O imprescindível desafio da
diferença religiosa
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
Resumo:
A acolhida da diversidade das
culturas foi sempre um grande problema para o ser humano, em razão da presença
restritiva do etnocentrismo. Essa diversidade, porém, não constitui uma
realidade negativa, mas um “fenômeno natural” e positivo. Assim como a diversidade das culturas, temos também diante
de nós a diversidade das religiões e o rico pluralismo religioso. Torna-se hoje
imprescindível acolher positivamente esse desafio, reconhecendo a dignidade da
diferença e somando forças com as distintas tradições religiosas para construir
um mundo melhor e mais digno, acalentado na paz e no respeito.
Palavras chave:
Globalização; Pluralismo;
Diversidade Religiosa; Alteridade; Diálogo Interreligioso;
A
acolhida da diversidade religiosa e o imperativo dialogal são desafios
fundamentais que se apresentam ao século XXI. Não há como desconhecer o enigma
que preside a diferença religiosa e os misteriosos caminhos que levam os seres
humanos a buscar um novo entendimento e compreensão em sua trajetória de vida.
O outro está aí, cada vez mais disponibilizado para uma nova interlocução
criadora, provocando os seus parceiros a uma ampliação de olhar e ao
enriquecimento de si com novas possibilidades. Uma nova conversação entre as
religiões, apesar de complexa e difícil, revela-se hoje providencial. Não no
sentido de apagar as diferenças, ou simplesmente buscar um denominador comum,
mas na perspectiva de encontrar “semelhanças na diferença”, almejando pistas
comuns em favor de um novo modo de atuação na história na luta contra o
sofrimento e na afirmação da dignidade da criação. O horizonte dialogal começa
a ocorrer quando os parceiros em busca de entendimento disponibilizam-se à se
apropriar de novas possibilidades. O que antes era apenas estranho, diferente e
inatingível, torna-se plausível e possível. É um processo que não acontece sem
disposições prévias, envolvendo um delicado dinamismo de abertura e
interpretação. Para se adentrar de fato no mundo da conversação com o outro, em
âmbito existencial, requer-se atitude e também vontade de assumir o “risco” de
se envolver no solo sagrado da alteridade. Trata-se de uma aventura exigente,
pois o diálogo verdadeiro implica despojamento e abertura sincera. Toda
conversação dialogal é um “lugar inquietante no qual o sujeito se dispõe a
arriscar toda a sua atual auto-compreensão ao levar a sério as posições do
outro, que também exige para si o reconhecimento de sua autenticidade e
verdade”
.
Tempos de globalização e pluralização
Um
dos traços que pontuam os processos modernos de globalização e pluralização é a
sua grande abrangência e velocidade. As distância se abrandam e os povos e
culturas ganham uma proximidade inédita. Como sinaliza Anthony Giddens,
“eventos distantes, quer econômicos ou não, afetam-nos mais direta e
imediatamente que jamais antes. Inversamente, decisões que tomamos como
indivíduos são com frequência globais em suas implicações”
.
Não ocorre apenas a interdependência econômica, a revolução das comunicações e
a internacionalização das imagens e produtos, mas o fenômeno toca o mundo
interior das pessoas, pontuando de forma diferenciada o tempo e o espaço da
vida privada. A globalização diz respeito não apenas à ordem exterior, ao que
está “lá fora” e distante dos indivíduos, mas é um fenômeno que atinge o mundo
“aqui dentro”, com vivo impacto nas dimensões mais íntimas e pessoais
.
Ela repercute nos sistemas tradicionais de família, nos valores estabelecidos,
nos padrões de vida e no mundo da religião. Provoca uma radical
desestabilização da vida cotidiana.
O
pluralismo moderno desaloja qualquer conhecimento auto-evidente. Os saberes
inquestionavelmente certos perdem sua plausibilidade, dando lugar às dúvidas e
interrogações. Nenhuma perspectiva ou interpretação permanece assegurada em sua
pretensão de validade. Os impactos disso no campo das religiões são incisivos.
