A fragrância da espiritualidade
Faustino Teixeira
A questão da espiritualidade vem
ganhando a cada dia uma compreensão mais rica e ampla. Distingue-se claramente
da religião. Esta é um “sistema solidário de crenças e de práticas relativas a
coisas sagradas” (Durkheim). Um empreendimento coletivo, envolvendo a presença
de uma comunidade moral. A espiritualidade, por sua vez, está relacionado a
“qualidades do espírito humano”, como tão bem mostrou Dalai Lama em obra sobre
a ética para o novo milênio (1999). Todo ser humano é capaz de desenvolver tais
qualidades como o amor, a compaixão, a hospitalidade, a atenção, o cuidado e a
delicadeza, sem recorrer necessariamente a um sistema religioso. Não há por que
concentrar na religião esse monopólio da espiritualidade. Trata-se de um dado
essencial para quem quer se adentrar nesse desafiante campo. A espiritualidade
requer, assim, o cultivo de uma dimensão fundamental que trata da interioridade
do ser humano, ou seja, de “expansão de vitalidade” e qualidade de vida. A
espiritualidade suscita o despertar de energias originárias que estão no rincão
mais íntimo do ser humano, e que dizem respeito a ele “de forma última”. O
cultivo da espiritualidade, entendida como movimento e caminho para a
experiência do Real, exige do sujeito uma dinâmica particular de despojamento e
interiorização. Há que romper com um modo habitual e rotineiro de ser e
deixar-se tocar pelos apelos da profundidade. Não se trata de uma viagem
tranquila, mas de uma “saída” para dentro de si mesmo, e um retornar ao tempo
transformado. Para viver a intensidade desta experiência firmam-se algumas
disposições precisas, como o exercício do despojamento, humildade e purificação
do coração. Há que deslocar o ego de sua centralidade, reconhecendo a dinâmica
humana essencial em sua contingência e vulnerabilidade. Animado por tais
energias espirituais, o ser humano vem disponibilizado a assumir no tempo um
modo de ser distinto, pontuado por um “desaforado amor pelo todo”. A espiritualidade
não desloca ninguém da história, mas suscita uma sede peculiar de adentrar-se
vivamente em suas entranhas. Deixar-se habitar pela dinâmica espiritual é
assumir a experiência integral da vida ou da realidade. É uma experiência
holística essencial. O toque da espiritualidade incide na acolhida do cotidiano
em sua elementar maravilha. Como diz um mestre zen, “se os nossos olhos são
novos, todas as coisas revelam-se igualmente novas em cada momento”. A
peculiaridade está no exercício do respiro da vida e a atenção desperta para os
pequenos sinais do cotidiano. Deixar-se habitar pela atmosfera da
espiritualidade é criar um espaço garantido e especial para as fragrâncias da
profundidade. Os frutos vão surgindo naturalmente, irrompendo de dentro e
atuando nas diversas direções, como bem mostrou Leonardo Boff. É uma paz
espiritual que irradia, qualificando as relações e despertando energias
secretas: algo que “alimenta o amor, o cuidado, a vontade de acolher e de ser
acolhido, de compreender e de ser compreendido, de perdoar e de ser perdoado”.
A prática da justiça e do amor ao próximo desabrocham como as flores irrigadas
pela chuva, naturalmente, quando suscitadas na experiência fontal da sintonia
com o grande Mistério.
(Publicado
no Jornal O Povo, Fortaleza, de 03 de maio de 2014:
http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2014/05/03/noticiasjornalopiniao,3245266/a-fragrancia-da-espiritualidade.shtml
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