O Zen e o tiro com arco – Uma leitura da obra de Eugen Herrigel
Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF
Considerações Iniciais: as artes na tradição zen
Aqueles que buscam entrar na atmosfera zen, captar os traços fundamentais que marcam sua perspectiva, não podem desconhecer o influxo zen sobre as artes tradicionais. Como indicou Raquel Bouso, estudiosa da Escola de Kyoto, as “manifestações artísticas surgiram especificamente como meios de articulação da experiência zen da realidade”. A expressão japonesa para traduzir esse caminho da arte é geido. Trata-se de uma expressão que recolhe os gêneros artísticos tradicionais cultivados no Japão. O processo de criação presente nesta arte tradicional favorece uma penetração profunda no objeto, favorecendo uma rica identificação do artista com o motivo de sua arte. Como dizia Matsuo Basho (1644-1694), “o que diz respeito ao pinheiro aprenda do pinheiro; o que diz respeito ao bambu, aprenda do bambu”. Em sua singular aventura, o artista se perde no cotidiano para captar o que é maravilhoso, ainda mais, ele se identifica com esse cotidiano, de forma a quebrar as dicotomias do sujeito com o objeto. Tudo isso é fruto de um complexo aprendizado de observação direta visando superar a “visão particular” (shi-i).
Há uma atenção peculiar para o que é imediato, o passo de cada instante, captado em suas finas e delicadas filigranas. Não são artes que visam dissolver a forma, mas “criar uma forma a partir do vazio”, ou como assinala Kitaro Nishida, penetrar “a forma do que não tem forma e escutar o som do silêncio”. O que se busca na arte zen não é a regularidade ou perfeição, mas a “beleza do fragmentário em sua assimetria ou aspereza”. Cada elemento no trabalho artístico busca garantir o que é essencial.
Entre as várias expressões artísticas, temos a que se refere ao cuidado com o jardim (kado). O jardim, como indicou Byung-Chul Han, é um “lugar de redenção”. O que ele faculta é a singularidade do maravilhamento, de um aprendizado de ser “tocado” pelas coisas e refazer com essa beleza o tecido do mundo interior. O jardim é lugar de “redenção” pois favorece uma experiência de “salvação”, ou seja, possibilita que “algo seja livre em sua essência”. Aquele que cuida do jardim ouve o imperativo da terra, que é o de cuidá-la com delicadeza e esmero, e respeitar significa “louvar”. Trata-se de um sentimento nobre que veio sendo esquecido, mas que está vivo na arte tradicional japonesa. Quem visita os jardins de templos budistas percebe o cuidado com os jardins. A vida é reclusa, mas o contato com a natureza permeia as práticas de meditação, as caminhadas e o cultivo da terra. Outra forma artística tradicional que se relaciona com a natureza é o ikebama, que expressa uma grande habilidade de composição floral. Todo o material de composição vem trabalhado com elementos da natureza. Nesta arte vislumbra-se o passo da finitude, enquanto as flores ficam desprovidas de suas raízes: “a temporalidade desvela a absoluta e eterna vacuidade oculta nas profundidades de sua existência”. A noção budista de impermanência está igualmente presente na cerimônia do chá (sado), outra arte tradicional que envolve harmonia, respeito, pureza e tranquilidade. O próprio espaço onde se desenvolve o ritual é despojado e destituído de tudo o que é supérfluo. No vazio da sala cria-se o clima essencial e a disposição mental para o relaxamento e a atenção. E todas as ações envolvidas na cerimônia são expressões da vida cotidiana: ferver a água, escolher e depositar o chá no recipiente adequado, atuar para dissolvê-lo na água quente e servir com delicadeza aos convidados.
Outra expressão artística tradicional relaciona-se com a escritura, como é o caso da arte da caligrafia (shodo). O calígrafo é alguém que
“sabe captar a presença da energia vital das coisas e transmiti-la, e por isto, antes de recorrer ao pincel, deve livrar-se de todos os obstáculos – preconceitos, conceitos, opiniões, paixões e teorias – todos os canais físicos, psíquicos e racionais por onde circula essa energia”.