Com o advento da sociedade pós-tradicional ou pós-moderna as tradições mudam
seu status. Elas não estão mais garantidas, mas necessitam de contínua
explicação ou justificação. Tornam-se provocadas à interrogação, revisão e
reflexividade
. O
contato entre elas passa a ser permanente, forçando-as a “se declararem” e
apontar com pertinência sua razão de ser.
Com
a impactante presença da diferença, envolvendo a consciência pluralista, passa
a vigorar um sentimento mais vivo da relatividade, que é distinta do
relativismo. Torna-se mais difícil, senão problemático,
“postular a centralidade da
cultura ocidental, a supremacia de sua perspectiva, ou o cristianismo como a
religião superior, ou o Cristo como o centro absoluto em relação ao qual todas
as demais mediações históricas são relativas (...). A pós-modernidade oferece
uma oportunidade para um novo e dramático sentido cristológico. A descoberta do
pluralismo é precisamente uma descoberta do ´outro`, de outras pessoas que são
diferentes e valiosas, embora excluídas ou suprimidas pelas grandes narrativas”
.
A diversidade
religiosa não é uma novidade na história, mas um traço que acompanhou o seu
desenvolvimento. O que é novo no tempo atual é a consciência mais viva dessa
pluralidade, de sua presença recorrente no campo da observação, na dinâmica da
urbanização mundial, nos modernos meios de comunicação e na facilidade de
acesso ao seu patrimônio diversificado
.
Torna-se hoje facilmente acessível a singularidade das diferenças e o
acolhimento dessa “dispersão benéfica do divino”. É uma presença plural que se
adentra no campo da percepção e abre inusitadas possibilidades. Na nova
perspectiva planetária, com traços evidentes de intercomunicação e
interdependência, cresce a consciência viva, ainda que dolorosa, da presença
múltipla das religiões e de suas respostas diversificadas ao Mistério supremo
.
Pluralização e desestabilização
Se
por um lado é verdade que a pluralização possibilita a afirmação de “sistemas
abertos de conhecimento”, ela suscita também a retomada das “heranças
confessionais”. O pluralismo traz consigo instabilidade, inquietudes e tensões,
pois instaura um desequilíbrio no mundo objetivamente construído e conversado.
Ele tende “a desestabilizar as auto-evidências das ordens de sentido e de valor
que orientam as ações e sustentam a identidade”
.
Diante da condição de incerteza que acompanha o pluralismo, muitos tendem a
reagir com sede de absoluto, mediante o acirramento identitário e a virulenta
defesa da “comunidade”. É assim que se explica a irrupção dos diversos
fundamentalismos ou integrismos no tempo atual. É uma típica reação de defesa
cognitiva face a insegurança de um mundo carregado de possibilidades e
interpretações. Muros protetores são então erguidos para amparar os indivíduos
e aliviá-los da “necessidade de reinventar o mundo a cada dia”. Com razão,
assinala P.Berger que os projetos restauradores incluem quase sempre uma reação
ao pluralismo, seja limitando o seu poder de ação ou mesmo suprimindo-o, para
evitar o pesado fardo da construção de alternativas
. É
verdade que existem aqueles que conseguem conviver com a dinâmica plural, que
respondem adequadamente às suas novas exigências de cognição. São os chamados
“virtuosos do pluralismo”. Eles representam, porém, um campo minoritário, pois
a maior parte das pessoas resistem aos novos desafios e as instituições
existentes buscam garantir para elas um mundo “livre de surpresas”. Elas “criam
´programas` para a execução da interação social e para a ´realização` de
currículos de vida. Elas fornecem padrões comprovados segundo os quais a pessoa
pode orientar seu comportamento”
.
Nada mais alentador para os indivíduos do que estruturas de plausibilidade
estáveis e coerentes, com grau preciso de objetividade. As respostas nelas se
encaixam com facilidade, evitando o risco da interpretação. É justamente esse
mundo da objetividade garantida e assegurada que as forças da modernização e
pluralização dessarranjam
.
