terça-feira, 15 de outubro de 2024

Ismael e Isaac, dois irmãos do espírito

 Ismael e Isaac, dois irmãos do espírito

 

A minha leitura bíblica hoje pela manhã, 14 de outubro de 2024, fez destacar um traço do etnocentrismo presente no texto de Paulo, na carta aos Gálatas. A forma como o apóstolo trata de Ismael, reflete, na prática o jeito que certos israelitas vêem os seus herdeiros no mundo do Islã. O nome Ismael, é de beleza única, “isma-el”, ou seja: “Deus o escuta”.

 

Infelizmente, Paulo nesta carta, passa-nos uma imagem sombria de Ismael. O apóstolo diz, primeiramente, que Ismael é filho da escrava enquanto Isaac é filho da livre. O filho da escrava, diz a carta, “nasceu segundo a carne”, enquanto Isaac nasceu “em virtude da promessa”. E porque Ismael também não traz consigo uma bonita promessa? Paulo sublinha que Hagar gerou “filhos para a escravidão”.  E a convicção paulina se firma em palavra que são duras: “Irmãos, não somos filhos de uma escrava; somos filhos da mulher livre”, e finaliza: “Não vos deixeis amarrar de novo ao jugo da escravidão” (Gl 4)

 

Em tempos que anseiam por diálogo, ler essa leitura foi difícil para mim. Viva Isaac e Ismael, os dois com a mesma dignidade. Isaac não pode sobreviver em nós “amputado de um irmão”, e não de um irmão qualquer, mas de “um garoto decidido a procura-lo onde quer que esteja, debaixo da terra ou no céu”. Os dois devem estar juntos na vida e no coração de todos, e não apenas no momento do enterre de seu pai Abraão, aquele que os trouxe à vida.

Considerações em torno do conto de Clarice: A imitação da rosa

 Considerações em torno do conto de Clarice:

“A imitação da rosa”

 

Faustino Teixeira

 

Estou seguindo o mini curso ministrado por Yudith Rosenbaum (USP) sobre alguns contos de Clarice e também o romance Paixão Segundo GH. Ontem, 09 de outubro de 2024, foi a segunda aula do curso, onde ela abordou o maravilhoso conto “A imitação da Rosa”. A beleza e profundidade da aula serviram de inspiração para uma releitura do conto, favorecendo uma reação dialogada.

 

É sabido que esse conto de Clarice exerceu um impacto muito forte em algumas pessoas, como por exemplo Caetano Veloso e Marina Colassanti. Essa escritora narrou, em breve apresentação do conto, no livro “Clarice Lispector na cabeceira”, que Laura provocou nela “um abismo”. Foi um conto que, segundo Colassanti, a fez vislumbrar a loucura. O mesmo ocorreu com Caetano Veloso, para quem a leitura do conto indica um convite à “entregar-se com ela (a personagem Laura) à indizível luminosidade da loucura” (cf. B.Moser, Clarice, p. 341).

 

Trata-se de um conto longo, mas de profundidade quase inalcançável. No início, somos apresentados ao tema, sem que a personagem principal, Laura, apareça. Isso já nos evidencia, a sua situação de “invisibilidade” na sociedade. O que vemos na primeira página, logo no início, é a presença de seu marido, Armando. Depois fala-se na casa, e, por fim, no “vestido marrom” da personagem que ainda não vem nomeada. Ela só será nomeada na segunda página do conto. 

 

O “vestido marron” já nos indica a posição “marginalizada” da personagem: um vestido sem brilho. O conto nos dá a entender que Laura tinha vivido anteriormente um momento muito difícil na sua vida: talvez uma internação psiquiátrica. Agora, segundo o conto, “ela estava de novo ´bem`”. Esse colocar entre aspas o “bem”, significa que a situação não estava assim tão sob o seu controle.

 

No conto, Laura estava aguardando a chegada de seu marido, Armando, e os dois iriam jantar com Carlota e João. A narradora nos diz que os dois iriam de ônibus visitar a amiga, e ela estaria ali “olhando como uma esposa pela janela”, com seu braço pousado no braço do marido. Esse olhar “enquadrado”, que não vê o mundo de fora, mas de dentro do ônibus, é também uma expressão da situação vital de Laura. 

