sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Anos de vitalidade teológica


Anos de vitalidade teológica


Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF

            É para mim motivo de grande alegria poder testemunhar minha presença no Departamento de Teologia da PUC-RJ num período marcado por substantiva vitalidade, nas décadas de 1970 e 1980. No momento em que este Departamento, fundado em 1968, completa 45 anos, é louvável a iniciativa de buscar recuperar essa memória e celebrar essa caminhada. No caso específico da vida desse Departamento, a luz do passado pode apontar trilhas que talvez tenham se embaraçado em décadas de uma trajetória eclesial que nem sempre favoreceu a cidadania teológica e uma presença pública destacada do teólogo não apenas no âmbito eclesial, mas também na vida da sociedade.

            Minha entrada no Departamento de Teologia ocorreu em março de 1978, depois de ter concluído os cursos de Filosofia e Ciência da Religião na Universidade Federal de Juiz de Fora. Na ocasião de minha entrada na Teologia da PUC, para cursar o mestrado, o então chefe do Departamento era o prof. Álvaro Barreiro, que respondia também pela disciplina de eclesiologia. Depois de aprovado no exame complexivo tive que fazer várias cadeiras da graduação em teologia para complementar a formação teológica. Isso se deu simultaneamente com a presença nas aulas do mestrado em teologia sistemática. Levava-se uma média de quatro anos para a conclusão do mestrado naquele tempo. E tudo deu muito certo, facultado também pela presença de um excelente orientador de trabalho que foi o jesuíta João Batista Libânio. O tema de minha dissertação expressava a atenção teológica do tempo: “Comunidade Eclesial de Base: elementos explicativos de sua gênese”, e a defesa aconteceu em fevereiro de 1982.

            A imagem que tenho da formação teológica recebida nesse período é das mais impactantes. Mesmo numa conjuntura eclesiástica local sombreada, o Departamento de Teologia da PUC-RJ favoreceu uma formação acadêmica arejada e ousada, em profunda sintonia com a teologia da libertação. O corpo docente do período era muito aberto e de grande competência tanto no âmbito da teologia bíblica como da teologia sistemática, que eram as duas áreas de concentração disponibilizadas para a formação discente. No meu caso, escolhi a formação na área de teologia sistemática e ali encontrei excelentes professores: João Batista Libânio, Clodovis Boff, Felix Pastor, Alfonso Garcia Rúbio, Ulpiano Vazquez, Carlos Palácio, Mário França de Miranda, Antônio Moser e outros. Para o enriquecimento da reflexão bíblica veio também o importante aporte das disciplinas oferecidas por Gabriel Selong. E nas cadeiras eletivas tive a presença de outros docentes, entre os quais Pedro Ribeiro de Oliveira e Francisco Cartaxo Rolim. Ou seja, um corpo docente de primeira grandeza, de presença nacional e significativa produção intelectual.

            O processo de interlocução acadêmica foi também favorecido pela presença de um corpo discente muito singular. Foi um período que propiciou, talvez de forma original no Brasil, um grupo de teólogos leigos que se firmaram no campo teológico nacional: Maria Clara Bingemer, Tereza Cavalcanti, Ana Maria Tepedino, Paulo Fernando Carneiro de Andrade, Margarida Brandão e eu também, junto com essa turma. Registro ainda a presença de outros alunos, que estavam entre nós, como os jesuítas Marcelo Perini e Inácio Neutzling – que hoje brilha no Instituto Humanitas da Unisinos. Curiosamente, num circuito eclesial mais reticente, brota um ramo teológico leigo, de formação acadêmica aperfeiçoada, com sensibilidade social aguçada e viva atuação pastoral. 

            Os temas relacionados com a teologia da libertação e a práxis pastoral na América Latina estavam presentes como luz nas disciplinas em curso naquele dinâmico período, do final dos anos 1970 e inícios de 1980. Se voltamos nosso olhar para a publicação dos docentes da PUC-RJ naquele período vislumbramos esse influxo: João Batista Libânio. Discernimento e política. Petrópolis: Vozes, 1977; Alfonso Garcia Rubio. Teologia da libertação: política ou profetismo? São Paulo: Loyola, 1977; Álvaro Barreiro. Comunidades eclesiais de base e evangelização dos pobres. São Paulo: Loyola, 1977; Clodovis Boff. Teologia e prática. Teologia do político e suas mediações. Petrópolis: Vozes, 1978; Mário de França Miranda. Libertados para a práxis da justiça. A teologia da graça no atual contexto latino-americano. São Paulo: Loyola, 1980; Félix Alexandre Pastor. O reino e a história. Problemas teóricos e práticos de uma teologia da práxis. São Paulo: Loyola, 1982; João Batista Libânio. Teologia da libertação. São Paulo: Loyola, 1987. Na própria nomenclatura de disciplinas oferecidas no mestrado estava presente essa preocupação de sintonia com o tempo, de escuta aos sinais da história: A fé e a práxis do cristão de hoje; Comunidade eclesial de base; Igreja e mundo; Religiosidade popular etc. E uma reflexão teológica que se colocava à escuta da mediação das análises sociais, entendida como exigência fundamental para a práxis da fé. A título de exemplo, sublinho a presença de Clodovis Boff e de sua instigante reflexão naquele período. Ele acabava de voltar de seu doutorado em Louvain (Bélgica), sob a orientação de Adolphe Gesché, e partilhava com seus alunos o rico resultado de seu trabalho, em torno da metodologia da teologia da libertação. O seu livro sobre o tema, Teologia e prática, virou objeto dos cursos, mas também de grupos de estudos entre os alunos da pós-graduação em teologia naquele período. As aulas fervilhavam esse entusiasmo pastoral, essa preocupação com a práxis e o desafio de um compromisso cada vez mais efetivo com o futuro da Igreja na América Latina. Tempos muito interessantes.

