Tich Nhat Hanh, o suave monge
do Vietnã
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
Há uma tendência das pessoas no
Ocidente identificarem o budismo como uma religião monástica desligada do
mundo, voltada exclusivamente para a prática da meditação. Trata-se de uma
visão distorcida e inadequada, sobretudo quando se busca captar o budismo do
século XX e o contemporâneo. Em precioso artigo de Sallie King sobre a
espiritualidade budista contemporânea e ativismo social (A espiritualidade
budista II. São Paulo: Perspectiva, 2007), a autora busca focalizar “as bases
espirituais desse novo budismo e algumas das principais formas de seu ativismo
social”. A espiritualidade e o ativismo social estão intimamente relacionados
no budismo contemporâneo.
Dentre as iniciativas pioneiras
podem ser destacadas as impulsionadas pelo monge Thich Nhat Hanh no Vietnã, em
particular o seu trabalho junto à Escola de Jovens para o Serviço Social,
criado em 1964. Há no Brasil vários livros publicados sobre esse monge, entre
os quais: Para viver em paz (Vozes); Vivendo Buda, vivendo Cristo (Rocco); Paz
a cada passo (Rocco) e Os cinco
treinamentos para a mente alerta (Vozes). Thây, como ficou conhecido esse
“suave monge”, nasceu em 1926, em região central do Vietnã, tendo-se ordenado
monge em 1942. Depois de atuar no Instituto Budista An Quang, que ajudou a criar,
foi para os Estados Unidos em 1961 para estudar e lecionar religião comparada
nas Universidades de Princeton e Columbia. Sob os apelos de seus companheiros
monges no Vietnã, retorna ao seu país natal em 1963, para atuar no movimento de
resistência não violenta aos desmandos do regime de Ngo Dinh Diem, no Vietnã do
Sul. É no contexto dessa resistência que ele funda, em 1964, junto com um grupo
de professores e estudantes universitários, a Escola da Juventude para o
Serviço Social, que mobilizou centenas de jovens para atuar no campo em
trabalhos de educação e saúde, e mais tarde na reconstrução das aldeias
bombardeadas. Era um “pequeno corpo de paz”, como o trabalho veio nomeado pela
imprensa americana.
Mesmo evitando um posicionamento
partidário durante a guerra do Vietnã, muitos jovens das equipes de assistentes
sociais sofreram a violência da perseguição. Muitos deles foram raptados ou
mortos pelos dois lados em litígio. Como relata Thây, “alguns de nossos
assistentes foram assassinados por católicos fanáticos que suspeitavam que
trabalhávamos para os comunistas, e alguns de nossos assistentes foram presos
pelos comunistas”. Esses jovens eram figuras populares no campo, e incluíam
monjas e monges, que sem receber nenhum salário dedicavam-se à “generosidade amorosa”,
entendida como serviço e prática do budismo. Um dos rapazes do grupo, chamado
An, questionado numa ocasião por um granjeiro que se mostrou admirado pelo
serviço gratuito realizado por eles, responde que esse serviço era uma forma de
conquistar “merecimentos”. Surpreso com a resposta, o granjeiro insistiu: “Eu
aprendi que para conquistar merecimentos as pessoas devem ir ao templo. Por que
você está conquistando merecimentos aqui?” A resposta veio espontânea: “Sabe,
tio, nesses tempos as pessoas sofrem tanto que até mesmo Buda tem de sair para
ajudar. Nós, estudantes do Buda, estamos conquistando merecimentos aqui mesmo,
onde vocês estão sofrendo”. Essa declaração do jovem vietnamita tornou-se, como
lembra Thây, a base essencial da filosofia de serviço social do budismo
engajado. O trabalho se irradiava, apesar dos poucos recursos, e os jovens eram
amados pelas pessoas. O trabalho, porém, suscitou muita reação e ódio tanto do
governo, apoiado pelos Estados Unidos, como da oposição comunista. Muitos assistentes
sociais budistas morreram nesse trabalho, e mesmo Thâi escapou por pouco.
Como forma de ampliar o apoio à
resistência não violenta, Tich Nhat Hanh aceita o convite da Universidade de
Cornell e da Fraternidade da Reconciliação (Fellowship of Reconciliation),
chegando aos Estados Unidos em 1966. Seus relatos sobre a dolorosa situação no
país e suas propostas pacíficas, em favor da reconciliação, ganham alcance inusitado.