Da China esta arte foi transplantada para o Japão, onde ganhou grande expressividade, e as energias vitais a ela relacionadas receberam uma conformação singular com o influxo da reflexão sobre a vacuidade da tradição budista. Há que se mencionar ainda o caminho poético traçado pelos tradicionais Haikais, ou Haiku, um forma concisa e delicada de poema que “rompe com o fluxo narrativo e a ordem descritiva e introduz o vazio na composição mediante recursos formais e linguísticos”, que suspendem ou quebram o fluxo da linguagem comum.
Pode-se ainda acrescentar as artes cênicas, em particular o teatro No, que de forma exemplar articular o drama, o canto, a dança e a música. É certamente uma expressiva habilidade artística, com uma nuance espiritual certeira, traduzida na expressão corporal. A vacuidade zen marca também sua presença na dança, numa ação que privilegia os pequenos detalhes, a calma e a paciência: “a ação se reduz ao mínimo”, produzindo uma tensão criativa, onde um passo pode significar ou expressar um longo caminho. É uma arte que requer singular prática e habilidade.
E aí chegamos nas artes marciais (budo), onde se insere a habilidade do tiro com arco (kyudo), também muito ligado à tradição zen. Deve-se lembrar que o zen foi amplamente acolhido no Japão entre os guerreiros samurais, conformando uma dimensão ascético-espiritual de disciplina na prática exercida, particularmente na psicologia e disciplina mental. O guerreiro “tinha necessidade de alcançar um estado de imperturbabilidade e de alerta só acessíveis mediante um elevado grau de concentração”. Na tradição Rinzai, destaca-se a presença única do mestre Takuan Soho (1573-1645) na arte da espada; bem como o lendário Miyamoto Musashi (1584-1645), que se revelou o mais famoso samurai do Japão. Dele é o clássico Livro dos cinco anéis, um best sellerenvolvendo a estratégia samurai. Entre as regras aventadas por Musashi para o exercício de sua arte marcial, destacam-se o conhecimento do caminho, o treinamento de um olhar de discernimento em todos os assuntos e a atenção desperta para as pequenas coisas.
A arte zen do tiro com arco
Na clássica introdução ao livro de Eugen Herrigel (1884-1955), sobre A arte cavalheiresca do arqueiro zen(1948), Daisetz T. Suzuki sublinhou que “o zen é a ´consciência cotidiana`”, utilizando-se de uma expressão de Baso Matsu, que morreu em 788. O peculiar dessa consciência cotidiana é responder com tranquilidade ao ritmo da vida: “dormir quando se tem sono e comer quando se tem fome”. Nada muito complexo, mas simplesmente deixar-se envolver no fluxo do cotidiano, sem nostalgia. Em sua obra sobre a Filosofia do zen budismo, Byung-Chul Han ressalta que a iluminação (satori) não é uma experiência de êxtase ou arrebatamento, mas simplesmente o “despertar para o comum”. Deste estar presente no cotidiano, sem nostalgia, é que brotam os passos da arcaica gentileza ou afabilidade. Ela surge não de uma experiência de plenitude, mas de despojamento que envolve a dinâmica do vazio.
O autor da clássica obra sobre o tiro com o arco, Eugen Herrigel, foi um dos divulgadores do zen no Ocidente, particularmente na Alemanha, onde fez sua formação e atuou profissionalmente. Como filósofo ensinou inicialmente em Heidelberg, tendo em seguida exercido seu ministério na universidade imperial Tôhoku de Sendai, entre os anos de 1924 e 1929. Durante sua estadia no Japão, seguiu o aprendizado da arte japonesa do tiro com arco(Kyudo) sob a supervisão do mestre Awa Kenzo (1880-1939), durante cinco anos. Ao retornar para a Europa dedicou-se a escrever o livro que o fez conhecido e que teve uma grande aceitação por toda parte.