            No segundo semestre de 1982 interrompi o meu trabalho na PUC-Rj para fazer meu doutorado em teologia dogmática na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, sob a orientação do prof. Felix Pastor. O que ocorreu também com outros discentes da mesma instituição, como Inácio Neutzling, Paulo Fernando Carneiro de Andrade e Maria Clara Lucchetti Bingemer. Permaneci em Roma até inícios de 1986. Resolvidas algumas pendências relacionadas à minha missio canônica, retornei à PUC-RJ para o primeiro semestre letivo de 1986, assumindo também agora a docência de disciplinas nos cursos de graduação e pós-graduação em teologia. E dentre as disciplinas que recordo: Eclesiologia, Antropologia Teológica II (Teologia da graça), Teologia Moral,  Teologia do laicato, Teologia Pastoral, Comunidades eclesiais de base, Religiosidade popular, Diálogo Interreligioso, Questões de teologia pastoral e outras. 

            Registro também nesse meu novo momento de trabalho, exclusivamente na docência teológica, a riqueza e o entusiasmo do corpo discente daquele período. Além de seminaristas de dioceses do estado do Rio, como Volta Redonda, Duque de Caxias e Nova Iguaçu, um número importante de leigos atuantes em pastorais sociais e nas comunidades eclesiais de base. Tudo dava um calor muito especial às aulas e aos debates realizados. Com o tempo, o departamento também abriu suas portas para os alunos evangélicos, ampliando o campo da pluralidade nos debates e reflexões em curso. Lembro-me que foi num dos últimos cursos ministrados no departamento, no final da década de 1980, com essa riqueza plural entre os discentes, que se deu minha inscrição na reflexão sobre teologia das religiões, inaugurando uma linha de pesquisa que jamais abandonei.

            Tive também uma passagem na administração da pós-graduação em teologia, quando assumi a coordenação do mestrado e doutorado a partir de julho de 1988, ficando no cargo por quase dois anos. Foi também um trabalho muito gratificante.

            Gostaria ainda de falar de minha rica experiência com as disciplinas de cultura religiosa, que eram oferecidas para toda a comunidade da PUC-Rj. Atuei em várias dessas disciplinas: Ciência e Fé, Cristianismo, Ética Cristã e O Homem e o Fenômeno Religioso. Fui coordenador de área dessa última disciplina em dois períodos: de 1980 a 1981 e em 1987. Estava no grupo que trabalhou na elaboração temática dessa nova disciplina, que substituiu a anterior, Ciência e Fé. O acento antropológico e a abertura multidisciplinar davam o toque para a nova reflexão. O grupo de docentes que atuavam nessas disciplinas está guardado com muito carinho na memória: Fernando Soares Moreira (uma das pessoas mais generosas que conheci, e que teve um papel muito importante na minha acolhida na PUC-Rj), Teresa Cavalcanti, Juan Guervos, Rafael del Pozo, Luiz César Monnerat Tardin, Margarida Brandão e outros. Um grupo muito amigo e solidário, com uma visão teológica e pastoral muito aberta e engajada.

            Tivemos momentos difíceis nesses anos, quando alguns de nossos docentes se viram impedidos de continuar seu trabalho na PUC-Rj, em razão de procedimentos doutrinais-disciplinares. Sentimos duramente esse golpe com a saída dos professores: Clodovis Boff, Antonio Moser e Pedro Ribeiro de Oliveira. Apesar de toda reação da comunidade acadêmica e da associação de docentes (ADPUC), não houve forma de conseguir a reintegração desses professores que tanto abrilhantavam o nosso departamento. Foi talvez o lado mais sombrio do período em que atuei na instituição. Já se insinuavam no ar os primeiros efeitos da restauração romana, que a partir de então ganhará mais força por todo canto, e ela tinha fortes tentáculos na diocese do Rio de Janeiro. Graças à atuação do então chefe de departamento de teologia, o jesuíta Jesus Hortal – importante canonista -, as perdas não foram ainda maiores. Soube defender os docentes do departamento com muita garra e honestidade, garantindo a manutenção de um clima mínimo para poder se trabalhar teologicamente com dignidade. Mas aos poucos, e infelizmente, traços de controle, de auto-censura, de temor ou cuidado excessivo foram se implantando sorrateiramente na dinâmica do departamento, impedindo a continuidade daquela rica experiência primaveril vivida pelo departamento nos anos de 1970 e na década de 1980. Quero, porém, deixar aqui registrada a minha grande alegria de ter participado de momentos tão importantes, marcantes e vivos dessa linda caminhada teológica vivida pelo departamento de teologia da PUC-Rj, que considero também minha casa.