 

Na descrição da narradora, o encontro dos dois casais colocaria novamente em cena a dinâmica de submissão de Laura. Armando conversaria com Luis, como geralmente ocorre, e ela “falaria com Carlota sobre coisas de mulheres”, e indica que ela estaria na conversa em posição submissa, diante da rudeza e autoritarismo da amiga. A palavra “insignificância” marca na primeira página do conto, a situação efetiva que Laura ocupava no mundo.

 

Quando começa a pensar em se preparar para o jantar com os amigos, Laura se vê diante do espelho: “seu rosto tinha uma graça doméstica, os cabelos eram presos com grampos atrás das orelhas grandes e pálidas”. No seu rosto, enfim, “um ar modesto de mulher”. Ela sequer se preocupava em engordar, pois o principal para ela “nunca fora a beleza”. E seu marido, Armando, não se incomodava com as mudanças em sua silhueta, e dizia: “De que me adiantaria casar com uma bailarina”.

 

Talvez pudéssemos captar mesmo no início do conto, algum toque de luz, como mostrou Yudith, quando a narradora fala no “vestido marron com gola de renda creme” que Laura iria vestir. O passo da “renda creme” quebra o embaçamento do vestido marron.

 

Nos tempos em que Laura estudou no colégio Sacré Coeur ela chegou a tentar ler a obra A imitação de Cristo, que tinha sido indicado para ela. E ela fez esse exercício, diferentemente de Carlota, buscando ler a obra com “ardor de burra”. Leu sem entender... e pedia a Deus para perdoá-la. Pressentia que uma tal leitura talvez pudesse dar a entender para ela que imitar a Cristo é se perder na luz, e se perder perigosamente.

 

Aliás, a luz é uma expressão que aparece muitas vezes no conto, fazendo contraponto às sombras, mas também indicando o salto da loucura. Na luz também se pode perder.

 

Naquele seu momento, Laura estava mais “tranquila” quando amparada por seu sofá, “arrumada e fria”, como se estivesse numa “casa alheia”. E se dava conta igualmente que o tempo passava... A narradora sublinha: “Se uma pessoa perfeita do planeta Marte descesse e soubesse que as pessoas na Terra se cansavam e envelheciam, teria pena e espanto”.  

 

Era uma situação que se aplicava a Laura, que não sabia bem o que significava ser gente, “sentir-se cansada, em diariamente falir”. Não tinha grande ambição: apenas aquela ambição rotineira de “ser a mulher de um homem” e poder agradecer “sua parte diariamente falível”.

 

O que ela sentia, em verdade, como tantas outras mulheres de tantas partes do mundo, era a fadiga de cada dia e a dinâmica de impermanência da vida: a percepção de que todo ser humano é “perecível”.

 

Laura até conseguia abrir seus olhos, e quem sabe vislumbrar um horizonte diverso, mas logo se dava conta de que eles estavam “pesados de sono”. Deixava-se render “com um sorriso confortável de cansaço” na “água familiar e ligeiramente enjoativa”. Ainda assim, como uma boa esposa, passou as camisas de Armando. 

 

Na manhã, Laura tinha ido à feira, tendo se demorado lá... E essas saídas de Laura vinham sempre acompanhadas de certo constrangimento, pois significava certa ruptura com seu “lugar discreto e apagado” de dona de casa. A saída para a feira significava igualmente uma mexida naquela familiaridade , na sua “intima riqueza da rotina”.

 

Tinha adquirido na feira “miúdas rosas silvestres” que as colocou num jarro de flores. A intenção era presentear a amiga Carlota na visita para o jantar. Foi com muito cuidado que Laura arrumou de manhã mesmo as rosas no jarro. Na luz da sala, elas revelavam todo o seu esplendor, “estavam em toda a sua completa e tranquila beleza”.

 

E Laura imaginou, com curiosidade, nunca ter visto “rosas tão bonitas”! Olhou as rosas com atenção e surpresa: “Sinceramente, nunca vi rosas tão bonitas”. E a atenção transformou-se logo em “suave prazer, e ela não conseguia mais analisar as rosas, era  obrigada a interromper-se com a mesma exclamação de curiosidade submissa: como são lindas”.

 

Numa experiência de prazer que envolvia certo toque de eroticidade, refletiu: “Eram algumas rosas perfeitas, várias no mesmo talo. Em algum momento tinham trepado com ligeira avidez umas sobre as outras mas depois, o jogo feito, haviam se imobilizadas tranquilas”, como num jogo sexual.