Caminhos de interação
O
grande desafio que acompanha o limiar do século XXI é a busca de um novo
entendimento entre as culturas e religiões. Trata-se do desafio de acolher a
“dignidade da diferença”. A pluralidade de opções religiosas e espirituais não
deve ser vista como um mal, ou simplesmente um dado conjuntural, fadado a
encontrar o seu acabamento ou remate numa pretensa ordem unitária. Há que
resistir a essa “obsessão pela unidade” e saber celebrar com alegria a
musicalidade de uma sinfonia que é sempre adiada. Em resposta a um projeto da
UNESCO de combate ao racismo, o antropólogo Lévi-Strauss escreveu em 1950 um
importante manifesto cultural de defesa da diversidade das culturas. Tinha como
alvo o posicionamento evolucionista e sua idéia de progresso. O pensador
francês lança-se em defesa dessa diversidade, que arriscava ser abafada pelo
mote da uniformidade e monotonia:
“É a diversidade que deve
ser salva (...). É necessário, pois, encorajar as potencialidades secretas,
despertar todas as vocações para a vida em comum que história tem de reserva; é
necessário também estar pronto para encarar sem surpresa, sem repugnância e sem
revolta o que estas novas formas sociais de expressão poderão oferecer de
desusado. A tolerância não é uma posição contemplativa dispensando indulgências
ao que foi e ao que é. É uma atitude dinâmica, que consiste em prever, em
compreender e em promover o que quer ser. A diversidade das culturas está atrás
de nós, à nossa volta e à nossa frente”.
Ao
defender a diversidade das culturas, Lévi-Strauss busca reagir ao etnocentrismo
exacerbado, que desconhece e rebate a alteridade, entendendo-a como um
escândalo ou desvio. Busca sublinhar que essa diversidade é, antes, um
“fenômeno natural, resultante das relações diretas ou indiretas entre
sociedades”
. O
etnocentrismo, porém, não é um mal em si, como assinala Lévi-Strauss. É um
traço que acompanha todo ser humano em sua defesa de identidade. Toda cultura
vem movida por uma peculiar dinâmica de resistência, que assinala sua vontade
“de ser ela mesma”. A defesa da identidade e da convicção não é intrinsecamente
problemática, pode, porém, vir a ser perigosa na medida em que foge do controle
.
É em situações de conflito que a questão da identidade vem à tona com vigor,
quando a cálida experiência da comunidade entra em crise ou colapso. Nesse
momento, ela se introduz com barulho e fúria. Marcar a identidade é marcar a
diferença e singularidade. Sua busca
“não pode deixar de dividir
e separar. E no entanto a vulnerabilidade das identidades individuais e a
precariedade da solitária construção da identidade levam os construtores da
identidade a procurar cabides em que possam, em conjunto, pendurar seus medos e
ansiedades individualmente experimentados e, depois disso, realizar os ritos de
exorcismo em companhia de outros indivíduos também assustados e ansiosos”.
O limite do
etnocentrismo se instaura quando se firma uma impermeabilidade absoluta ou uma
incomunicabilidade com o outro: “nós somos nós, eles são eles”. Isso sim, é
problemático e lesivo. E o resultado previsível é o de “solilóquios em choque”.
Há que buscar novos espaços de comunicação e entendimento, ou seja,
“modos de pensar que sejam
receptivos às particularidades, às individualidades, às estranhezas,
descontinuidades, contrastes e singularidades, receptivos ao que Charles Taylor
chamou de ´diversidade profunda´, uma pluralidade de maneiras de fazer parte e
de ser, e que possam extrair deles – dela – um sentimento de vinculação, de uma
vinculação que não é abrangente nem uniforme, primordial nem imutável, mas que,
apesar disso, é real”.
Em
verdade, a diferença entre as culturas não é um impedimento para o diálogo, mas
sua possibilidade. É esta diferença que faculta o encontro fecundo entre as
mesmas
.
