Os
caminhos atuais e os novos desafios da Teologia da Libertação
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
O
ano de 2012 teve uma importância singular para a teologia da libertação. É o
período de celebração dos quarenta anos de lançamento da clássica obra de
Gustavo Gutiérrez sobre o tema. É um tempo que coincide também com a celebração
dos cinquenta anos do início do Concílio Vaticano II (1962-1965). São dois
eventos que marcaram a trajetória e os rumos da igreja católica. Para comemorar
as datas o Instituto Humanitas da Unisinos (São Leopoldo, RS) convocou em
outubro de 2012 a realização de um Congresso Continental de Teologia, que
contou com importantes presenças da reflexão teológica latino-americana. Dentre
as presenças de destaque, o teólogo Jon Sobrino, que abordou um tema de
centralidade da teologia da libertação: o compromisso dessa teologia com Jesus
e os pobres.
A
teologia da libertação nasce um pouco antes da Conferência de Medellin,
ocorrida em setembro de 1968. Ela surge com esse nome em julho de 1968, por
ocasião de uma conferência de Gustavo Gutiérrez em Chimbote (Peru), num
encontro nacional de leigos, religiosos e sacerdotes. O livro, Teologia da Libertação, desse mesmo
autor, vai ter sua primeira edição em 1972, abrindo um campo novo de reflexão
teológica na América Latina. Como bem lembrou Gutiérrez, a teologia da
libertação é um evento segundo e não primeiro, pois dá continuidade e expressão
a um “fato maior” na vida da igreja latino-americana, que é a participação dos
cristãos no processo de libertação. E uma participação que traduz um
acontecimento histórico ainda mais vasto que é a “irrupção dos pobres”. Esse
será o grande tema e mote da teologia da libertação: “o grito articulado do
oprimido”, para utilizar a expressão de Leonardo Boff.
Dentre
as importantes contribuições fornecidas pela teologia da libertação podem ser
elencadas: o acento no empenho libertador, o resgate da cidadania dos pobres, a
abertura à positividade da política e o respeito ao universo simbólico-culturas
dos pobres[1].
Junto com a reflexão teológica veio a importante experiência das comunidades
eclesiais de base, que também se firmam nesse período como uma das grandes
esperanças da igreja latino-americana. O processo irradiador dessa nova
teologia não ocorreu sem resistências do magistério eclesial, sobretudo por
volta de 1984, quando serão conhecidas as instruções da Congregação para a
Doutrina da Fé sobre o tema, com as críticas ao que se denominou acento
imanentista e unilateral sobre a ação libertadora e a utilização pouco crítica
do instrumento de análise recolhido das diversas correntes do pensamento
marxista.
Apesar
dessas dificuldades localizadas, a teologia da libertação firmou-se como uma
das mais importantes contribuições da teologia para a igreja universal. Na bela
imagem cunhada pelo teólogo italiano, Ernesto Balducci, as caravelas que
outrora partiram para as Índias ocidentais retornam agora ao Primeiro Mundo com
os novos anunciadores do Evangelho. São teólogos portadores de uma boa nova,
que é a do “privilégio dos pobres”, cuja
grandeza tem seu fundamento teológico em Deus, como bem sinalizou o Documento de
Puebla (1979), em seu número 1142[2].
Ao
retomar a discussão sobre a teologia da libertação, em nova introdução à sua
obra clássica, Olhar longe[3],
Gustavo Gutierrez fala nos novos desafios para a teologia da libertação, e
menciona como temas que serão recorrentes aqueles relacionados às questões
culturais, raciais e vinculadas à situação da mulher. Sublinha também que o
diálogo realizado com grupos de cristãos de outros continentes, bem como os
encontros que foram acontecendo ao longo dos anos, ajudaram a situar melhor
aspectos que estavam obscurecidos na reflexão até então realizada. Menciona a
importância do diálogo realizado com teólogos do Terceiro Mundo, e o desafio
conexo de ampliar o quadro de compreensão do mundo do pobre. Isto foi também
percebido pelos irmãos Leonardo e Clodovis Boff, na obra Como fazer teologia da libertação (Vozes, 1986). Trata-se da ideia
de “alargar a concepção de pobre”, inserindo outros planos da opressão social,
para além de uma compreensão exclusivamente classista do oprimido, envolvendo
assim a questão dos negros, dos índios e da mulher.