A técnica essencial do tiro com arco requer um exercício de concentração que é fundamental, e para isso o treinamento zen fornece elementos que são fundamentais, como o próprio Suzuki expressou para o amigo Herrigel, depois de ler o seu manuscrito. Na técnica desta arte compenetram-se elementos que são muito importantes como a respiração, o treinamento dos músculos, a postura corporal e, sobretudo, a integração do sujeito com o seu instrumento. O arqueiro e seu arco formam uma unidade essencial, e o lançamento do dardo passa a ocupar um lugar secundário numa experiência que ganha um significado bem mais amplo. Estamos aqui diante da superação da barreira entre o sujeito e o objeto, tema que foi abordado com maestria por Kitaro Nishida, fundador da Escola de Kyoto, que escreveu um livro precioso em torno do que denominou “experiência pura”. Esta experiência precede todo discernimento reflexivo. Ela está presente antes, naquele átimo que se percebem as cores e os sons na sua pureza matriz. O estado “puro” sinaliza uma anterioridade isenta de juízos. É algo que envolve uma experiência imediata, anteriormente à cisão entre sujeito e objeto. No momento inicial não há ainda sujeito ou objeto, mas simplesmente um “modo puro de experiência”. Como mostra Nishida, “a verdadeira experiência pura não tem nenhum sentido, é simplesmente a consciência no presente do real concreto assim como se dá”.
Esse tema foi igualmente trabalhado por Toshihiko Izutsu, em sua obra Para uma filosofia do budismo zen(1977). Fala igualmente de uma pura subjetividade, ou “subjetividade elemental”, para usar uma expressão de Nishitani, outro filósofo da Escola de Kyoto. É quando o sujeito toca a profunda “euidade”, ou seja, quando se rompe a distinção entre sujeito e objeto, alcançando-se um “estado epistemológico em que o ´eu` identifica-se tão plenamente consigo mesmo, tão uno consigo mesmo, que transcende mesmo o fato de ser ´eu`”. Isto foi bem expresso pelo mestre Dôgen quando fala em “deixar cair corpo e mente”. É quando o corpo e mente precipitam-se no nada e alcançam a “não mente” (mu-shin), o “não pensamento”.
Através da arte do tiro com arco podemos captar com mais acuidade a virada radical do zen para a imanência, e entender o “espírito do cotidiano” que delineia o zen. Um caminho propício para captar igualmente o traço fundamental do “sem porque”, da experiência livre de todo clamor ou nostalgia. A iluminação, como vimos, não é algo assim excepcional, de arrebatamento, mas simplesmente o despertar para o que há de mais comum, como na décima figura da tradicional história zen do boi e do pastor, quando o velho que passou pelo caminho entra despojado no mercado e faz as perguntas mais simples e singelas.
Como já foi assinalado, o objetivo do arqueiro zen não é simplesmente atingir o alvo, mas unir consciente e inconsciente, de forma análoga ao que ocorre com o samurai com sua espada. A singularidade da arte está intimamente ligada a uma compreensão nova, relacionada com o “estado de não consciência”, de “não-mente”. Trata-se do estado de mushin, que desperta o prajna, que é o conhecimento “transcendental ou não discriminante”. Não é fácil atingir essa percepção que rompe com o mundo das dualidades e retorna ao que Hui-neng nomeou como natureza-própria. A uma tal consciência só é possível acessar o arqueiro que desprende-se de si mesmo, sem, porém, romper com sua habilidade e preparo técnico.
Em sua obra sobre a filosofia do zen budismo, Izutsu dá um exemplo interessante para mostrar o significado do estado da não-mente. Ele recorre ao equilíbrio do músico com seu instrumento. O artista, no exercício de sua execução, fica de tal modo envolvido e absorto no ato mesmo de tocar, que deixa de se distinguir de seu instrumento. A música flui de tal forma natural que ele deixa de ser consciente dos movimentos que realiza com seus dedos, como no casa da harpa, nem mesmo se dá conta de que está tocando. Nesse sentido, “a tensão estética da sua mente recorre tão intensamente em todo seu ser que ele mesmo transforma-se na música que está tocando”.