(Artigo-testemunho escrito por ocasião do evento comemorativo dos 45 anos do Departamento de Teologia da PUC-RJ. Publicado também na página da PUC-RJ


sábado, 21 de setembro de 2013

Em torno do "Pensamento no Deserto" de L.F. Pondé


Em torno do “Pensamento no Deserto” de L.F. Pondé

Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF

Depois de escrever o meu texto sobre L.F. Pondé[1], voltei a retomar contato com outro livro dele, de 2009: “Do pensamento no deserto: ensaios de filosofia, teologia e literatura” (Edusp). Debrucei-me mais na rica e complexa introdução, que aborda a atitude teológica e no capítulo dois, que trata “O pensamento no deserto – do método negativo em filosofia da religião”.

Os textos confirmam os traços da reflexão que pontuei no meu artigo. Trazem, porém, alguns outros elementos de reforço e ampliação do posicionamento do autor. O livro é, na verdade, uma coletânea de artigos escritos entre os anos de 2000 e 2006.

Pondé fala que esta obra é “uma espécie de acerto de contas com uma obsessão filosófica dos últimos trinta anos”, ou seja, a sensação de pessimismo e de “inviabilidade estrutural da espécie humana”. Pondé não se reserva a tratar apenas da filosofia, mas também da teologia: da questão de Deus que o tem ocupado nos últimos anos.

O especialista em epistemologia dura, com seu corolário de ceticismo, abre-se para reconhecer algo estranho, que denomina “visitas” ou “assaltos de Deus”. A consciência dessa presença operou para ele como “uma espécie de ´super-ego` epistemológico”.

Sublinha que não pertence a nenhuma tradição confessional, embora comungue de um vocabulário que se insere na tradição judaico-cristã. Seu perfil é de filósofo, embora vague também pelos caminhos do Sinai. Por “competência cognitiva” define-se como um trágico ou nihilista, mas percebe a presença de brechas em sua vida onde experimenta “a fina materialidade da beleza”, trazida pelos sopros da ortodoxia cristã, do judaísmo hassídico ou da mística apofática.

É essa presença de Beleza, essa Visita do Mistério, que temperam com doçura sua percepção da “dinâmica infernal do mundo”, apontando caminhos inusitados de “transfiguração” dessa dinâmica de sub-solo.

O relato de seu itinerário intelectual-existencial aparece no denso texto sobre o “Pensamento no deserto”. Começa falando de sua passagem pela medicina, quando se dá conta da “efemeridade obscena de tudo que é vivo”, do traço inevitável da impermanência, apesar de toda prática nominalista da medicina em querer escamotear essa “dissipação inevitável”. Sublinha que abandonou a medicina “não pelo que ela é, mas pelo que falta nela, isto é, a capacidade de fazer daquela percepção latente uma consciência filosófica”.

Da medicina foi para a Psicanálise, quando então se deu conta com mais força da “desqualificação ontológica do homem”. O contato com o pensamento freudiano impediu qualquer acordo com a medicina, da qual Pondé custava a se libertar, e o levou para os caminhos da filosofia.

Com a filosofia, o contato com Nietzsche, esse “trágico alegre”. Não tinha ainda na ocasião um instrumental mais aprofundado para tratar a questão da religião ou de Deus. Tudo isso se revolvia, como lembra, naquele “beabá” da crítica à religião feita pelos mestres da suspeita. A questão da “necessidade de Deus” revelava-se para ele como algo estranho e distante. Os estudos de Henri Bergson abriram outras portas, levando-o a um “desvio inesperado”, que envolvia a temática da mística. O percurso bergsoniano significou, na verdade, um “esforço de pensar transcendentalmente”.

 Essa “intrusa”, a mística,  ganhará depois um lugar “nuclear” em sua reflexão, quando se depara com Pascal e Meister Eckhart. Como ele mesmo sublinha, esse contato vai “redimensionar” seu pensamento. Com a ajuda de Rosenzweig, pôde descobrir o que significou essa presença dos “assaltos de Deus” no período de seus estudos sobre Pascal na França: “O esforço reflexivo em se tratando do assalto que o pensamento de Deus causa no ser humano é sempre precedido pela experiência inesperada da presença irresistível de Deus”.

Não foi Pondé que buscou as questões da teologia, mas foram elas que o “visitaram”, e acabaram sendo um recurso essencial para driblar sua solidão de cético. Mas sobre essas “visitas” ele fala pouco, e novamente Rosenzwig explica a razão para isso: “É exatamente a mesma coisa quando o homem experimenta Deus: é incomunicável, e aquele que fala disso torna-se ridículo. A modéstia deve cobrir como um véu esta solidão-acompanhada”.

