terça-feira, 15 de outubro de 2024

Cuidar até o fim

Cuidar até o fim: em defesa dos cuidados paliativos

 

Faustino Teixeira

 

 

Estou terminando a leitura do excelente livro de Ana Claudia Quintana Arantes: Cuidar até o fim (Rio de Janeiro: Sextante, 2024). Ela é uma das profissionais de saúde mais competentes para lidar hoje no Brasil com a experiência do morrer. Sua proposta de trabalho é encantadora, a de cuidar dos enfermos até seus dias finais, sempre com o intuito de levar a viver a morte como experiência de paz. 

 

Gosto em particular dos capítulos 9 e 10, que abordam, sucessivamente as questões: “Como é o morrer?” e “Futilidades”. No capítulo 9 ela desenvolve a singular questão da dissolução dos elementos que ocorrem no processo do morrer.

 

O primeiro elemento que se dissolve, segundo Ana, é a Terra, o corpo. Ela sublinha: “O paciente pode pesar 30 quilos, mas ao vivenciar a dissolução da Terra, terá a sensação de que carrega 5 toneladas. É como se o corpo se fundisse com o mundo, e mobilizá-lo fosse tão pesado quanto empurrar o planeta”. A fraqueza, como lembra Ana, “não está relacionada com a falta de nutrientes. Está relacionada à morte, porque ninguém morre forte, só quem é assassinado ou morre de uma causa súbita”.

 

O segundo elemento que se dissolve é a Água. Nesse momento, como lembra a autora, o paciente vive uma fase de introspecção. Ele “fica mais pacífico e reservado, silencioso, às vezes até mantém os olhos fechados. Ele está num profundo mergulho interior”. É alguém que vai “em busca da essência da vida”. Nesse caso, para a nossa surpresa, “é mais confortável estar discretamente desidratado”. Infelizmente, dado o despreparo dos profissionais de saúde, nas nossas UTIs, não se respeita esse processo, e se faz recurso à hidratação indevida.

 

Em seguida vem a dissolução do Fogo: “Nesse momento o paciente começa a mostrar o que há de mais bonito dentro dele. A nível celular, é como se cada uma das células tomasse consciência de que seu tempo está acabando e se empenhasse em mostrar o melhor de si. Por vezes o paciente melhora tanto que parece nem estar doente”. Algo semelhante acontece com determinadas árvores, que no momento derradeiro favorecem a florada mais linda, e depois fenecem. Para Ana, essa melhora constitui “a manifestação simbólica da nossa expressão no mundo; cada pedaço de nós está determinado a deixar sua mensagem” e se despedir. 

 

Por fim, a dissolução do Ar. É quando o sopro vital que nos foi doado no nascimento vem “devolvido ao Universo porque nossa missão se cumpriu”. É quando a respiração fica estranha, com muitas variações, e  se dá o “parto da alma”. Segundo Ana, “não é incomum que nesse momento ocorra algo singelo: uma lágrima cai, mesmo que o paciente esteja desidratado e vivenciando um processo de morte absolutamente natural”. Aquela lágrima talvez represente a hora em que a alma nasceu, e o último suspiro, o ponto final de uma trajetória de vida.

 

O capítulo 10 traz logo no início uma questão bem importante. Trata-se da tentativa que muitos fazem em forçar a alimentação para quem está padecendo. Não é necessário ficar assustado com isso, pois a alimentação não adiciona nenhuma regeneração ao corpo que está adoecido. Muitas vezes, o corpo só diz não à alimentação quando ela deixa de ser necessária. Em casos precisos, diz Ana, “interromper o uso de sonda para alimentação é uma ação ética”, e que corresponde ao desejo do paciente. E essa autonomia merece o devido respeito.

 

Ana reage também a determinadas situações onde os familiares querem manter o controle do caso, questionando inclusive a utilização de certos medicamentos paliativos. Tendem, por exemplo, a relacionar a morte à utilização de recursos como a morfina ou outros medicamentos. E diz, com acerto: “sabemos que a causa da morte foi a doença; a morfina apenas tornou o processo menos doloroso”. E acrescenta algo fundamental: apenas “90% das dores humanas físicas se resolvem com medicamentos”.