Ao abordar a arte do tiro com arco, Herrigel busca desnudar a “natureza misteriosa dessa arte”, que na prática expressa um “combate do arqueiro contra ele mesmo”. Como ocorre nas grandes obras da mística inter-religiosa, a aproximação da realidade só vem favorecida quando o praticante aconchega-se com o “coração puro, despido de qualquer preocupação” (AAZ, 17). No tiro com arco, e também nas outras artes japonesas, o que está pressuposto é uma “atitude espiritual”, que é característica do budismo” (AAZ, 18).
Ao falar de budismo, Herrigel tem em mente sobretudo o budismo zen, o budismo dhiana, cuja compreensão exige um salto com respeito ao pensamento meramente especulativo, visando captar uma experiência que é única, para além do intelecto. Na busca da vivência de semelhante experiência o budismo zen percorre um caminho de “recolhimento metódico e sistemático”, e o resultado dessa busca é o encontro da intimidade de si com algo inefável, que “carece de fundo e de forma” (AAZ, 19). Nesse sentido, o objetivo da arte do arco e flecha é uma “experiência interior”. Os instrumentos utilizados são unicamente pretexto “para o arqueiro dar o salto último e decisivo” (AAZ, 19).
Herrigel expressa sua sintonia com os clássicos Ensaios sobre o budismo zen, de Suzuki, publicados em três volumes nos anos de 1927, 1933 e 1934. Pontua que apesar dos esforços de divulgação do zen realizados no Ocidente, a começar por Suzuki, a tradição ainda carece de uma melhor apreensão (AAZ, 20). O que Herrigel tenta expressar é que o zen traduz como “o mais puro e contemplativo misticismo” (AAZ, 21).
O autor relata em seu livro, que sua formação prática nessa arte do tiro com arco se deu durante quase seis anos, que coincide com o período em que esteve no Japão. Apesar de todo esforço durante o aprendizado, no início a percepção ainda estava embaçada: “Eu era capaz, é verdade, de compreender o que se pode chamar de fenômeno místico primário, mas não me era possível transpor o círculo que, como uma alta muralha, cerca o misterioso” (AAZ, 25). Não se tratava de uma tarefa simples para um europeu, como informaram a ele. O desafio de “penetrar no âmbito da vida espiritual asiática”. Isto o assustou no início, como relata (AAZ, 27). Foi quando então recomendaram-no pedir ajuda ao célebre mestre Kenzo Awa. Apesar de resistências iniciais, o mestre acabou aceitando a tarefa complexa de ser o preceptor, sobretudo quando Herrigel sinalizou que seu objetivo não era o de divertir-se, mas de “penetrar na Doutrina Magna” (AAS, 28).
O itinerário que tinha pela frente era árduo, envolvendo toda uma ascética particular, visando captar a “arte sem arte” do tiro com arco. Foram várias fazes de aprendizado, a começar pelo entendimento das características plásticas do bambu, de sua maleabilidade. A atenção desdobrou-se também para a peculiaridade do arco, com seus quase dois metros de comprimento, em sua “forma nobre”. Quanto mais estirado o arco, dizia seu mestre, mais ele seria capaz de abarcar o universo. Daí a necessidade de “saber curvá-lo adequadamente” (AAZ, 30).
O grande objetivo da arte, dizia o mestre, era o de entender a dinâmica espiritual envolvida no trabalho. Só a partir de um estado particular de concentração e relaxamento permite-se entender a espiritualização do tiro (AAZ, 30). Os primeiros esforços de Herrigel em seu aprendizado não surtiam o efeito desejado, como ele indicou: “O gesto de estirar o arco continuou a exigir de mim grande esforço e, por mais que eu me exercitasse, não chegou a espiritualizar-se” (AAZ, 31). Na advertência do mestre, em torno das dificuldades implicadas, o segredo da arte ganhava uma pista importante: o exercício da respiração. Dizia o mestre: “Se o senhor não consegue, é porque respira de maneira inadequada” (AAZ, 32).
