Anos de vitalidade teológica
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
É para mim motivo de grande alegria
poder testemunhar minha presença no Departamento de Teologia da PUC-RJ num
período marcado por substantiva vitalidade, nas décadas de 1970 e 1980. No momento
em que este Departamento, fundado em 1968, completa 45 anos, é louvável a
iniciativa de buscar recuperar essa memória e celebrar essa caminhada. No caso
específico da vida desse Departamento, a luz do passado pode apontar trilhas
que talvez tenham se embaraçado em décadas de uma trajetória eclesial que nem
sempre favoreceu a cidadania teológica e uma presença pública destacada do
teólogo não apenas no âmbito eclesial, mas também na vida da sociedade.
Minha entrada no Departamento de
Teologia ocorreu em março de 1978, depois de ter concluído os cursos de
Filosofia e Ciência da Religião na Universidade Federal de Juiz de Fora. Na
ocasião de minha entrada na Teologia da PUC, para cursar o mestrado, o então
chefe do Departamento era o prof. Álvaro Barreiro, que respondia também pela
disciplina de eclesiologia. Depois de aprovado no exame complexivo tive que
fazer várias cadeiras da graduação em teologia para complementar a formação
teológica. Isso se deu simultaneamente com a presença nas aulas do mestrado em
teologia sistemática. Levava-se uma média de quatro anos para a conclusão do
mestrado naquele tempo. E tudo deu muito certo, facultado também pela presença
de um excelente orientador de trabalho que foi o jesuíta João Batista Libânio.
O tema de minha dissertação expressava a atenção teológica do tempo:
“Comunidade Eclesial de Base: elementos explicativos de sua gênese”, e a defesa
aconteceu em fevereiro de 1982.
A imagem que tenho da formação
teológica recebida nesse período é das mais impactantes. Mesmo numa conjuntura
eclesiástica local sombreada, o Departamento de Teologia da PUC-RJ favoreceu
uma formação acadêmica arejada e ousada, em profunda sintonia com a teologia da
libertação. O corpo docente do período era muito aberto e de grande competência
tanto no âmbito da teologia bíblica como da teologia sistemática, que eram as
duas áreas de concentração disponibilizadas para a formação discente. No meu
caso, escolhi a formação na área de teologia sistemática e ali encontrei
excelentes professores: João Batista Libânio, Clodovis Boff, Felix Pastor,
Alfonso Garcia Rúbio, Ulpiano Vazquez, Carlos Palácio, Mário França de Miranda,
Antônio Moser e outros. Para o enriquecimento da reflexão bíblica veio também o
importante aporte das disciplinas oferecidas por Gabriel Selong. E nas cadeiras
eletivas tive a presença de outros docentes, entre os quais Pedro Ribeiro de
Oliveira e Francisco Cartaxo Rolim. Ou seja, um corpo docente de primeira
grandeza, de presença nacional e significativa produção intelectual.
O processo de interlocução acadêmica
foi também favorecido pela presença de um corpo discente muito singular. Foi um
período que propiciou, talvez de forma original no Brasil, um grupo de teólogos
leigos que se firmaram no campo teológico nacional: Maria Clara Bingemer,
Tereza Cavalcanti, Ana Maria Tepedino, Paulo Fernando Carneiro de Andrade,
Margarida Brandão e eu também, junto com essa turma. Registro ainda a presença
de outros alunos, que estavam entre nós, como os jesuítas Marcelo Perini e
Inácio Neutzling – que hoje brilha no Instituto Humanitas da Unisinos.
Curiosamente, num circuito eclesial mais reticente, brota um ramo teológico
leigo, de formação acadêmica aperfeiçoada, com sensibilidade social aguçada e
viva atuação pastoral.
Os temas relacionados com a teologia
da libertação e a práxis pastoral na América Latina estavam presentes como luz
nas disciplinas em curso naquele dinâmico período, do final dos anos 1970 e
inícios de 1980. Se voltamos nosso olhar para a publicação dos docentes da PUC-RJ
naquele período vislumbramos esse influxo: João Batista Libânio. Discernimento e política. Petrópolis:
Vozes, 1977; Alfonso Garcia Rubio. Teologia
da libertação: política ou profetismo? São Paulo: Loyola, 1977; Álvaro
Barreiro. Comunidades eclesiais de base e
evangelização dos pobres. São Paulo: Loyola, 1977; Clodovis Boff. Teologia e prática. Teologia do político
e suas mediações. Petrópolis: Vozes, 1978; Mário de França Miranda. Libertados para a práxis da justiça. A
teologia da graça no atual contexto latino-americano. São Paulo: Loyola, 1980;
Félix Alexandre Pastor. O reino e a
história. Problemas teóricos e práticos de uma teologia da práxis. São
Paulo: Loyola, 1982; João Batista Libânio. Teologia
da libertação. São Paulo: Loyola, 1987. Na própria nomenclatura de
disciplinas oferecidas no mestrado estava presente essa preocupação de sintonia
com o tempo, de escuta aos sinais da história: A fé e a práxis do cristão de
hoje; Comunidade eclesial de base; Igreja e mundo; Religiosidade popular etc. E
uma reflexão teológica que se colocava à escuta da mediação das análises
sociais, entendida como exigência fundamental para a práxis da fé. A título de
exemplo, sublinho a presença de Clodovis Boff e de sua instigante reflexão
naquele período. Ele acabava de voltar de seu doutorado em Louvain (Bélgica),
sob a orientação de Adolphe Gesché, e partilhava com seus alunos o rico
resultado de seu trabalho, em torno da metodologia da teologia da libertação. O
seu livro sobre o tema, Teologia e
prática, virou objeto dos cursos, mas também de grupos de estudos entre os
alunos da pós-graduação em teologia naquele período. As aulas fervilhavam esse
entusiasmo pastoral, essa preocupação com a práxis e o desafio de um
compromisso cada vez mais efetivo com o futuro da Igreja na América Latina.