Acentuar a idéia de “choque de civilizações” ou de culturas, como o fez Samuel
Huntington no início dos anos 1990, é ignorar a dinâmica que as preside. A
reflexão antropológica nos faz recordar constantemente que os sistemas
culturais não são entidades fechadas e rígidas, mas em contínuo processo de
modificação. Ao enquadrar “cultura” e “civilização” como objetos fixos e
reificados, e sobretudo acentuar mais a distância entre o “mundo familiar” e o
“mundo do outro”, com suas fronteiras problemáticas, quebra-se a compreensão
dinâmica e turbulenta dessas realidades, diminuindo tremendamente a
possibilidade de interação. Reagindo ao cientista político de Harvard, o
palestino Edward Said identificou em sua tese não apenas um “choque de
definições”, como também um “choque de ignorância”. A seu ver,
“Huntington é um ideólogo,
alguém que quer transformar ´civilizações` e ´identidades` no que elas não são:
entidades fechadas, lacradas, que foram expurgadas da miríade de correntes e
contracorrentes que animam a história humana, e que ao longo dos séculos
tornaram possível para essa história incluir não apenas guerras de religião e
conquista imperial, mas também ser uma história de trocas, fertilização mútua e
compartilhamento”.
Na
tese defendida por Samuel Huntington, o mais sério risco para o futuro da
humanidade estaria relacionada com o conflito entre as civilizações diferentes,
sobretudo no âmbito cultural. E chama a atenção para a ameaça que acompanha o
ressurgimento islâmico. Sua análise tende a acentuar o toque de intolerância
que vem acompanhando a relação entre sociedades muçulmanas e cristãs a partir
da década de 1980, e a presença decisiva dos muçulmanos em muitos dos conflitos
de linha de fratura que pontuaram a década de 1990. O diagnóstico que apresenta
é duro: “É o islã uma civilização diferente, cujas pessoas estão convencidas da
superioridade de sua cultura e obcecadas com a inferioridade de seu poderio”
.
Mediante uma linguagem figurativa, Huntington acentua a distância entre o mundo
ocidental, considerado normal, aceitável e familiar e o “mundo do islã”,
pontuado por “fronteiras sangrentas e contornos bojudos”. Esta insistência na
divisão e no choque, bem como nas artimanhas necessárias para o avanço ocidental,
acabou por favorecer a expansão da guerra fria, em novos moldes
.
O triste episódio ocorrido em setembro de
2001, com o ataque às Torres Gêmeas (World Trade Center), interpretado como um
“ataque à América”, acirrou ainda mais essa disparidade.
Em favor da “dignidade da
diferença”
Ao
se defender a importância do diálogo e intercâmbio entre as civilizações,
culturas e religiões, não se está desconhecendo ou minimizando as tensões e
conflitos que envolvem a modernidade no tempo atual. Não se pode camuflar o
“lado sombrio” que pontuou o século XX e continua a ameaçar o século XXI. O
século que passou foi “o mais assassino de que temos registro, tanto na escala,
frequência e extensão da guerra que o preencheu, mas cessando por um momento na
década de 1920, como também pelo volume único das catástrofes humanas que
produziu, desde as maiores fomes da história até o genocídio sistemático”
.
O novo século não está livre dessa “escuridão”
,
e já começa com “crepúsculo e obscuridade”
.
Dentre os desenvolvimentos problemáticos que pontuam esse novo período está o
“regresso das catástrofes humanas maciças, que incluem a expulsão de populações
e o genocício, e com elas, a volta do medo generalizado (...). No final de
2004, estimava-se que havia 40 milhões de refugiados fora dos seus países e
muitos outros, cada vez mais, dentro deles, o que é similar ao número de
´pessoas deslocadas`em consequência da Segunda Guerra Mundial”
.
O mundo
continua carregado por temor, inquietação e perigos, não há dúvida. Isto também
no campo das religiões, com as ameaças constantes das identidades que se firmam
de forma rígida e nociva, mostrando muitas vezes o seu lado mortífero. São os
fundamentalismos que se espraiam por todo canto, reagindo às vezes
violentamente contra as ameaças plurais que sitiam a tradição
.
O impacto da diferença de crenças, acirrado pela globalização, suscita em
situações concretas a preocupação, a suspeita, a repugnância e a altercação. Há
uma violência potencial que circunda o campo das religiões. Se em alguns casos
a resistência cognitiva ao pluralismo e à globalização pode se dar mediante um
isolacionismo, em outros a reação pode ser diversa, suscitando um perigoso
ciclo vicioso de animosidade, rancor e violência
.
