O caminho luminoso de Etty
Hillesum
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
Em minhas pesquisas sobre os buscadores do diálogo e os
luminares do Mistério, a presença irradiadora de Etty Hillesum (1914-1943) brilha de forma singular. Em janeiro de 2014
ela estaria completando 100 anos. Ainda pouco conhecida no Brasil, suas
reflexões e experiência mística vão ganhando lugar em várias partes do mundo.
Seu volumoso diário, com quase mil páginas, e a edição integral de suas cartas,
foram publicados recentemente na Itália (editora Adelphi – 2012 e 2013). Parte
do diário e uma seleção das cartas foram igualmente publicadas em Portugal, em
2008 e 2009, pela editora Assírio & Alvim.
Com o acesso a esse rico acervo espiritual, conseguimos
delinear a vida e a presença de um caminho singular de busca do mistério,
brotados na vida de uma jovem holandesa que deixou como herança uma das mais
lindas experiências de Deus do século XX. Sua trajetória espiritual foi provada
pela dura experiência da perseguição nazista, dos sofrimentos vividos num campo
de concentração (Westerbork – Holanda) e a morte prematura em Auschwitz, na
Polônia.
O segredo que animou a vida dessa jovem, ajudando-a a
enfrentar com altivez e alegria todos os sofrimentos que marcaram sua caminhada,
foi a experiência interior. Encontrou ao longo de sua trajetória alguns amigos
que foram fundamentais para o seu amadurecimento, através da presença, do
aconselhamento e do apoio emocional. Dentre eles, Julius Spier, que tinha sido
aluno de Carl Gustav Jung, e com o qual viveu um romance marcado por muita
intensidade.
O diário de Etty Hillesum foi iniciado em março de 1941,
quando a jovem tinha 27 anos, e a Holanda já tinha sido invadida pelos nazistas.
Um trabalho redacional animado por singular “fogo interior”, com páginas de
impressionante vitalidade e copiosidade. Era também uma forma de organizar o
seu mundo particular e encontrar as diretrizes para a sua busca luminosa da
verdade. Talvez como parte de seu processo terapêutico, ela reforçava a
importância da experiência interior. Falava em página de seu diário, em 08 de
junho de 1941, sobre o desafio de “submergir” a cada manhã, por meia hora, no
intuito de escutar aquilo que ocorria dentro de si. Não falava, propriamente,
em meditação, mas em fazer silêncio
dentro de si. Nessa prática cotidiana foi criando forças e raízes para
enfrentar as dificuldades que viriam. Aos poucos foi nomeando com mais clareza
o nome dessa presença: “Encontrei o contato comigo mesma, com a parte melhor e
mais profunda de meu ser, aquela que chamo Deus (10/08/1941). Em todo o seu
processo de amadurecimento tinha uma grande clareza: ser fiel a si mesma.
A situação se agrava para ela e sua família, sobretudo após
1942, com a intensificação da perseguição nazista aos judeus holandeses. Ela
testemunha em seu diário:
“Como isto é estranho. Há a
guerra. Há campos de concentração. Pequenas crueldades amontoam-se em cima de
pequenas crueldades. Quando caminho pelas ruas, sei que, em muitas das casas
por onde passo, há ali um filho que está preso, e ali o pai está refém, e ali
têm de suportar a condenação à morte de um filho de dezoito anos” (30/05/1942)
Mesmo consciente de toda essa dor, participando da tensão
das pessoas e do grande sofrimento humano, mantinha viva a esperança:
“Sei de tudo isso e continuo a
enfrentar cada pedaço da realidade que se me impõe. E no entanto – num momento
inesperado, abandonada a mim própria – encontro-me de repente encostada ao
peito nu da Vida e os braços dela são muito macios e envolvem-me de modo muito
protetor, e nem sequer consigo descrever o bater do coração: tão lento e
regular e tão suave, quase abafado, mas tão fiel, como se nunca mais findasse,
e também tão bondoso e compassivo” (30/05/1942)
Seus familiares e
amigos foram sendo transferidos progressivamente para Westerbock, que a partir
de julho de 1942, transforma-se num campo de trânsito, que em verdade era a
última parada para cem mil judeus holandeses antes de Auschwitz. Etty vai trabalhar,
por indicação do Conselho Hebraico, nesse espaço sombrio, no departamento de
ajuda social às pessoas em trânsito. Ali passa a testemunhar um mundo de dor. E
nessa situação vai acompanhar, com espanto e dor, o processo de deportação de
tantos amigos para o destino final: “Entre julho de 1942 a setembro de 1944, a
cada semana, foram cerca de noventa e três trens carregados de judeus com o
sombrio destino da morte”. Em página de seu diário, com data de 12 de julho de
1942, ela sublinha:
“São tempos temerosos, meu Deus.