 Foi Pascal que lançou para Pondé “as bases de uma espiritualidade em chave psicolgic﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽e uma espiritualidade em chave psicola razr nsamento de Deus causa no ser humano  "s portas, levando-o a um "ógica apofática”. E também essa consciência de que o telos essencial do ser humano só ganha realização na medida em que ele se vê “habitado pela graça”. É o que também diz Barth, outro autor que habita o repertório intelectual de Pondé. Para Barth, em linha de continuidade com Paulo e Agostinho, “nada se sustenta na forma do mundo”.

Essa entrada de Pondé na mística não se acha em contradição com o seu ceticismo. Como ele mesmo lembra, o ceticismo – lido teologicamente -, significa “um instante essencial em qualquer procedimento teológico negativo: o místico conhece a epistemologia dura”. A mística respira bem essa atmosfera de negatividade, ela lida com facilidade com a temática do vazio: o deserto é o seu lar, como indica Pondé.

A narrativa mística expressa essa “experiência do vazio diante Daquele que não tem nome”. A “insuficiência” revela-se, assim, como uma “categoria essencialmente mística”. Sua gramática conhece bem o que significa “perder-se em Deus”.

Agora uma novidade que poucos percebem: essa imersão no vazio, essa exposição despojada no nada, acaba por provocar “uma alteração no metabolismo do místico levando-o a théosis, isto é, a capacidade de perceber (fisiologicamente) a presença contínua de Deus”. Ao final de seu belo e provocante texto, Ponde sublinha: “Essa experiência do vazio de si mesmo que retorna materializado na efemeridade de uma voz que se repete no infinito, não é apenas signo da miséria, mas também a possibilidade de descobrir que a travessia desse infinito da ausência de sentido pode ser, na realidade, um método”.



[1] Luiz Felipe Pondé: luzes do Sinai no Subsolo. IHU-Notícias, de 16 de setembro de 2013.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Francisco em Diálogo com a Civiltà Cattolica


Papa Francisco em Diálogo com a “Civiltà Cattolica”
(Agosto de 2013)

Entrevista concedida por papa Francisco a padre Antonio Spadaro, da Civiltà Cattolica: foram mais de seis horas de conversa, ao longo dos dias 19, 23 e 29 de agosto de 2013:

14 Pontos que destaco:

1. O sentimento depois da eleição pontifícia

“Diz-me que quando começou a dar-se conta de que corria o risco de ser eleito, na quarta-feira, dia 13 de Março, à hora do almoço, sentiu descer sobre ele uma profunda e inexplicável paz e consolação interior, juntamente com uma escuridão total e uma obscuridade profunda sobre tudo o mais. E estes sentimentos acompanharam-no até à eleição”

2. Quem é Jorge Bergoglio ?

«Sim, posso talvez dizer que sou um pouco astuto, sei mover-me, mas é verdade que sou também um pouco ingénuo. Sim, mas a síntese melhor, aquela que me vem mais de dentro e que sinto mais verdadeira, é exactamente esta: “Sou um pecador para quem o Senhor olhou”». E repete: «Sou alguém que é olhado pelo Senhor. A minha divisa, Miserando atque eligendo, senti-a sempre como muito verdadeira para mim».

3. A importância dos outros, da comunidade

«E depois uma coisa para mim verdadeiramente fundamental é a comunidade. Procurava sempre uma comunidade. Eu não me via padre sozinho: preciso de uma comunidade. É mesmo isso que explica o facto de eu estar aqui em Santa Marta: quando fui eleito, ocupava, por sorteio, o quarto 207. Este onde estamos agora era um quarto de hóspedes. Escolhi ficar aqui, no quarto 201, porque quando tomei posse do apartamento pontifício, dentro de mim senti claramente um “não”. O apartamento pontifício no Palácio Apostólico não é luxuoso. É antigo, arranjado com bom gosto e grande, não luxuoso. Mas acaba por ser como um funil ao contrário. É grande e espaçoso, mas a entrada é verdadeiramente estreita. Entra-se a conta-gotas e eu não, sem gente, não posso viver. Preciso de viver a minha vida junto dos outros».

4. A centralidade do discernimento e a valorização das coisas pequenas

«O discernimento é uma das coisas que Santo Inácio mais trabalhou interiormente. Para ele, é um instrumento de luta para conhecer melhor o Senhor e segui-l’O mais de perto. Impressionou-me sempre uma máxima com que se descreve a visão de Inácio: Non coerceri a maximo, sed contineri a minimo divinum est. (não estar constrangido pelo máximo, e no entanto, estar inteiramente contido no mínimo, isso é divino). Reflecti muito sobre esta frase a propósito do governo, de ser superior: não estarmos restringidos pelo espaço maior, mas sermos capazes de estar no espaço mais restrito. Esta virtude do grande e do pequeno é a magnanimidade, que da posição em que estamos nos faz olhar sempre o horizonte. É fazer as coisas pequenas de cada dia com o coração grande e aberto a Deus e aos outros. É valorizar as coisas pequenas no interior de grandes horizontes, os do Reino de Deus».