Tempos muito interessantes.
No segundo semestre de 1982
interrompi o meu trabalho na PUC-Rj para fazer meu doutorado em teologia
dogmática na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, sob a orientação do
prof. Felix Pastor. O que ocorreu também com outros discentes da mesma
instituição, como Inácio Neutzling, Paulo Fernando Carneiro de Andrade e Maria
Clara Lucchetti Bingemer. Permaneci em Roma até inícios de 1986. Resolvidas
algumas pendências relacionadas à minha missio
canônica, retornei à PUC-RJ para o primeiro semestre letivo de 1986, assumindo
também agora a docência de disciplinas nos cursos de graduação e pós-graduação
em teologia. E dentre as disciplinas que recordo: Eclesiologia, Antropologia
Teológica II (Teologia da graça), Teologia Moral, Teologia do laicato, Teologia Pastoral,
Comunidades eclesiais de base, Religiosidade popular, Diálogo Interreligioso,
Questões de teologia pastoral e outras.
Registro também nesse meu novo
momento de trabalho, exclusivamente na docência teológica, a riqueza e o
entusiasmo do corpo discente daquele período. Além de seminaristas de dioceses
do estado do Rio, como Volta Redonda, Duque de Caxias e Nova Iguaçu, um número
importante de leigos atuantes em pastorais sociais e nas comunidades eclesiais
de base. Tudo dava um calor muito especial às aulas e aos debates realizados.
Com o tempo, o departamento também abriu suas portas para os alunos
evangélicos, ampliando o campo da pluralidade nos debates e reflexões em curso.
Lembro-me que foi num dos últimos cursos ministrados no departamento, no final
da década de 1980, com essa riqueza plural entre os discentes, que se deu minha
inscrição na reflexão sobre teologia das religiões, inaugurando uma linha de
pesquisa que jamais abandonei.
Tive também uma passagem na
administração da pós-graduação em teologia, quando assumi a coordenação do
mestrado e doutorado a partir de julho de 1988, ficando no cargo por quase dois
anos. Foi também um trabalho muito gratificante.
Gostaria ainda de falar de minha
rica experiência com as disciplinas de cultura religiosa, que eram oferecidas
para toda a comunidade da PUC-Rj. Atuei em várias dessas disciplinas: Ciência e
Fé, Cristianismo, Ética Cristã e O Homem e o Fenômeno Religioso. Fui
coordenador de área dessa última disciplina em dois períodos: de 1980 a 1981 e
em 1987. Estava no grupo que trabalhou na elaboração temática dessa nova
disciplina, que substituiu a anterior, Ciência e Fé. O acento antropológico e a
abertura multidisciplinar davam o toque para a nova reflexão. O grupo de
docentes que atuavam nessas disciplinas está guardado com muito carinho na
memória: Fernando Soares Moreira (uma das pessoas mais generosas que conheci, e
que teve um papel muito importante na minha acolhida na PUC-Rj), Teresa
Cavalcanti, Juan Guervos, Rafael del Pozo, Luiz César Monnerat Tardin,
Margarida Brandão e outros. Um grupo muito amigo e solidário, com uma visão
teológica e pastoral muito aberta e engajada.
Tivemos momentos difíceis nesses
anos, quando alguns de nossos docentes se viram impedidos de continuar seu
trabalho na PUC-Rj, em razão de procedimentos doutrinais-disciplinares.
Sentimos duramente esse golpe com a saída dos professores: Clodovis Boff,
Antonio Moser e Pedro Ribeiro de Oliveira. Apesar de toda reação da comunidade
acadêmica e da associação de docentes (ADPUC), não houve forma de conseguir a
reintegração desses professores que tanto abrilhantavam o nosso departamento.
Foi talvez o lado mais sombrio do período em que atuei na instituição. Já se
insinuavam no ar os primeiros efeitos da restauração romana, que a partir de
então ganhará mais força por todo canto, e ela tinha fortes tentáculos na
diocese do Rio de Janeiro. Graças à atuação do então chefe de departamento de
teologia, o jesuíta Jesus Hortal – importante canonista -, as perdas não foram
ainda maiores. Soube defender os docentes do departamento com muita garra e
honestidade, garantindo a manutenção de um clima mínimo para poder se trabalhar
teologicamente com dignidade. Mas aos poucos, e infelizmente, traços de
controle, de auto-censura, de temor ou cuidado excessivo foram se implantando
sorrateiramente na dinâmica do departamento, impedindo a continuidade daquela
rica experiência primaveril vivida pelo departamento nos anos de 1970 e na
década de 1980. Quero, porém, deixar aqui registrada a minha grande alegria de
ter participado de momentos tão importantes, marcantes e vivos dessa linda
caminhada teológica vivida pelo departamento de teologia da PUC-Rj, que
considero também minha casa.
(Artigo-testemunho escrito por ocasião do evento comemorativo dos 45 anos do Departamento de Teologia da PUC-RJ. Publicado também na página da PUC-RJ
(Artigo-testemunho escrito por ocasião do evento comemorativo dos 45 anos do Departamento de Teologia da PUC-RJ. Publicado também na página da PUC-RJ