Há uma íntima relação entre o ato de atirar e a prática da respiração. A ação implicada envolvia várias fases: “segurar o arco, colocar a flecha, levantar o arco, estirá-lo e mantê-lo no máximo de tensão e disparar” (AAZ, 33). No princípio, como lembra Herrigel, não foi fácil apreender o ritmo exigido para a respiração, aproximando-se do que o mestre havia indicado. Faltava uma “base firme de apoio”, que só viria aos poucos, com exercício de muita paciência e labor. Apesar dos esforços empreendidos, o mestre mostrava que a dinâmica estava equivocada, e equivocada por justamente envolver “esforço”. O problema estava em concentrar a mente para esse esforço e objetivo. O caminho tinha que ser mais leve. Isto me fez lembrar um aprendizado importante do taoísmo: o caminho da maleabilidade e suavidade. Diz o Tao Te Ching (ou Dao de Jing), em seu número 76, que aqueles que são suaves e adaptáveis são discípulos da vida, enquanto os que são rígidos e inflexíveis, são discípulos da morte. Num belo poema de Chuang Tzu, vislumbramos algo bem semelhante à advertência feita por mestre Kenzo a Herrigel:
“Quando um arqueiro atira sem alvo nem mira
Está com toda a sua habilidade.
Se atira para ganhar uma fivela de metal
Já fica nervoso.
Se atira por um prêmio em ouro
Fica cego
Ou vê dois alvos –
Está louco!
Sua habilidade não mudou. Mas o prêmio
Cria nele divisões. Preocupa-se.
Pensa mais em ganhar
Do que em atirar –
E a necessidade de vencer
Retornando ao livro de Herrigel, verificamos então que o quidda questão, seu cerne, estava na atitude que acompanhava o arqueiro, ou seja, o desafio de “esticar o arco espiritualmente” (AAZ, 35). E para isso, toda uma técnica de respiração se fazia necessária. Tudo foi sendo realizado durante o primeiro ano de exercícios, voltado para a preparação do arqueiro em “estirar o arco de forma espiritual”. Estava-se diante de uma arte singular, uma “arte gentil” (que é tradução literal de jiu-jitsu). O símbolo de referência era a água, que “sempre cede, mas jamais é vencida” (AAZ, 36).
Durante todo o aprendizado o mestre assinalava que as dificuldades estavam previstas, e aquele que não passava por elas, iria encontrá-las muito mais fortes posteriormente. Não era simples chegar ao objetivo proposto, e por mais cuidados que se cercasse, os disparos ainda vinham acompanhados de sacudidelas e trepidações (AAZ, 38). O aprendizado envolvia uma extrema atenção à postura do mestre, aos detalhes que acompanhavam a sua arte. Como exemplo, a destreza e leveza com que a abertura de sua mão direita, liberada de toda tensão, disparava com seu arco. Não havia movimento brusco, mas leveza e suavidade. Esse era o segredo!
Em seu aprendizado, Herrigel foi se dando conta da importância do relaxamento e da respiração. A ação feita com espontaneidade surtia um efeito bem melhor. O mestre voltava a advertir: “O tiro justo no momento justo não ocorre porque o senhor não sabe desprender-se de si mesmo, um acontecimento que deveria ocorrer de maneira independente”, como o realizado por uma criança (AAZ, 41). Um passo a mais se fazia necessário: ultrapassar a ideia de que “sou eu” que atiro. A presença desse “eu” que estira o arco e atira era um empecilho. A arte genuína, advertia o mestre, não pode ocorrer pautada por uma finalidade ou intenção. Tem que ser gratuita. A obstrução do caminho está justamente na presença de uma “vontade demasiadamente ativa” (AAZ, 42).
O processo exigia paciência, muita paciência. E também perseverança. Herrigel perguntava ao mestre: “O que devo fazer”. Recebia como resposta: “Tem que aprender a esperar”. E esse aprendizado só se realiza quando se dá o desprendimento (AAZ, 43). Se não houver desprendimento só restará a tensão, e o resultado não será satisfatório. O relaxamento físico tinha que ser acompanhado pelo relaxamento psico-espiritual. O caminho se fazia na abertura da libertação do espírito (AAZ, 45). Um novo nível devia se alcançado, para além do relaxamento psíquico, no sentido de uma liberdade espiritual. A ruptura do “eu” só seria alcançada com a quebra de todas as amarrar e apegos. Só assim se poderia alcançar o passo de um “poder” novo. Nesse caminho emergia novamente a importância e centralidade da respiração: superar a percepção de que estamos respirando, de forma que essa atividade se dê espontaneamente e com leveza. O estado de perturbação, que muitas vezes dificulta a serenidade, é um obstáculo a ser vencido, e o processo deve ser movido com tranquilidade: continuar “respirando tranquila e serenamente, aceitando-se de maneira agradável o que acontece, acostumando-se à perturbação, aprendendo-se a contemplá-la com indiferença e, finalmente, cansando-se de acompanhá-la” (AAZ, 47).