5. Discernir com paciência para evitar decisões repentinas

«Este discernimento requer tempo. Muitos, por exemplo, pensam que as mudanças e as reformas podem acontecer em pouco tempo. Eu creio que será sempre necessário tempo para lançar as bases de uma mudança verdadeira e eficaz. E este é o tempo do discernimento. E por vezes o discernimento, por seu lado, estimula a fazer depressa aquilo que inicialmente se pensava fazer depois. E foi isto o que também me aconteceu nestes meses. E o discernimento realiza-se sempre na presença do Senhor, vendo os sinais, escutando as coisas que acontecem, o sentir das pessoas, especialmente dos pobres. As minhas escolhas, mesmo aquelas ligadas à vida quotidiana, como usar um automóvel modesto, estão ligadas a um discernimento espiritual que responde a uma exigência que nasce das coisas, das pessoas, da leitura dos sinais dos tempos. O discernimento no Senhor guia-me no meu modo de governar. Pelo contrário, desconfio das decisões tomadas de modo repentino. Desconfio sempre da primeira decisão, isto é, da primeira coisa que me vem à cabeça fazer, se tenho de tomar uma decisão. Em geral, é a decisão errada. Tenho de esperar, avaliar interiormente, tomando o tempo necessário.
6. A importância do descentramento de si e a abertura
«A Companhia é uma instituição em tensão, sempre radicalmente em tensão. O jesuíta é um descentrado de si próprio. A Companhia é descentrada de si mesma: o seu centro é Cristo e a sua Igreja. Por isso: se a Companhia coloca Cristo e a Igreja no centro, tem dois pontos fundamentais de referência do seu equilíbrio para viver na periferia. Se, pelo contrário, olha demasiado para si própria, se se coloca a si mesma no centro como estrutura bem sólida, muito bem “armada”, então corre o perigo de sentir-se segura e auto-suficiente (…).O jesuíta deve ser uma pessoa de pensamento incompleto, de pensamento aberto”.
7. Um contemplativo na ação
«O jesuíta pensa sempre, continuamente, olhando o horizonte para onde deve ir, tendo Cristo no centro. Esta é a sua verdadeira força. E isto estimula a Companhia a estar à procura, a ser criativa, generosa. Portanto, hoje mais do que nunca, deve ser contemplativa na acção; deve viver uma proximidade profunda a toda a Igreja, entendida como “Povo de Deus” e “Santa Madre Igreja hierárquica”. Isto requer muita humildade, sacrifício, coragem, especialmente quando se vivem incompreensões ou se é objecto de equívocos e calúnias, mas é a atitude mais fecunda.
8. A santidade na paciência
«Vejo a santidade — continua o Papa — no povo de Deus paciente: uma mulher que cria os filhos, um homem que trabalha para levar o pão para casa, os doentes, os sacerdotes idosos com tantas feridas mas com um sorriso por terem servido o Senhor, as Irmãs que trabalham tanto e que vivem uma santidade escondida. Esta é, para mim, a santidade comum. Associo frequentemente a santidade à paciência: não só a santidade como hypomoné, o encarregar-se dos acontecimentos e circunstâncias da vida, mas também como constância no seguir em frente dia após dia”.
9. Ministros capazes de gerar vida
«Esta Igreja com a qual devemos “sentir” é a casa de todos, não uma pequena capela que só pode conter um grupinho de pessoas seleccionadas. Não devemos reduzir o seio da Igreja universal a um ninho protector da nossa mediocridade. E a Igreja é Mãe — continua. A Igreja é fecunda, deve sê-lo. Veja: quando me apercebo de comportamentos negativos de ministros da Igreja ou de consagrados ou consagradas, a primeira coisa que me vem à cabeça é: «Cá está um solteirão» ou «Cá está uma solteirona». Não são nem pais, nem mães. Não são capazes de gerar vida”.
10. Uma igreja de proximidade
«Vejo com clareza — continua — que aquilo de que a Igreja mais precisa hoje é a capacidade de curar as feridas e de aquecer o coração dos fiéis, a proximidade. Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se tem o colesterol ou o açúcar altos. Devem curar-se as suas feridas. Depois podemos falar de tudo o resto. Curar as feridas, curar as feridas… E é necessário começar de baixo. A Igreja por vezes encerrou-se em pequenas coisas, em pequenos preceitos. O mais importante, no entanto, é o primeiro anúncio: “Jesus Cristo salvou-te”.
11. Uma igreja atenta aos novos caminhos
«Em vez de ser apenas uma Igreja que acolhe e recebe, tendo as portas abertas, procuramos mesmo ser uma Igreja que encontra novos caminhos, que é capaz de sair de si mesma e ir ao encontro de quem não a frequenta, de quem a abandonou ou lhe é indiferente. Quem a abandonou fê-lo, por vezes, por razões que, se forem bem compreendidas e avaliadas, podem levar a um regresso. Mas é necessário audácia, coragem».
12. Em busca de um proposta evangélica simples, profunda e irradiante
“Uma pastoral missionária não está obcecada pela transmissão desarticulada de uma multiplicidade de doutrinas a impor insistentemente. O anúncio de carácter missionário concentra-se no essencial, no necessário, que é também aquilo que mais apaixona e atrai, aquilo que faz arder o coração, como aos discípulos de Emaús. Devemos, pois, encontrar um novo equilíbrio; de outro modo, mesmo o edifício moral da Igreja corre o risco de cair como um castelo de cartas, de perder a frescura e o perfume do Evangelho. A proposta evangélica deve ser mais simples, profunda, irradiante”.
13. Pelo caminho da sinodalidade
«Devemos caminhar juntos: as pessoas, os Bispos e o Papa. A sinodalidade vive-se a vários níveis. Talvez seja tempo de mudar a metodologia do sínodo, porque a actual parece-me estática. Isto poderá também ter valor ecuménico, especialmente com os nossos irmãos ortodoxos. Deles se pode aprender mais sobre o sentido da colegialidade episcopal e sobre a tradição da sinodalidade. O esforço de reflexão comum, vendo o modo como se governava a Igreja nos primeiros séculos, antes da ruptura entre Oriente e Ocidente, dará frutos a seu tempo. Nas relações ecuménicas isto é importante: não só conhecer-se melhor, mas também reconhecer o que o Espírito semeou nos outros como um dom também para nós”.
14. Deus em toda parte
“Tenho em mente também algumas passagens dos discursos do Papa Francisco durante a Jornada Mundial da Juventude do Rio de Janeiro. Cito-lhos: «Deus é real se Se manifesta no hoje»; «Deus está em toda a parte». São frases que fazem eco da expressão inaciana «procurar e encontrar Deus em todas as coisas (…). Mas o Deus “concreto”, digamos assim, é hoje. (…) Deus manifesta-Se numa revelação histórica, no tempo. O tempo inicia os processos, o espaço cristaliza-os. Deus encontra-Se no tempo, nos processos em curso (…). Encontrar Deus em todas as coisas não é um eureka empírico. No fundo, quando desejamos encontrar Deus, quereríamos constatá-l’O de imediato com um método empírico. Assim não se encontra Deus. Ele encontra-Se na brisa ligeira sentida por Elias. Os sentidos que constatam Deus são os que Santo Inácio designa por “sentidos espirituais”. Inácio pede para abrir a sensibilidade espiritual para encontrar Deus para além de uma abordagem puramente empírica. É necessária uma atitude contemplativa: é o sentir que se vai pelo bom caminho da compreensão e do afecto no que diz respeito às coisas e às situações”.

