terça-feira, 15 de outubro de 2024

Considerações em torno do conto de Clarice: A imitação da rosa

 Considerações em torno do conto de Clarice:

“A imitação da rosa”

 

Faustino Teixeira

 

Estou seguindo o mini curso ministrado por Yudith Rosenbaum (USP) sobre alguns contos de Clarice e também o romance Paixão Segundo GH. Ontem, 09 de outubro de 2024, foi a segunda aula do curso, onde ela abordou o maravilhoso conto “A imitação da Rosa”. A beleza e profundidade da aula serviram de inspiração para uma releitura do conto, favorecendo uma reação dialogada.

 

É sabido que esse conto de Clarice exerceu um impacto muito forte em algumas pessoas, como por exemplo Caetano Veloso e Marina Colassanti. Essa escritora narrou, em breve apresentação do conto, no livro “Clarice Lispector na cabeceira”, que Laura provocou nela “um abismo”. Foi um conto que, segundo Colassanti, a fez vislumbrar a loucura. O mesmo ocorreu com Caetano Veloso, para quem a leitura do conto indica um convite à “entregar-se com ela (a personagem Laura) à indizível luminosidade da loucura” (cf. B.Moser, Clarice, p. 341).

 

Trata-se de um conto longo, mas de profundidade quase inalcançável. No início, somos apresentados ao tema, sem que a personagem principal, Laura, apareça. Isso já nos evidencia, a sua situação de “invisibilidade” na sociedade. O que vemos na primeira página, logo no início, é a presença de seu marido, Armando. Depois fala-se na casa, e, por fim, no “vestido marrom” da personagem que ainda não vem nomeada. Ela só será nomeada na segunda página do conto. 

 

O “vestido marron” já nos indica a posição “marginalizada” da personagem: um vestido sem brilho. O conto nos dá a entender que Laura tinha vivido anteriormente um momento muito difícil na sua vida: talvez uma internação psiquiátrica. Agora, segundo o conto, “ela estava de novo ´bem`”. Esse colocar entre aspas o “bem”, significa que a situação não estava assim tão sob o seu controle.

 

No conto, Laura estava aguardando a chegada de seu marido, Armando, e os dois iriam jantar com Carlota e João. A narradora nos diz que os dois iriam de ônibus visitar a amiga, e ela estaria ali “olhando como uma esposa pela janela”, com seu braço pousado no braço do marido. Esse olhar “enquadrado”, que não vê o mundo de fora, mas de dentro do ônibus, é também uma expressão da situação vital de Laura. 

 

Na descrição da narradora, o encontro dos dois casais colocaria novamente em cena a dinâmica de submissão de Laura. Armando conversaria com Luis, como geralmente ocorre, e ela “falaria com Carlota sobre coisas de mulheres”, e indica que ela estaria na conversa em posição submissa, diante da rudeza e autoritarismo da amiga. A palavra “insignificância” marca na primeira página do conto, a situação efetiva que Laura ocupava no mundo.

 

Quando começa a pensar em se preparar para o jantar com os amigos, Laura se vê diante do espelho: “seu rosto tinha uma graça doméstica, os cabelos eram presos com grampos atrás das orelhas grandes e pálidas”. No seu rosto, enfim, “um ar modesto de mulher”. Ela sequer se preocupava em engordar, pois o principal para ela “nunca fora a beleza”. E seu marido, Armando, não se incomodava com as mudanças em sua silhueta, e dizia: “De que me adiantaria casar com uma bailarina”.

 

Talvez pudéssemos captar mesmo no início do conto, algum toque de luz, como mostrou Yudith, quando a narradora fala no “vestido marron com gola de renda creme” que Laura iria vestir. O passo da “renda creme” quebra o embaçamento do vestido marron.