 

Aquelas rosas eram “perfeitas na sua miudez, não de todo desabrochadas, e o tom rosa era quase branco”. A beleza era assim tamanha que pareciam artificiais. Podia-se sentir “o rubor circular dentro delas”, numa beleza indescritível. A beleza era tão extrema a ponto de incomodar Laura. E ela repete a expressão “incomodar” duas vezes. Na verdade, tudo o que traduzia luz em intensidade era motivo de perplexidade de Laura.

 

Aquilo era de tal modo precioso para Laura que a experiência de entregá-la a amiga passou a ser um motivo de muitas interrogações. Chegou a pensar em dispor para a sua empregada, Maria, recomendando-lhe deixar o presente antes para Carlota. Talvez fosse uma decisão “refinada”, a de entregar o presente para a amiga antes mesmo do jantar. Dar as rosas, pensou Laura, seria “quase tão bonito como as próprias rosas”.

 

Movida pela decisão, Laura buscou uma “velha folha de papel de seda” e, com muito cuidado, tirou as rosas do jarro, “tão lindas e tranquilas,  com os delicados e mortais espinhos. Queria fazer um ramo bem artístico. E ao mesmo tempo se livraria delas. E poderia se vestir e continuar o seu dia”. Aquela emoção diante da beleza das rosas acabou paralisando o projeto de Laura.

 

Foi quando então levantou um questionamento: dar ou não dar as rosas. Depois de reunir as rosas no buquê, hesitou... “afastou a mão que as segurava, olhou-as a distância, entortando a cabeça e entrefechando os olhos para um julgamento imparcial e severo”. E em si mesma, suave,  insinuou: “Não dê as rosas, elas são lindas”. E de forma mais suave ainda, seu pensamento revelou: “Não dê, elas são suas”. Aquela Laura, sempre submissa, podia agora expressar algo que vinha do fundo de si, ela, cujas coisas “nunca eram dela”. Aquelas rosas... sim: “Olhou-as com incredulidade: eram lindas e eram suas. Se conseguisse pensar mais adiante, pensaria: suas como nada até agora tinha sido”.

 

Laura vivia, assim, um impasse. Teria que em breve privar-se delas, “e nunca mais então pensaria nelas pois elas teriam morrido - elas não iam durar muito, por que então dá-las? O fato de não durarem muito parecia tirar-lhe a culpa de ficar com elas, numa obscura lógica de mulher que peca. Pois via-se que iam durar pouco (ia ser rápido, sem perigo)”.

 

Mesmo antes de mudar de roupa, ainda destinou um olhar derradeiro sobre as rosas. Olhar “aquela tranquila isenção das rosas”. Pensava: “Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para ter. E, sobretudo, nunca para se ´ser`. Sobretudo nunca se deveria ser a coisa bonita”.

 

As flores, naquela “luminosa tranquilidade” acabam passando para as mãos de Maria, mas antes foram retidas nas mãos de Laura, que buscou mantê-las “ um segundo mais consigo”. Eram, na verdade, a primeira coisa linda e sua que guardava nas maõs. E no segundo seguinte, as flores já estavam nas mãos de Maria, “sem nenhuma transição”. Elas “não eram mais suas”. E Laura não pôde sequer “tirar para si uma rosa”. Foi quando então a porta da rua bateu, e Laura, devagar, sentou-se “calma  no sofá. Sem apoiar as costas”. As rosas agora “faziam-lhe falta, Havia deixado um lugar claro dentro dela”. Esse lugar claro dava a entender uma ausência... uma loucura! “Na verdade, como a falta. Uma ausência que entrava nela como uma claridade. E também ao redor das marcas das rosas a poeira ia desaparecendo”.

 

Ela deveria estar pronta para receber Alfredo e com ele sair para o jantar: “Quando estivesse pronta ouviria o barulho da chave de Armando na porta”. A chave que penetraria “com familiaridade no buraco da fechadura”. Não adiantava mais ouvir o conselho de seu médico, que disse para ela não se esforçar por fingir que estava bem, pois na verdade ela “fugiu” dali embalada pela claridade das rosas. Armando não precisava mais disfarçar com seu “rosto expectante”. Ao adentrar em seu lar, Armando não encontrou mais a “mulher sua”. Não mais precisava recorrer à linguagem arranjada, “onde o medo e confiança se comunicavam”. Ele então, percebe de forma inesperada, e com horror, “que a sala e a mulher estavam calmas e sem pressa”.