sábado, 14 de setembro de 2013

Luiz Felipe Pondé: Luzes do Sinai no Subsolo


Luiz Felipe Pondé: Luzes do Sinai no Subsolo

Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF


Provocado pelas reflexões de um amigo filósofo de Belo Horizonte, Ricardo  Fenati, resolvi escrever alguma coisa a respeito da presença mística em Luiz Felipe Pondé. Tenho uma rica e longa experiência de amizade com esse singular pensador. Juntos partilhamos a experiência dos Seminários de Mística Comparada, que se realizam a cada ano na cidade de Juiz de Fora, desde o ano de 2001. Não é tarefa fácil captar a dinâmica de seu pensamento, pontuada por tantas nuances e inusitadas provocações. Aporias e oxímoros pontuam esse caminho reflexivo, conjugado por pessimismo e sobrenaturalidade; nihilismo e alegria; tragédia e generosidade. Na orelha de um de seus clássicos livros, O homem insuficiente (2001), Pondé dá o toque de sua perspectiva: “Uma espiritualidade da agonia, que toca Deus através da condição insuficiente enquanto abertura para a transcendência”.

Como dizia o pensador de tradição judaico-romena, Lucien Goldmann, “a história do problema é o problema da história”. Como caminho de aproximação ao complexo pensamento de Pondé, há que recorrer à sua história, ao processo de sua formação. Sua trajetória vem marcada por ondulações, que começam na medicina, desdobrando-se em seguida na psicanálise e na filosofia. Ele sublinha que já em sua primeira formação, na medicina, tomou consciência da fragilidade do ser humano, aprofundada em seguida com seus estudos de psicanálise freudiana. Com a reflexão filosófica esbarrou em Nietzsche e a sedução do ceticismo. Mas também com Pascal, que acabou dando formatação teórica à ideia de “homem insuficiente”, ou ainda de um ser humano “rasgado pela transcendência”.