 

Nos tempos em que Laura estudou no colégio Sacré Coeur ela chegou a tentar ler a obra A imitação de Cristo, que tinha sido indicado para ela. E ela fez esse exercício, diferentemente de Carlota, buscando ler a obra com “ardor de burra”. Leu sem entender... e pedia a Deus para perdoá-la. Pressentia que uma tal leitura talvez pudesse dar a entender para ela que imitar a Cristo é se perder na luz, e se perder perigosamente.

 

Aliás, a luz é uma expressão que aparece muitas vezes no conto, fazendo contraponto às sombras, mas também indicando o salto da loucura. Na luz também se pode perder.

 

Naquele seu momento, Laura estava mais “tranquila” quando amparada por seu sofá, “arrumada e fria”, como se estivesse numa “casa alheia”. E se dava conta igualmente que o tempo passava... A narradora sublinha: “Se uma pessoa perfeita do planeta Marte descesse e soubesse que as pessoas na Terra se cansavam e envelheciam, teria pena e espanto”.  

 

Era uma situação que se aplicava a Laura, que não sabia bem o que significava ser gente, “sentir-se cansada, em diariamente falir”. Não tinha grande ambição: apenas aquela ambição rotineira de “ser a mulher de um homem” e poder agradecer “sua parte diariamente falível”.

 

O que ela sentia, em verdade, como tantas outras mulheres de tantas partes do mundo, era a fadiga de cada dia e a dinâmica de impermanência da vida: a percepção de que todo ser humano é “perecível”.

 

Laura até conseguia abrir seus olhos, e quem sabe vislumbrar um horizonte diverso, mas logo se dava conta de que eles estavam “pesados de sono”. Deixava-se render “com um sorriso confortável de cansaço” na “água familiar e ligeiramente enjoativa”. Ainda assim, como uma boa esposa, passou as camisas de Armando. 

 

Na manhã, Laura tinha ido à feira, tendo se demorado lá... E essas saídas de Laura vinham sempre acompanhadas de certo constrangimento, pois significava certa ruptura com seu “lugar discreto e apagado” de dona de casa. A saída para a feira significava igualmente uma mexida naquela familiaridade , na sua “intima riqueza da rotina”.

 

Tinha adquirido na feira “miúdas rosas silvestres” que as colocou num jarro de flores. A intenção era presentear a amiga Carlota na visita para o jantar. Foi com muito cuidado que Laura arrumou de manhã mesmo as rosas no jarro. Na luz da sala, elas revelavam todo o seu esplendor, “estavam em toda a sua completa e tranquila beleza”.

 

E Laura imaginou, com curiosidade, nunca ter visto “rosas tão bonitas”! Olhou as rosas com atenção e surpresa: “Sinceramente, nunca vi rosas tão bonitas”. E a atenção transformou-se logo em “suave prazer, e ela não conseguia mais analisar as rosas, era  obrigada a interromper-se com a mesma exclamação de curiosidade submissa: como são lindas”.

 

Numa experiência de prazer que envolvia certo toque de eroticidade, refletiu: “Eram algumas rosas perfeitas, várias no mesmo talo. Em algum momento tinham trepado com ligeira avidez umas sobre as outras mas depois, o jogo feito, haviam se imobilizadas tranquilas”, como num jogo sexual.

 

Aquelas rosas eram “perfeitas na sua miudez, não de todo desabrochadas, e o tom rosa era quase branco”. A beleza era assim tamanha que pareciam artificiais. Podia-se sentir “o rubor circular dentro delas”, numa beleza indescritível. A beleza era tão extrema a ponto de incomodar Laura. E ela repete a expressão “incomodar” duas vezes. Na verdade, tudo o que traduzia luz em intensidade era motivo de perplexidade de Laura.

 

Aquilo era de tal modo precioso para Laura que a experiência de entregá-la a amiga passou a ser um motivo de muitas interrogações. Chegou a pensar em dispor para a sua empregada, Maria, recomendando-lhe deixar o presente antes para Carlota. Talvez fosse uma decisão “refinada”, a de entregar o presente para a amiga antes mesmo do jantar. Dar as rosas, pensou Laura, seria “quase tão bonito como as próprias rosas”.