Outros
desafios foram sendo elencados no projeto da teologia da libertação, como o
relacionado com a ecologia. Leonardo
Boff foi um dos pioneiros nesse trabalho de articulação do “grito do oprimido
com o grito da Terra”[4].
Na introdução de sua obra sobre o tema, Boff assinala que não apenas os
oprimidos devem se libertar, mas também a Terra que vem espoliada e que grita.
O “Outro sofredor” não diz respeito apenas aos seres humanos, mas inclui também
a Terra: “Todos somos reféns de um paradigma que nos coloca, contra o sentido
do universo, sobre as coisas ao invés
de estar com elas na grande
comunidade cósmica”. E os humanos têm uma responsabilidade diante de tudo isso,
com a abertura de consciência de que pertencem à vida, e não o contrário. Urge
reagir contra a situação “mortífera” em que se vêem enredados. A diversidade a
ser preservada não é apenas a humana, social ou cultural, mas também a
diversidade ambiental[5].
Não há como excluir o ambiente da comunidade humana, e esta só se firma resguardando
e protegendo o espaço onde ela cresce e se desenvolve.
Firma-se
também o desafio da espiritualidade
libertadora. É outro dos campos sublinhados com ênfase por Gustavo Gutiérrez.
Já na sua obra clássica, de 1972, tinha indicado a importância desse tema: uma
espiritualidade da libertação (capítulo décimo). Retoma o tema em outra obra
fundamental, Beber no próprio poço –
Itinerário espiritual de um povo (Vozes, 1984). E ao tratar o tema das tarefas
atuais da teologia da libertação, em artigo sobre as situações e tarefas da teologia da libertação[6],
volta a falar no aprofundamento de tal desafio. Não há como viver a prática
libertador sem um clima de gratuidade e despojamento. A gratuidade deve, sim,
banhar e invadir todo o projeto de luta transformadora, de modo a evitar a hybris, a superioridade moral ou a
arrogância de seus protagonistas. Como sublinha Gutiérrez, há que recuperar o
espírito que envolve o seguimento de Jesus, a radicalidade que preside o dom da
entrega ao outro, que brota da fonte da interioridade. É nesta profundidade que
se situa a espiritualidade, e a partir da qual se delineia o projeto de amor ao
próximo. Já dizia com acerto Teresa de Ávila em suas Moradas, que “o amor ao próximo nunca desabrochará perfeitamente em
nós se não brotar da raiz do amor de Deus” (V Moradas 3,9). Uma das intuições chave da teologia da
libertação foi ter percebido que “no coração mesmo da opção preferencial pelos
pobres há um elemento espiritual de experiência do amor gratuito de Deus”
(Gutiérrez).
Outro
“território novo e exigente” para a teologia da libertação relaciona-se com a
questão da pluralidade religiosa. E,
curiosamente, trata-se de um desafio que provém das nações mais pobres da
humanidade. Pensar a pluralidade religiosa como um dom e um valor, inserir-se
honestamente na prática de um diálogo interreligioso autêntico e produtivo, são
desafios muito atuais para a teologia da libertação. Se há apenas uma terra e
muitas religiões, como indicou Paul Knitter[7],
as distintas tradições de fé são convocada a uma responsabilidade global, de
luta contra o sofrimento humano e ecológico. Trata-se do nervo kairológico do
diálogo interreligioso no tempo atual. Na busca de um novo “cruzamento” entre
teologia da libertação e teologia do pluralismo religioso, a Comissão Teológica
Latino-Americana da Associação de Teólogos/as do Terceiro Mundo (ASETT/EATWOT)
realizou um amplo projeto reflexivo que resultou numa série de cinco volumes
sob o título geral “Pelos muitos caminhos de Deus”[8].