 

Armando encontrou Laura “sentada com o seu vestidinho de casa. Ele sabia que ela fizera o possível para não se tornar luminosa e inalcançável”. Mas isso, de fato, aconteceu. Com a porta ainda aberta se deu conta de que Laura, sua mulher, “estava sentada no sofá sem apoiar as costas, de novo alerta e tranquila como num trem. Que já partira”

Cuidar até o fim

Cuidar até o fim: em defesa dos cuidados paliativos

 

Faustino Teixeira

 

 

Estou terminando a leitura do excelente livro de Ana Claudia Quintana Arantes: Cuidar até o fim (Rio de Janeiro: Sextante, 2024). Ela é uma das profissionais de saúde mais competentes para lidar hoje no Brasil com a experiência do morrer. Sua proposta de trabalho é encantadora, a de cuidar dos enfermos até seus dias finais, sempre com o intuito de levar a viver a morte como experiência de paz. 

 

Gosto em particular dos capítulos 9 e 10, que abordam, sucessivamente as questões: “Como é o morrer?” e “Futilidades”. No capítulo 9 ela desenvolve a singular questão da dissolução dos elementos que ocorrem no processo do morrer.

 

O primeiro elemento que se dissolve, segundo Ana, é a Terra, o corpo. Ela sublinha: “O paciente pode pesar 30 quilos, mas ao vivenciar a dissolução da Terra, terá a sensação de que carrega 5 toneladas. É como se o corpo se fundisse com o mundo, e mobilizá-lo fosse tão pesado quanto empurrar o planeta”. A fraqueza, como lembra Ana, “não está relacionada com a falta de nutrientes. Está relacionada à morte, porque ninguém morre forte, só quem é assassinado ou morre de uma causa súbita”.

 

O segundo elemento que se dissolve é a Água. Nesse momento, como lembra a autora, o paciente vive uma fase de introspecção. Ele “fica mais pacífico e reservado, silencioso, às vezes até mantém os olhos fechados. Ele está num profundo mergulho interior”. É alguém que vai “em busca da essência da vida”. Nesse caso, para a nossa surpresa, “é mais confortável estar discretamente desidratado”. Infelizmente, dado o despreparo dos profissionais de saúde, nas nossas UTIs, não se respeita esse processo, e se faz recurso à hidratação indevida.

 

Em seguida vem a dissolução do Fogo: “Nesse momento o paciente começa a mostrar o que há de mais bonito dentro dele. A nível celular, é como se cada uma das células tomasse consciência de que seu tempo está acabando e se empenhasse em mostrar o melhor de si. Por vezes o paciente melhora tanto que parece nem estar doente”. Algo semelhante acontece com determinadas árvores, que no momento derradeiro favorecem a florada mais linda, e depois fenecem. Para Ana, essa melhora constitui “a manifestação simbólica da nossa expressão no mundo; cada pedaço de nós está determinado a deixar sua mensagem” e se despedir. 

 

Por fim, a dissolução do Ar. É quando o sopro vital que nos foi doado no nascimento vem “devolvido ao Universo porque nossa missão se cumpriu”. É quando a respiração fica estranha, com muitas variações, e  se dá o “parto da alma”. Segundo Ana, “não é incomum que nesse momento ocorra algo singelo: uma lágrima cai, mesmo que o paciente esteja desidratado e vivenciando um processo de morte absolutamente natural”. Aquela lágrima talvez represente a hora em que a alma nasceu, e o último suspiro, o ponto final de uma trajetória de vida.

 

O capítulo 10 traz logo no início uma questão bem importante. Trata-se da tentativa que muitos fazem em forçar a alimentação para quem está padecendo. Não é necessário ficar assustado com isso, pois a alimentação não adiciona nenhuma regeneração ao corpo que está adoecido. Muitas vezes, o corpo só diz não à alimentação quando ela deixa de ser necessária. Em casos precisos, diz Ana, “interromper o uso de sonda para alimentação é uma ação ética”, e que corresponde ao desejo do paciente. E essa autonomia merece o devido respeito.

 

Ana reage também a determinadas situações onde os familiares querem manter o controle do caso, questionando inclusive a utilização de certos medicamentos paliativos. Tendem, por exemplo, a relacionar a morte à utilização de recursos como a morfina ou outros medicamentos. E diz, com acerto: “sabemos que a causa da morte foi a doença; a morfina apenas tornou o processo menos doloroso”. E acrescenta algo fundamental: apenas “90% das dores humanas físicas se resolvem com medicamentos”.