 

Movida pela decisão, Laura buscou uma “velha folha de papel de seda” e, com muito cuidado, tirou as rosas do jarro, “tão lindas e tranquilas,  com os delicados e mortais espinhos. Queria fazer um ramo bem artístico. E ao mesmo tempo se livraria delas. E poderia se vestir e continuar o seu dia”. Aquela emoção diante da beleza das rosas acabou paralisando o projeto de Laura.

 

Foi quando então levantou um questionamento: dar ou não dar as rosas. Depois de reunir as rosas no buquê, hesitou... “afastou a mão que as segurava, olhou-as a distância, entortando a cabeça e entrefechando os olhos para um julgamento imparcial e severo”. E em si mesma, suave,  insinuou: “Não dê as rosas, elas são lindas”. E de forma mais suave ainda, seu pensamento revelou: “Não dê, elas são suas”. Aquela Laura, sempre submissa, podia agora expressar algo que vinha do fundo de si, ela, cujas coisas “nunca eram dela”. Aquelas rosas... sim: “Olhou-as com incredulidade: eram lindas e eram suas. Se conseguisse pensar mais adiante, pensaria: suas como nada até agora tinha sido”.

 

Laura vivia, assim, um impasse. Teria que em breve privar-se delas, “e nunca mais então pensaria nelas pois elas teriam morrido - elas não iam durar muito, por que então dá-las? O fato de não durarem muito parecia tirar-lhe a culpa de ficar com elas, numa obscura lógica de mulher que peca. Pois via-se que iam durar pouco (ia ser rápido, sem perigo)”.

 

Mesmo antes de mudar de roupa, ainda destinou um olhar derradeiro sobre as rosas. Olhar “aquela tranquila isenção das rosas”. Pensava: “Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para ter. E, sobretudo, nunca para se ´ser`. Sobretudo nunca se deveria ser a coisa bonita”.

 

As flores, naquela “luminosa tranquilidade” acabam passando para as mãos de Maria, mas antes foram retidas nas mãos de Laura, que buscou mantê-las “ um segundo mais consigo”. Eram, na verdade, a primeira coisa linda e sua que guardava nas maõs. E no segundo seguinte, as flores já estavam nas mãos de Maria, “sem nenhuma transição”. Elas “não eram mais suas”. E Laura não pôde sequer “tirar para si uma rosa”. Foi quando então a porta da rua bateu, e Laura, devagar, sentou-se “calma  no sofá. Sem apoiar as costas”. As rosas agora “faziam-lhe falta, Havia deixado um lugar claro dentro dela”. Esse lugar claro dava a entender uma ausência... uma loucura! “Na verdade, como a falta. Uma ausência que entrava nela como uma claridade. E também ao redor das marcas das rosas a poeira ia desaparecendo”.

 

Ela deveria estar pronta para receber Alfredo e com ele sair para o jantar: “Quando estivesse pronta ouviria o barulho da chave de Armando na porta”. A chave que penetraria “com familiaridade no buraco da fechadura”. Não adiantava mais ouvir o conselho de seu médico, que disse para ela não se esforçar por fingir que estava bem, pois na verdade ela “fugiu” dali embalada pela claridade das rosas. Armando não precisava mais disfarçar com seu “rosto expectante”. Ao adentrar em seu lar, Armando não encontrou mais a “mulher sua”. Não mais precisava recorrer à linguagem arranjada, “onde o medo e confiança se comunicavam”. Ele então, percebe de forma inesperada, e com horror, “que a sala e a mulher estavam calmas e sem pressa”.

 

Armando encontrou Laura “sentada com o seu vestidinho de casa. Ele sabia que ela fizera o possível para não se tornar luminosa e inalcançável”. Mas isso, de fato, aconteceu. Com a porta ainda aberta se deu conta de que Laura, sua mulher, “estava sentada no sofá sem apoiar as costas, de novo alerta e tranquila como num trem. Que já partira”

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