Pondé foi sempre seduzido pela tradição reflexiva de corte religioso, que envolve diversos pensadores que vão de Agostinho a Berdiaev. Há também a vertente judaica, de sua tradição familiar, que abre importantes veias em sua concepção filosófica. Vale lembrar o influxo de livros como o Eclesiastes e o livro de Jó. Em sua obra sobre Dostoiévski, Crítica e profecia (2003), dizia: “A chamada filosofia religiosa ´pessimista`, de autores como Agostinho, Pascal, Lutero, Kierkegaard, Dostoiévski, Berdiaev ou Barth, entre outros, é uma tentativa de romper, em vários momentos da história ocidental, com a ilusão naturalista que implica o esquecimento da presença ativa do Transcendente no homem”. E esta visão, curiosamente, aproxima-se de um “determinado ceticismo antropológico” que opera fora do circuito religioso.

É nessa “atmosfera pessimista” que circula Pondé e que atua o seu pensamento. Há uma preocupação constante em afirmar a “disfuncionalidade do ser humano” quando distanciado do Mistério de Deus. O autor nunca driblou o “drama humano” ou evitou o “asfixiante subsolo” do tempo cotidiano. Afirma nunca ter temido o nihilismo, por o conhecer bem e por dentro. Reage, sim, contra certa “tecnologia da alegria” ou certo “fetiche da felicidade” que acabam por deslocar o homem de sua situação de impermanência ou condição de insuficiência. A seu ver, a dinâmica que conduz à verdadeira alegria implica em atravessar a melancolia por dentro e romper com a ilusão naturalista.

            Com o aporte do livro do Eclesiastes, Pondé encontra um importante instrumento para adentrar-se no “drama humano”. Acredita que esse livro revela-se fundamental para “relativizar a arquitetura íntima do sucesso da modernidade”. É um livro bíblico que vem lido na festa da colheita, e justamente para lembrar a condição de impermanência do humano, de sua vanidade e de sua absoluta dependência de um Mistério que a tudo ultrapassa e vela. As convicções de uma “paixão antropológica” são também relativizadas por pensadores como Agostinho, Pascal, Kierkegaard e Barth. Para Pascal, como lembra Pondé, “a suficiência da natureza implica o desaparecimento do Sobrenatural, daí o pavor pascaliano diante de um universo sem Deus”. Semelhante orfandade  vem pontuada por Kierkegaard, ao lembrar que o ser humano é tecido de angústia, e que traduz simultaneamente o nada de sua constituição e a “liberdade infinita” que o aguarda.

            Seguindo uma agenda descrita por Barth em sua Carta aos Romanos, Pondé reitera a ideia de que o ser humano não pode jamais esquecer o “seu justo lugar no mundo”. Isso faz parte de “toda boa espiritualidade”, essa consciência de que o mundo “não cessa de ser mundo” e de que a presença do Totalmente Outro acontece como dado novo, inaudito e inesperado. E esse Outro, novidadeiro, traduz não uma resposta às perguntas humanas, mas uma “crise” de todas as perguntas. Com Barth se dá uma radical crítica ao mundo liberal, e sua pretensão de esplêndida continuidade entre o humano e o divino.

            Há uma tenaz resistência de Pondé à pretensão de uma modernidade autonomista, expressa, por exemplo na obra de um Pico della Mirandola. A exaltação da dignidade da natureza humana. Em linha de descontinuidade com o pessimismo agostiniano, e seu combate contra “as formas embrionárias” de uma paixão antropológica, o filósofo renascentista italiano propõe uma definição mais atrativa e otimista do ser humano, que acaba abrindo caminho para uma “imanência humanista”, de certa forma ingênua. Para Pondé, o humanismo de Pico della Mirandola condena o ser humano a uma “horizontalidade naturalista” que acaba por dissolver, a seu ver, a devida relação do humano com o divino, suscitando a ideia de uma “suficiência da natureza humana”.

            Essa modernidade,  enraizada nesse “otimismo naturalista”, foi toda tecida para servir ao pequeno e autoritário “eu”, do sujeito que se firma na busca de produtividade, de sucesso, de saúde, de dinheiro, de autoestima e beleza. Desse “eu falante” que “inunda o mundo com seu ruído”. Na contra-mão dessa afirmação do pequeno eu, é que se firma a mística. Como indicou Pondé, em artigo sobre “a espiritualidade das pedras”, a rica literatura espiritual, seja do oriente ou ocidente, “há muito compreende o ridículo do culto ao ´eu` (…). Conceitos como ´aniquilamento` (anéantissement, comum em textos franceses entre os séculos 14 e 17), ´desprendimento`(abegescheidenheit, em alemão medieval) e ´aphalé panta` (grego antigo) descrevem exatamente esse processo de superação da obsessão do ´eu` por si mesmo”.