 

Ana argumenta: “A morte é a nossa maior experiência de decisão sobre renunciar ao controle. Entregar o controle, deixando claro para quem cuida qual é o nosso limite, pode ser a única decisão que precisamos tomar. Decidir como será a nossa cena final pode ter mais relação com tudo o que fizemos ao longo da vida, e não se limitar a escolher como será o nosso último respiro”.

 

A grande questão para nós que nos interessamos por tema assim tão fundamental, é a visão dominante na medicina a favor da distanásia, ou seja, “todo procedimento de intervenção diagnóstica e terapêutica que promove o prolongamento ou o aprofundamento da experiência do sofrimento”. É algo que, sinceramente, ninguém deveria experimentar... Trata-se, em verdade, do “uso obsessivo de recursos, resultando no aumento do sofrimento do paciente”. São diversos procedimentos que ocorrem, que na prática, são inúteis ou desnecessários.

 

A tarefa do cuidador, lembra Ana, é de estar profundamente atento a toda a dinâmica do paciente: “Quem está cuidando de uma pessoa em seu tempo final sempre deve estar atento ao sofrimento causado pelos tratamentos inúteis e se preparar para fazer perguntas difíceis à equipe médica, como ´De que serve colocar meu pai na UTI? Ele vai voltar à vida se for para a UTI?”. Não é incomum encontrar profissionais de saúde que nesses casos falam em milagres...

 

E Ana volta ao seu argumento fundamental, que se baseia na tese dos cuidados paliativos: “A meu ver, desaconselhar ou até suspender tratamentos fúteis que só prolongam o sofrimento de um ser humano é uma conduta profundamente ética e compassiva”. Sem dúvida, estou profundamente de acordo com ela.

 

Com sua ênfase na defesa dos cuidados paliativos, Ana se contrapõe àqueles que defendem a eutanásia. A eutanásia “é a eliminação do sofredor, enquanto o cuidado paliativo é o alívio do sofrimento.” A autora justifica sua opção: entre o alívio e a eliminação, ela prefere ficar com o alívio. Não que ela seja contra a eutanásia. Ela não se diz nem contra nem a favor. E argumenta: “Não cabe a mim dizer a um paciente que deseja a eutanásia que isto é um absurdo, porque não sei o fardo que ele carrega”. 

 

Ela sublinha, porém, que não faz eutanásia, e que mês que ela fosse liberada no Brasil, também provavelmente não faria. E argumenta que que a sociedade brasileira não tem ainda a “maturidade humana para discutir um tema tão complexo”. Para ela, um, debate mais honesto sobre o tema só poderia, de fato, ocorrer quando pelo menos 90% dos brasileiros pudessem ter acesso aos cuidados paliativos.

 

O grande problema, a meu ver, está no despreparo dos profissionais de saúde no Brasil em lidar com a questão dos cuidados paliativos. É duro ouvir de Ana a confirmação de que apenas 0,3% da população que precisa de alívio para o sofrimento recebe algum tipo de cuidado paliativo. O que significa, na prática, que a maioria dos pacientes terão que lidar com as dores da distanásia.

 

Eu concordo com Ana, em sua defesa da ortotanásia: que se traduz pelo “ pelo respeito pelo tempo da morte”. Ou seja, o trabalho efetivo para que os pacientes possam receber todos os cuidados para aguardar esse tempo com a serenidade possível, sem dor, sem incômodos”. 

 

Ana fala também da presença em nosso país da mistanásia, ou seja, a “total ausência de cuidados” no tratamento das doenças terminais. São situações dolorosas onde os pacientes não têm acesso “a diagnóstico, a nenhum tratamento e muitas vezes sequer obtêm uma consulta ou um exame para avaliar a gravidade atual de sua doença”. E ela cita casos de médicos que simplesmente decretam a irreversibilidade da doença e tiram o time de campo, recorrendo a desculpas diversificadas, como a dificuldade de agenda...

 

Segundo Ana, “simbolicamente, a morte de um ser humano pode acontecer quando ele perde a capacidade de estar presente na própria vida e se torna um zumbi existencial”. É duro observar o dado levantado por Ana, com respeito à taxa de suicídio entre os idosos, que se torna mais elevada entre aqueles que estão na faixa dos 80 anos. São questões difíceis, que merecem uma reflexão mais apropriada e aprofundada.