Comovido com sua atuação, Martin Luther King chega a indicá-lo ao Nobel da Paz
de 1967, e assinala: “Não sei de ninguém que mereça o Prêmio Nobel da Paz mais
do que esse suave monge do Vietnã”. O monge vietnamita também vem acolhido com
carinho por Thomas Merton, em sua abadia de Gethsêmani. A força e a presença do
“suave monge” vem percebida por Merton já na forma como ele abriu a porta e
entrou em seu aposento. Seu gesto e presença falam mais forte que suas
palavras. É um “verdadeiro monge” e um irmão. Sobre ele testemunha Merton:
“Thich Nhât Hanh deixou seu
país e veio até o nosso para mostrar o quadro que revistas e jornais não nos
revelam. Eu tenho mais em comum com ele do que com muitos americanos, e não
hesito em dizê-lo. É de vital importância que tais laços sejam admitidos.
Porque são os laços de uma nova solidariedade, de uma nova fraternidade, que
começa a se evidenciar nos cinco continentes e ultrapassa os marcos políticos,
religiosos e culturais, para unir homens e mulheres de todos os países em algo
que é mais concreto do que um ideal e mais vivo do que um programa. Esta união
é a única esperança para o mundo”.
Thây chegou a ter importantes
reuniões com personalidades americanas, incluindo também duas audiências com o
papa Paulo VI, a quem recomendou vivamente seu projeto de cooperação entre
católicos e budistas, em favor da paz no Vietnã. Incorporou-se também, em 1969,
à delegação budista das conversações de paz em Paris. Na sequência da
assinatura dos acordos de paz, em 1973, vem-lhe negada a permissão de retornar
ao Vietnã, passando a viver no exílio na França. Depois de alguns anos vivendo
em pequena comunidade, nas proximidades de Paris, funda em 1982 a Plum Village,
um centro de retiro e reflexão budista, em Bordeaux, no sudoeste da França.
Dentre os traços de seu pensamento
está a ênfase na prática da mente alerta, que envolve uma profunda reverência
para com a vida, a generosidade amorosa e a abertura desarmada ao outro. Para
Thây, o cultivo da compaixão e da generosidade é essencial para a defesa da
vida, que se irradia por toda parte, “dentro de nós e à nossa volta”. Como
reação à destruição dessa vida, e todo o sofrimento decorrente, propõe caminhos
alternativos: “É importante que estejamos em contato com o sofrimento do mundo.
Precisamos nutrir esta consciência através de vários meios – sons, imagens,
contato direto, visitas e assim por diante – para manter a compaixão viva
dentro de nos”. Um contato que deve ser realizado de forma equilibrada, para
evitar sofrimento maior. Deixar-se habitar pelo sofrimento do mundo é forma de
manter aquecida sua memória, possibilitando o fluir da compaixão dentro de cada
um, e acionando as energias necessárias para as ações.
Captar o âmago da compaixão, segundo
Thây, é ser capaz de reconhecer o sofrimento físico, material e psicológico do
outro, bem como se envolver na pele do outro. Compadecer-se do outro é
presenciar seu sofrimento com o próprio olhar, é “sofrer com o outro”. Para que
haja, de fato, compaixão é necessário também romper com todo sentimento de
apego ou cobiça (tanha). É nesse
apego que está a raiz de todo o sofrimento para o budismo. A prática budista
possibilita “compreender vivencialmente o vazio último ou a não-existência
desse ´eu` e, como consequência, podemos nos libertar do impulso constante de
servir o ´eu`”. É aqui que reside a base do ativismo social budista, como
mostra com acerto Sallie King:
“Se a pessoa que eliminou o
´eu` se torna consciente de que uma ´outra` pessoa (ou ser sensiente) está
sofrendo, a resposta natural é fazer algo para aliviar a dor, assim como
faríamos naturalmente o que fosse necessário para aliviar nossa ´própria` dor;
isto é, a dor de um ´outro` é nossa ´própria` dor. Quando o sofrimento se torna
agudo e disseminado, como aconteceu com o povo vietnamita durante a guerra,
então presenciamos centenas de milhares de monges, monjas e leigos atuando de
forma não-violenta, para dar fim a ele”.