Foi a exitosa tentativa de desenvolver uma teologia pluralista libertadora,
sempre partindo da perspectiva e da opção pelos pobres. Na avaliação feita por
um dos responsáveis pelo projeto, José María Vigil, na apresentação do quinto e
último volume da série, a teologia da libertação e a teologia do pluralismo
religioso deixam de ser “duas desconhecidas”, testemunhando agora um fecundo e
enriquecedor diálogo.
Como
se pode perceber, os desafios estão dados, e a teologia da libertação tem
diante de si a grande tarefa de trilhar este novos caminhos com criatividade e
ousadia. Apesar de alguns “profetas de desventuras” anunciarem prematuramente a
morte da teologia da libertação, ela permanece viva e produtiva, abraçando com
alegria novos e instigantes horizontes. Em sua recente conferência na Unisinos,
Jon Sobrino assinala a importância de “prosseguir com o novo no pensar
teológico”, com os desafios que vão se apresentando no tempo, mas mantendo
sempre acesa a atenção para não se descuidar da “eterna fonte de água viva”,
que é Jesus Cristo e de seus queridos privilegiados que são os mais pobres e
excluídos.
Bibliografia:
BOFF, Leonardo. Ecologia. Grito da terra, grito dos pobres. 3 ed. São Paulo: Ática,
1999.
BOFF, Leonardo & BOFF, Clodovis. Como fazer teologia da libertação.
Petrópolis: Vozes, 1986.
GIBELLINI, Rossino. Prospettive
teologiche per il XXI secolo. Brescia: Queriniana, 2003.
GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação. Perspectivas. São Paulo: Loyola, 2000.
_____. A força histórica dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1981.
_____. Beber no próprio poço. Itinerário espiritual de um povo.
Petrópolis: Vozes, 1984.
TORRES, Fernado et al. Teologia da libertação e educação popular. São
Leopoldo: Ceca/Cebi/Celadec, 2006.
(Publicado na Revista Novamerica, n. 137
jan-mar 2013, p. 18-21)
[1] Faustino Teixeira. Teologia da libertação: eixos e
desafios. In: Fernando Torres et al. Teologia
da libertação e educação popular. São Leopoldo: Ceca/Cebi/Celadec, 2006, p.
40-49.
[2] Veja também: Gustavo Gutiérrez. A força histórica dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 210-213.
[3] Gustavo Gutiérrez. Teologia da libertação. São Paulo: Loyola, 2000, p. 11-54 (Olhar
longe – Introdução à nova edição).
[4] Leonardo Boff. Ecologia.
Grito da terra, grito dos pobres. 3 ed. São Paulo: Ática, 1999.
[5] Eduardo Viveiros de Castro. Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2007, p. 256-257.
[6] Gustavo Gutiérrez. Situazione e compiti della
teologia della liberazione. In: Rosino Gibellini (Ed.). Prospettive teologiche per il XXI Secolo. Brescia: Queriniana,
2003, p. 108-111.
[7] Paul Knitter. Una
terra molte religioni. Dialogo interreligioso e responsabilità globale.
Assisi: Cittadella Editrice, 1998.
[8] ASETT (Org.). Pelos
muitos caminhos de Deus. Goiás: Rede, 2003; Luiza E. Tomita & Marcelo
Barros & José María Vigil. Pluralismo
e libertação. São Paulo: Loyola, 2005; Luiza E. Tomita & José María
Vigil & Marcelo Barros. Teologia
latino-americana pluralista da libertação. São Paulo: Paulinas, 2006; José
María Vigil & Luiza E. Tomita & Marcelo Barros. Teologia pluralista libertadora intercontinental. São Paulo:
Paulinas, 2007; José María Vigil. Por uma
teologia planetária. São Paulo: Paulinas, 2011.
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