 

Ana argumenta: “A morte é a nossa maior experiência de decisão sobre renunciar ao controle. Entregar o controle, deixando claro para quem cuida qual é o nosso limite, pode ser a única decisão que precisamos tomar. Decidir como será a nossa cena final pode ter mais relação com tudo o que fizemos ao longo da vida, e não se limitar a escolher como será o nosso último respiro”.

 

A grande questão para nós que nos interessamos por tema assim tão fundamental, é a visão dominante na medicina a favor da distanásia, ou seja, “todo procedimento de intervenção diagnóstica e terapêutica que promove o prolongamento ou o aprofundamento da experiência do sofrimento”. É algo que, sinceramente, ninguém deveria experimentar... Trata-se, em verdade, do “uso obsessivo de recursos, resultando no aumento do sofrimento do paciente”. São diversos procedimentos que ocorrem, que na prática, são inúteis ou desnecessários.

 

A tarefa do cuidador, lembra Ana, é de estar profundamente atento a toda a dinâmica do paciente: “Quem está cuidando de uma pessoa em seu tempo final sempre deve estar atento ao sofrimento causado pelos tratamentos inúteis e se preparar para fazer perguntas difíceis à equipe médica, como ´De que serve colocar meu pai na UTI? Ele vai voltar à vida se for para a UTI?”. Não é incomum encontrar profissionais de saúde que nesses casos falam em milagres...

 

E Ana volta ao seu argumento fundamental, que se baseia na tese dos cuidados paliativos: “A meu ver, desaconselhar ou até suspender tratamentos fúteis que só prolongam o sofrimento de um ser humano é uma conduta profundamente ética e compassiva”. Sem dúvida, estou profundamente de acordo com ela.

 

Com sua ênfase na defesa dos cuidados paliativos, Ana se contrapõe àqueles que defendem a eutanásia. A eutanásia “é a eliminação do sofredor, enquanto o cuidado paliativo é o alívio do sofrimento.” A autora justifica sua opção: entre o alívio e a eliminação, ela prefere ficar com o alívio. Não que ela seja contra a eutanásia. Ela não se diz nem contra nem a favor. E argumenta: “Não cabe a mim dizer a um paciente que deseja a eutanásia que isto é um absurdo, porque não sei o fardo que ele carrega”. 

 

Ela sublinha, porém, que não faz eutanásia, e que mês que ela fosse liberada no Brasil, também provavelmente não faria. E argumenta que que a sociedade brasileira não tem ainda a “maturidade humana para discutir um tema tão complexo”. Para ela, um, debate mais honesto sobre o tema só poderia, de fato, ocorrer quando pelo menos 90% dos brasileiros pudessem ter acesso aos cuidados paliativos.

 

O grande problema, a meu ver, está no despreparo dos profissionais de saúde no Brasil em lidar com a questão dos cuidados paliativos. É duro ouvir de Ana a confirmação de que apenas 0,3% da população que precisa de alívio para o sofrimento recebe algum tipo de cuidado paliativo. O que significa, na prática, que a maioria dos pacientes terão que lidar com as dores da distanásia.

 

Eu concordo com Ana, em sua defesa da ortotanásia: que se traduz pelo “ pelo respeito pelo tempo da morte”. Ou seja, o trabalho efetivo para que os pacientes possam receber todos os cuidados para aguardar esse tempo com a serenidade possível, sem dor, sem incômodos”. 

 

Ana fala também da presença em nosso país da mistanásia, ou seja, a “total ausência de cuidados” no tratamento das doenças terminais. São situações dolorosas onde os pacientes não têm acesso “a diagnóstico, a nenhum tratamento e muitas vezes sequer obtêm uma consulta ou um exame para avaliar a gravidade atual de sua doença”. E ela cita casos de médicos que simplesmente decretam a irreversibilidade da doença e tiram o time de campo, recorrendo a desculpas diversificadas, como a dificuldade de agenda...

 

Segundo Ana, “simbolicamente, a morte de um ser humano pode acontecer quando ele perde a capacidade de estar presente na própria vida e se torna um zumbi existencial”. É duro observar o dado levantado por Ana, com respeito à taxa de suicídio entre os idosos, que se torna mais elevada entre aqueles que estão na faixa dos 80 anos. São questões difíceis, que merecem uma reflexão mais apropriada e aprofundada.

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