Para o exercício de afirmação da
mente alerta, requer-se também a busca da paz interior. Para isso contribui a
prática da respiração consciente e o equilíbrio interior. Na contramão da
tendência ocidental, voltada para a produtividade e a lógica dos resultados,
Tich Nhât Hanh propõe a atenção permanente ao caminho, e não somente aos
objetivos. Há que parar para se trabalhar e refletir com calma e paciência
sobre os passos seguintes, mas também, em alguns casos, parar sem objetivo
definido. Diz o pequeno monge: “Precisamos aprender a parar de vez em quando a
fim de ver com nitidez”. É o sagrado momento para a “cura” do sujeito. Algo
semelhante diz Thoma Merton, em seu belo livro, Homem algum é uma ilha (1955). Sublinha ali a importância do
desapego como condição essencial para a paz interior. Não é só mediante a ação
e o trabalho que se processa o crescimento do ser. Há necessidade de “pausas” e
“silêncios” para essa modelação da subjetividade. Diz ele:
“Há ocasiões, portanto, em que,
para guardarmos a nossa existência, temos simplesmente de ficar sem fazer nada.
E para um homem que se deixou arrastar completamente fora de si por sua
atividade, nada é mais difícil do que ficar em sossego, sem fazer nada. O
próprio ato de repousar é o ato mais difícil e mais corajoso que ele pode
realizar: e, muitas vezes, está acima de suas forças”.
E nessa busca da paz interior,
sublinha Thây, há que manter vivo o otimismo, apesar das sombras existentes.
Indica que o cultivo da paz interior e da capacidade de sorrir, são essenciais
para irradiação da fragrância da paz no meio envolvente. É retomar o “sorriso
de Buda”, em resposta ao discípulo Mahakashyapa, que reage com sorriso ao giro
da flor de udumbara. A reação do discípulo não foi movida por pensamento, mas
por sensibilidade e atenção. Daí pôde perceber a flor e sorrir. Na verdade, “a
técnica de estar alerta faz com que você retorne a si mesmo para que a criança
surja como uma realidade maravilhosa. Você pode, então, vê-la sorrir e dar-lhe
um abraço”.
Toda a engajada reflexão de Tich
Nhât Hanh sugere que o exercício espiritual não está restrito a um espaço
privilegiado, mesmo que seja o do templo. Todos os lugares são propícios ao
crescimento interior. O cotidiano é a via possível da irradiação espiritual e o
instante seu momento de celebração. A meditação deve acontecer em qualquer
lugar. Todo ato envolve um ritual: “Se você está lavando pratos, deve
considerar esta atividade a coisa mais importante da vida. Se estiver usando o
banheiro igualmente: o ato de usá-lo será a coisa mais importante da vida. E assim
por diante. Cortar lenha é meditar. Carregar água é meditar. Mantenha a mente
alerta 24 horas por dia, não apenas nas horas que tiver reservado para uma
meditação formal, ou para leitura de textos sagrados ou oração”.
A generosidade que se requer para o
treinamento da mente alerta envolve também o campo inter-religioso. A
generosidade é a “capacidade de trazer alegria e felicidade a outra pessoa ou
ser vivo”. Num tempo marcado pelo pluralismo religioso, esta generosidade
implica a abertura de coração e braços para acolher com delicadeza e ternura o
diferente. A generosidade envolve todo um trabalho interior de quebra dos “nós”
ou das “formações internas” adversas, que impossibilitam a abertura do coração.
Para implementar esta perspectiva, Tich Nhât Hanh cunhou um termo que é muito
feliz: inter-ser. Em sua visão, “ser é inter-ser. Não podemos ser simplesmente
sozinhos ou isolados. Temos de interser com tudo mais”. Ao perceber “a natureza
da interexisitência, as barreiras entre nós e os outros se dissolvem, e a paz,
o amor e o entendimento tornam-se possíveis. Onde quer que exista o
entendimento, nasce a compaixão”. É um tema que inspirou teólogos do diálogo,
como Paul Knitter em suas produções recentes. Em sua obra, Sem buda não poderei ser cristão (2009), Paul Knitter sublinha que
“os budistas não se sentem chamados a uma relação eu-tu com um Deus, mas com
todos os seres sensientes: a uma compaixão universal para com os outros”. O
diálogo firma-se para Thâi como essencial nos dias atuais. Mas deve começar dentro
de cada um, no exercício de uma paz interior. É dela que brota o aroma
essencial para a abertura dialogal. E o diálogo requer igualmente o amor à
tradição e o profundo respeito às diferenças. São elas fator de enriquecimento
e de abertura para a acolhida singela do extraordinário capital simbólico do
mundo da alteridade.
(Publicado
na Amaivos – 15/06/2012:
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