Em seu estudo do zen na artes, Alan Watts fala sobre a superação da respiração errática em favor da liberação da respiração. Não se trata simplesmente de inalar o ar, mas de criar as condições para que o ar venha com naturalidade. A respiração, assinala,
“não é apenas um dos ritmos fundamentais do corpo; é também um processo no qual o controle e a espontaneidade, ação voluntária e involuntária, encontram suas identidades mais óbvias. Muito antes das origens da Escola Zen, tanto a Yoga indiana quanto o Taoísmo chinês praticavam o ´assistir a respiração`, com uma visão de deixá-la – sem forçá-la - se tornar mais vagorosa e silenciosa possível”.
A espiritualização profunda vem acompanhada por aquilo que na tradição taoísta vem nomeado como wu-wei, ou seja, uma vontade passiva, um vazio pleno. A passividade aqui vem entendida no seu sentido técnico, que encontramos, por exemplo, na mística de João da Cruz: passividade como receptividade. Trata-se da renúncia a tudo aquilo que dificulta a ação do espírito. A passividade aqui não é inatividade, mas “preparação para receber um dom”.
Na experiência de Herringel, foi fundamental a presença do mestre. Essa relação mestre/discípulo ganha um significado único no mundo oriental. É algo que pertence “às relações elementares da vida e ultrapassa muito os limites da matéria que ensina” (AAZ, 51). É o que mostrou com muita pertinência o pensador da Escola de Kyoto, Shizuteru Ueda, a respeito da figura de Suzuki. Assinalou que o que há de mais importante no mestre não são seus livros ou conferências, mas fundamentalmente a sua presença. Trata-se de algo que se percebe no mestre e que ilumina o cenário da vida.
Em página das mais felizes de seu livro, Herrigel aborda esta relação entre o mestre e o discípulo. Vale transcrevê-la integralmente pela riqueza de seu conteúdo:
“Áspero é o caminho do aprendizado. Muitas vezes, a única coisa que mantém o discípulo animado é a fé no mestre, em que só agora reconhece o domínio absoluto da arte: com sua vida, dá-lhe o exemplo do que seja obra interior, e convence-o apenas com a sua presença. Nessa etapa, a imitação do discípulo atinge a maturidade, conduzindo-o a compartilhar com o mestre o domínio artístico. Até onde o discípulo chegará é coisa que não preocupa o mestre. Ele apenas lhe ensina o caminho, deixando-o percorrê-lo por si mesmo, sem a companhia de ninguém” (AAZ, 57).
Com o passar do tempo, sob a supervisão do mestre, Herrigel foi se afeiçoando à arte, sendo por ela cativado (apprivoiser). É como se o discípulo seguisse a indicação de Rilke numa de suas belas reflexões. Ele falava sobre a importância da paciência no processo criativo. As respostas não aparecem imediatamente, elas precisam de seu tempo. Há que ter “paciência com tudo que é insolúvel” no coração; há que “se afeiçoar às próprias questões”, sem pressa de alcançar resultados. É com o tempo e a serenidade que elas podem surgir, quem sabe, num dia distante.