Felizmente,
há outros caminhos abertos para as tradições religiosas no tempo atual,
distintos do percurso da intolerância e da violência. Firma-se também, com
vigor, a proposta dialogal. Como bem pontuou o rabino Jonathan Sacks, em seu
belo livro sobre a
dignidade da diferença
(2002), “no nosso mundo, onde tudo está conectado, devemos aprender a nos
sentir enriquecidos e não ameaçados, pela diferença”. Há uma dignidade,
honradez e mistério no mundo da alteridade, que deve ser acolhido com
generosidade e alegria. É na dinâmica de relação com o outro que se tece a
própria identidade. Não há como conhecer em profundidade a própria tradição
religiosa senão na medida em que se processa a abertura dialogal com respeito
às outras tradições. Como pontuou o místico catalão, Raimon Panikkar, “aquele
que não conhece senão sua própria tradição, não a conhece em profundidade”
.
No contato, atenção e abertura às outras tradições religiosas vem favorecida a
percepção de aspectos inéditos do Mistério, que escapam à visada da própria
tradição de pertença e domiciliação. A vizinhança interreligiosa faculta a
experimentação e o aprendizado de “coisas a respeito de Deus e de nós mesmos e
do nosso mundo que jamais poderíamos aprender sozinhos. A nossa relação com os
outros é uma forma de dar profundidade à nossa própria espiritualidade”
.
O
diálogo não é um mero “rebuliço sonoro”, mas é uma arte essencial que marca a
dinâmica humana. Na visão de um dos grandes pensadores do século XX, Hans
George Gadamer (1900-2002), o diálogo é “um atributo natural do homem”, que ocorre
mediante a linguagem
.
Distintamente do intercâmbio que se trava na ruidosa vida social, o diálogo
traduz a comunicação recíproca e o encontro entre duas pessoas com a
peculiaridade de sua visão e imagem do mundo. São dois mistérios que se
encontram, que partilham suas experiências e buscam se compreender mutuamente,
estando igualmente abertos para o recíproco enriquecimento. O diálogo não
apaga, porém, a diferença do outro, que permanece velado por um “mistério
intransponível”. É um exercício essencial de ampliação da singularidade, pois
deixa uma marca nos parceiros. O que revela o diálogo verdadeiro, sublinha
Gadamer, “não é termos experimentado algo de novo, mas termos encontrado no
outro algo que ainda não havíamos encontrado em nossa própria experiência do
mundo (...). O diálogo possui uma força transformadora. Onde um diálogo teve
êxito ficou algo para nós e em nós que nos transformou. O diálogo possui,
assim, uma grande afinidade com a amizade”
.
O
diálogo, enquanto conversação verdadeira, é sempre uma operação inquietante e
arriscada, pois coloca em questão a auto-compreensão dos interlocutores. Nele
está implícito o desafio da provocação do outro, que reclama para si o
reconhecimento de sua singularidade e dignidade. Em toda conversação respeitosa
ocorre um processo de mudança, que pode ser mais radical, envolvendo uma
experiência de conversão, ou mais controlada, embora também autêntica.
Igualmente nesse caso ocorre a apropriação de uma nova possibilidade para o
sujeito, que vê seu mundo enriquecido pelo toque da alteridade
.
Dentre
as distintas formas de diálogo situa-se o diálogo interreligioso. Ele envolve
“não só o colóquio, mas também o conjunto das relações interreligiosas,
positivas e construtivas, com pessoas e comunidades de outras confissões
religiosas, para um conhecimento mútuo e um recíproco enriquecimento”
.
É um diálogo que se distingue do ecumenismo, que em sentido estrito vem
entendido como o conjunto de esforços e manifestações que visam a promoção da
unidade dos cristãos. O diálogo interreligioso tem um alcance mais amplo,
embora esteja ligado ao movimento ecumênico por laços de muita proximidade.
O
exercício do diálogo interreligioso requer disposições que são fundamentais.