Esta noite, pela primeira vez, passei-a deitada no escuro de olhos abertos e a
arder, e muitas imagens do sofrimento humano desfilavam perante mim. Vou
prometer-te uma coisa, Deus, só uma ninharia: não irei sobrecarregar o dia de
hoje com igual número de preocupações em relação ao futuro, mas isso custa um
certo exercício. Cada dia já tem a sua conta. Vou ajudar-te, Deus, a não me
abandonares, apesar de eu não poder garantir nada com antecedência”.
Diante da tremenda realidade do campo de
trânsito, como a falta de espaço, as péssimas condições de higiene e as doenças
que se acumulavam, Etty enfrentava essa “via
crucis” sem perder jamais a esperança, sempre entoando o seu mote
preferido: “A vida é bela”. Cada vez mais consciente da proximidade da morte
dizia: “trazemos tudo dentro de nós, Deus e o céu e o inferno e a terra e a
vida e a morte e os séculos, tantos séculos”. Vive a consciência da perfeita
integração da morte em sua vida, e acrescenta: “Parece quase um paradoxo: se se
exclui a morte não se tem jamais uma vida completa” (03/07/1942). A presença da
dor e consciência da finitude não provocam nela o desânimo, mas sente-se ainda
mais forte.
Foi ali em Westerbork que Etty Hillesum
pôde mostrar toda a força e o potencial de sua esperança. Suas vivas reservas
interiores tinham sido reforçadas antes, num trabalho pessoal de harmonização.
Veio familiarizando-se com essa escuta interior, esta atenção ao mundo da
profundidade (Hineinhorchen), uma
atenção generosa que penetrava o coração das coisas. Do mundo interior
irrompiam “nascentes escondidas”, que a fortaleciam e revigoravam. Tudo era
motivo desse diálogo lindo com Deus, que fazia parte de seu cotidiano:
“Como vês, trato bem de ti. Não te
trago somente minhas lágrimas e pressentimentos temerosos, até te trago, nesta
tempestuosa e parda manhã de domingo, jasmim perfumado. E hei de trazer-te
todas as flores que encontre pelo caminho, meu Deus, e a sério que são muitas.
Hás de ficar sinceramente tão bem instalado em minha casa quanto é possível. E
já agora para te dar um exemplo ao acaso: se eu estivesse encerrada numa cela
acanhada e uma nuvem passasse ao longo da minha janela gradeada, então eu iria
trazer-te essa nuvem, meu Deus, se pelo menos ainda tivesse forças para isso”
(12/07/1942).
Em seu coração generoso, habitado por
todas as paisagens, a esperança era a voz mais forte. Dizia que enquanto
houvesse um pedaço de céu para poder olhar e um espaço interior para unir as
mãos em oração, a vida seguiriam em frente, com alegria. Tinha a consciência
acesa da presença de Deus e que estava generosamente em suas mãos. E do fundo
da noite conseguia vislumbrar que apesar de tudo a vida era “uma coisa
esplêndida e grande”, movida por um “ritmo mais profundo”. e que um mundo novo
estava por vir.
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