E esse dia chegou, finalmente, para Herrigel, para a alegria de seu mestre. Surpreso, ele pede ao discípulo que atire mais uma vez, depois de surpreendido com o sucesso da empreitada. O segundo tiro teve ainda um sucesso maior (AAZ, 61). O aprendizado continuou, e em certo momento, Herrigel ouviu a palavra-chave, que abria o horizonte da compreensão: não sou “eu” que disparo mas “algo dispara!” (AAZ, 63). Num certo dia, depois de executar o tiro, o mestre sinalizou reverência e deu a aula por encerrada. Para a surpresa de Herrigel, exclamou: “algo acaba de atirar”. Era a senha para indicar a espiritualização do tiro. E o mestre acrescentou: “O mérito desse tiro não lhe pertence, pois o senhor permanece esquecido de si mesmo e de toda intenção, tal qual uma fruta madura. Agora, continue praticando, como se nada tivesse acontecido”. A passagem me fez lembrar um dito fabuloso do poeta e místico Rûmî no seu clássico Masnavi, citando o livro do Corão: “Não fostes tu que atiraste quando atiraste”.
O aprendizado ganhava, assim, o seu precioso remate, se é que se pode falar em realização no processo amplo de caminhada. Mas, de fato, ocorreu uma iluminação interior, provocando uma sensação única de alegria, semelhante à provocada pelo início da luz do dia (AAZ, 65). Depois disso, “o arqueiro se sente apto a praticar toda espécie de ação perfeita ou a mergulhar no mais puro ócio” (AAZ, 65). O tiro, como lembra Herrigel, já ao final de seu trabalho, “não depende do arco, mas da presença de espírito, da vivacidade e da atenção com que é manejado” (AAZ, 66). A alegria do ato realizado com primor é como “dançar a cerimônia”, com a transmissão de uma energia diversa do mundo interior (AAZ. 67). Diante da alegria do discípulo, o mestre dá o exemplo da aranha:
“A aranha dança sua rede sem pensar nas moscas que se prenderão nela. A mosca, dançando despreocupadamente num raio de sol, se enreda sem saber o que esperava. Mas tanto na aranha, como na mosca, algo dança, e nela o exterior e o interior são a mesma coisa” (AAZ, 69)
Na sequência da experiência, ocorreu a cerimônia do chá reunindo o mestre e o discípulo, um diante do outro. Como único ruído, o “do vapor fervendo na chaleira” e a presença da haste de incenso. Mais que um encontro, foi uma cerimônia dançada. Ao refletir sobre todo o processo, Herrigel sublinhou que as flechas disparadas causaram nele um impacto, como se tivesse passado por uma “transformação profunda” e imarcescível. Pôde então constatar com vitalidade o que significa uma comunicação direta com o mestre.
Depois daqueles anos, o aprendizado tomou um novo rumo, quando o mestre e o discípulo, deixam de ser dois e passam a ser um. Mesmo que se separem por vastos oceanos, o sentimento de presença permanecerá aceso. Este é o resultado do tiro com arco: “uma luta do arqueiro contra si mesmo, que lhe penetra nas últimas profundidades” (AAZ, 78). Ao final, Herrigel recorda o importante tratado do mestre zen, Takuan, em torno da arte da espada: A impossível compreensão(AAZ, 80). Na visão de Takuan, lembrada por Herrigel, a perfeição da arte da espada só vem alcançada “quando o coração do espadachim não for mais afetado por nenhum pensamento a respeito do ´eu` e do ´outro`, do adversário e da sua espada, da sua própria espada e da maneira de usá-la nem sequer sobre a vida e a morte” (AAZ, 85). O que permanece é o vazio, a plenitude do vazio. O que vale para a esgrima, vale também para as outras artes tradicionais, como na arte do nanquim. A habilidade se manifesta quando a mão que executa é movida pelo espírito. A bela pintura ocorre de forma automática, espiritualizada. A mão que contempla o bambu durante anos converte-se nele, e tudo cai no esquecimento (AAS, 86).
O espírito zen é um espírito singular, diz Herrigel, que nos possibilita estar no mundo, viver o cotidiano, mas sempre pronto para acolher a impermanência derradeira. Cada um deve estar pronto para também abandonar o mundo. Rompe-se com a sensação do medo: a vida e a morte vencem todo temor. Para usar a terminologia de Yagyu Tajima-no-kami, mestre-espadachin, “o último segredo da arte da espada é atingir a libertação da ideia da morte”.