para abordar os membros das outras tradições religiosas. Trata-se de
um vocabulário ainda refém de uma perspectiva deletéria ou nociva com relação aos
outros: “não crentes”, “não-católicos”, “não-cristãos”, “irmãos separados”. No
Decreto sobre ecumenismo, Unitatis
Redintegratio, evita-se nomear como igrejas as comunidades cristãs não
católicas, identificando-as como “comunidades eclesiais”. Jaques Dupuis chama a
atenção para esse grave problema e assinala: “Deve-se chamar as pessoas a
partir da própria autocompreensão, não a partir de uma compreensão estranha,
com frequência preconceituosa” (Dupuis, 2004: 23). Os bispos asiáticos, mais
experimentados na prática dialogal tendem a chamar os membros das outras
tradições religiosas de “amigos”, instaurando uma perspectiva distinta e
hospitaleira. Permanece, porém, aceso o desafio de uma acolhida mais profunda e
rica da diversidade religiosa no âmbito da tradição católica. O Concílio
Vaticano II foi um primeiro passo.
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