Vale sublinhar, em primeiro lugar, a atitude de humildade. A abertura ao outro
implica um gesto essencial de despojamento, de deslocamento do sujeito, que
deixa de ser o centro de referência para poder abrir espaço ao mundo da
alteridade. Sem consciência da vulnerabilidade do sujeito não pode haver verdadeiro
acolhimento e hospitalidade. Sentimentos
de apego, de hybris arrogante ou
superioridade ética são novivos e letais para o diálogo. O diálogo exige esse
esvaziamento de si para poder deixar valer o outro.
O
diálogo pressupõe também simpatia e atenção ao diferente. Há que lançar-se ao
outro, expor-se ao seu enigma e mistério com a cuidadosa aplicação do espírito,
estar atento e vigilante para adentrar-se nas suas entranhas e fronteiras,
sintonizar-se com sua vida. A pensadora francesa, Simone Weil, dedicou-se com
afinco ao tema. Para ela, a atenção “consiste em suspender o pensamento, em
deixá-lo disponível, vazio e penetrável ao objeto”, com a mente esvaziada e à
espera, “sem buscar nada, porém disposta a receber em sua verdade o objeto que
nela vai hospedar-se”
.
A atenção é para a mistica francesa um dom único e singular, “a forma mais rara
e mais pura da generosidade”
.
E a ela seguem-se a hospitalidade e a compaixão.
Esse encontro
traduz ainda a busca sincera do mistério que a todos envolve e ultrapassa. O
diálogo não pode, em hipótese alguma, ser plataforma de conversão para uma
determinada religião. Ele “tem seu próprio valor”, é auto-finalizado, tendo em
grande estima o dado irreversível da liberdade religiosa. Quando sincero, o
diálogo “supõe, por um lado, aceitar reciprocamente a existência das
diferenças, ou também das contradições, e, pelo outro, respeitar a livre
decisão que as pessoas tomam em conformidade com a própria consciência”
.
O
diálogo genuíno exige o respeito às identidades. Nele os interlocutores entram
com a alegria de suas convicções. É a própria autenticidade e sinceridade do
diálogo que convoca os parceiros a embarcarem nessa travessia, mantendo viva a
integralidade de sua própria fé. Da mesma forma em que a convicção pessoal vem
reconhecida e exigida na conversação dialogal, o mesmo vale para a convicção do
outro. Há que resgatar assim o valor da convicção religiosa do outro e a
percepção de que esta está fundada numa experiência autêntica de revelação. É
dessa forma que se processa uma legítima interlocução criadora, que envolve
troca de dons.
Nesse
itinerário dialogal o sujeito se lança à “auto-exposição” no mundo do outro. E
todos saem modificados nesse processo, na medida em que se provoca a ruptura da
monologização. O diálogo consiste numa “aventura arriscada”, envolvendo uma
atitude essencial de busca profunda. Deve estar acompanhado de cortesia e
delicadeza, e também animado pela convicção de que se caminha num “solo
sagrado”
. O
diálogo supõe ainda uma dimensão espiritual que ajuda a manter aceso na
consciência o caráter inefável da realidade. É dela que se irradiam, com uma
fragrância única, os toques singulares do amor desinteressado, da gratuidade,
da atenção, da cortesia, hospitalidade e compaixão.
Há uma dimensão
ética envolvida no diálogo interreligioso que não pode ser escamoteada. As
religiões tem muito a contribuir em favor da paz mundial, da renovação
espiritual e da afirmação de um horizonte de sentido. Elas são portadoras de um
importante patrimônio de valores capazes de conferir a todos uma fidelidade de
fundo e uma essencial energia de alegria e esperança. O diálogo interreligioso
ganha hoje um significado prático fundamental, em favor de uma ecumene da
solidariedade e da compaixão. Firma-se como base catalizadora dessa ecumene
planetária a candente questão do sofrimento humano e do grito da terra. É em
torno desse problema do sofrimento, como bem lembrou o teólogo Johann Baptista
Metz, que se situa “a base para uma coalizão das religiões em vista da salvação
e promoção da compaixão social e política no nosso mundo"
.
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(Artigo publicado na Revista
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