            Foi durante o periodo de aprofundamento do pensamento de Pascal, na França – contemplado com uma bolsa sanduíche - , que Pondé fez seus primeiros contatos com a mística. E relata o ocorrido numa entrevista publicada na revista Sacrilegens, do PPCIR-UFJF (2006): “O que aconteceu comigo e o que me levou a estudar mística foi porque eu comecei a ter aquilo que a tradição chama de visitas de Deus. Eu comecei a ter experiências místicas. De uma hora para outra eu comecei a perceber determinadas coisas, ou tomar consciência, desde o começo de uma forma muito clara”. Foi a partir daí, que começa sua abertura ao tema, e lançou-se aos estudos para poder saber o que estava acontecendo com ele.
            A mística vinha em reforço à sua crescente compreensão de que o ser humano não é “axis mundi” (o eixo do mundo), e de que o descentramento de si traduzia um caminho novo, de gratuidade e de abertura para a verdade última da vida. Já tinha intuído isso antes, com seus estudos de Agostinho e Pascal, no sentido da percepção da “disfuncionalidade humana” quando deslocada da sua relação com o Grande Mistério. A mística veio apenas reforçar e radicalizar essa sua compreensão. Com o aporte de importantes místicos como Eckhart, as beguinas e outros da tradição judaica – como A.Heschel, foi se apercebendo da presença de uma Misericórdia que acolhe e que fala. Num de seus mais lindos textos, “No Sinai”, publicado originalmente numa antologia de mística e poesia  da Revista Poesia Sempre (da Fundação Biblioteca Nacional – 2009), Pondé fala dessa sua mudança de perspectiva: “A passagem entre a condição de ateu e a de não-ateu (não sou propriamente religioso) se deu assim como quem sai de casa num dia de sol e é apanhado por uma tempestade tão concreta como a chuva”. Mas só foi aprender a nomear sua substância quando recorreu à tradição, desvendando então o significado do que os místicos nomeiam como misericórdia. E continua: “Quando olho à minha volta, vejo esta estranha misericórdia sem causa escorrer pelo céu e, por alguma razão que desconheço, o cético e trágico que sou é obrigado a contemplar isso contra todas as faculdades intelectuais e volitivas que me constituem”. Relata que passa então a ser “constantemente visitado” por essa Presença, tomado pela “sensação de que o mundo é sustentado pelas mãos de uma beleza que é também uma presença que fala”.

Novos horizontes se abrem com o universo místico, como a consciência viva da “bondade de Deus”, de sua gratuidade e generosidade. Uma consciência que povoa o mundo interior de uma alegria distinta, que é reconhecimento do dom de um Mistério que nos arranca do próprio nada. Pode então acolher a compreensão de uma graça que também envolve a abraça o “princípio da insuficiência ontológica da criação”, mas que aponta para algo que é puro dom. Sublinha em outro lugar que “nada é mais forte do que a graça para iluminar a agonia do pecador para si mesmo”.

Pelos caminhos da mística, o cético Pondé redescobre traços singulares de “confiança na vida”, do valor dos “laços afetivos”, de esperança e de alegria. Reconhece, com seu temperamento “trágico” que o caminho do humano aponta sempre para baixo, e que todas as razões materiais do mundo conduzem o humano para a tristeza e a melancolia. Há, porém, a presença do Milagre que vem contrariar essa lógica, e que indica a possibilidade de viver a alegria e estar abrigado pela esperança: “A esperança é que é o milagre para quem enxerga o mundo como ele é”. E essa alegria está aí, como um dom inesperado, e “quando nos visita, tem o hálito divino, por sua própria quase total impossibilidade de ser, para quem reconhece o vale das sombras à nossa volta”. Apesar de todas as nuvens, as experiências de acolhida, generosidade e alegria estão por toda parte, como na jovem garçonete que foi objeto de um dos artigos de Pondé na Folha de São Paulo: “A idiota de Deus”. Aquela “pequena e pobre princesa africana” acorda em Pondé, com seu sorriso, uma generosidade que implode o “mecanismo infernal do lugar”. Com ela epifaniza-se mais uma manifestação da presença divina: “Sempre que percebo a generosidade no mundo, fico paralisado. O mundo cai em silêncio como se ali estivesse Deus em pessoa, cobrindo a precariedade humana com sua misericórdia”.

Não há alma, por mais cética e sombria que seja, que não se deixe dobrar pela força da generosidade e do amor. Se, de um lado, é verdade que o ser humano é pontuada por essa “insuficiência ontológica”, por essa “nadidade”, é também enriquecido com a possibilidade de amar. É também alguém pontilhado pela capacidade de amar, de adentrar-se nesse abismo de generosidade. E quando isso ocorre, e ocorre mesmo, o ser humano é tomado por um sentimento que transcende a banalidade que muitas vezes habita o seu dia a dia. A presença irradiante do amor, oculta por momentos a presença de um nada que apequena, e faz brotar uma saúde que irradia. O drama maior, assevera Pondé “não é não ser amado, mas ser incapaz de amor”. Ou como diz o grande compositor brasileiro, Geraldo Vandré: “Até se consumir ou consumir toda esta dor, até sentir de novo o coração capaz de amor”.
 abertura para ntologia mis lindos textos, "tido da percepç, de gratuidade e de abertura para