Eu
creio em que? Com base no que eu creio, eu espero que...
Faustino
Teixeira
Sou
das Minas Gerais, nascido entre as montanhas, numa família que marcou sua
cadência pela presença do religioso. Sinos, velas, incenso e imagens faziam
parte das histórias de minha infância e juventude. Foi nesse ambiente religioso
que cresci, numa cidade que tinha o ritmo da tradição. Minha crença foi se
tecendo embalada pelo exemplo familiar e pelas presenças que fui encontrando
pelo caminho, algumas singulares. Recordo-me do exemplo bonito que encontrava
entre mulheres e homens de fé, e isso causava um impacto muito vivo em minha
trajetória. Ocorre que acabei fazendo a opção pelas ciências da religião e a
teologia, num tempo que tinha as marcas da teologia da libertação. O que desde
aquela época movia o meu interesse eram valores fundamentais, como a solidariedade,
a fraternidade, a hospitalidade e a justiça. Via ao meu redor a presença de
comunidades de fé que buscavam encarnar esses valores e tudo isso aquecia o meu
coração.
Mesmo tentado a assumir uma caminhada de agente pastoral,
resolvi, não solitariamente, seguir um rumo um pouco diferente, voltado para a
pesquisa e o ensino universitário. Foram anos de formação teológica, iniciadas
em Juiz de Fora, com continuidade no Rio de Janeiro e em Roma. Tenho que
reconhecer que minha experiência de fé foi sempre muito pontuada pela dúvida e
pela interrogação. Daí quando vejo o
papa Francisco reconhecer a importância dessa humildade na experiência da fé,
sinto-me profundamente irmanado com ele. Dizia o papa na entrevista com o pe.
Spadaro, em agosto de 2013, que ninguém pode encontrar Deus “com certeza total”. Quando isso ocorre,
adverte, “não está bem”. Assim aconteceu com os grandes guias do povo de Deus,
como Moisés, que sempre “deixaram espaço para a dúvida”.
Na minha trajetória de formação tinha dificuldades em
acolher perspectivas teológicas ou doutrinais vigentes que entendiam a fé como
um “depósito” enclausurado, rígido e intocável. Consegui “sobreviver” aos
ventos romanos, gregorianos, sem me deixar abalar pelas inclinações dogmáticas.
Com as artimanhas latino-americanas busquei seguir pistas teológicas que me
ajudassem trilhar um caminho alternativo, em melhor sintonia com o horizonte de
abertura que alimentava minhas expectativas. E confesso que dei muita sorte,
pois encontrei tanto no Rio (PUC-RJ) como em Roma (Gregoriana) um espaço de
acolhida e incentivo para a perspectiva que almejava. Os tempos eram propícios,
apesar da conjuntura eclesiástica adversa. Mesmo estando inicialmente vinculado
ao campo da eclesiologia, tema que envolveu minha tese doutoral, fui aos poucos
me direcionando para outros temas, que favoreciam uma abertura mais destacada,
como o tratado da graça. Daí um passo para a teologia das religiões, a área que
marcou minha inserção profissional, já no final de minha presença no Rio e o
início de minhas atividades no departamento de Ciência da Religião da UFJF. Muita
água correu nesses vinte e cinco anos de atuação acadêmica em Juiz de Fora, num
programa de pós-graduação que reúne profissionais de várias áreas do saber,
como filosofia, teologia, antropologia, sociologia, letras e história. Tudo
isso também contribuiu para provocar minha teologia e levantar novas questões.
Mas claro que também ajudou, e muito, a presença de outros circuitos de
reflexão que pude acompanhar ao longo dos anos.
Como me vejo hoje nesse âmbito da crença ? Uma questão que
é complexa e difícil de expressar. Posso, porém, rabiscar algumas perspectivas.
Digo com certa tranquilidade que nunca passei um período marcado por crise mais
substantiva nesse campo. Talvez em razão mesma da forma como compreendo a fé,
que a meu ver deve sempre abraçar o movimento de busca e redefinição. Assim
vivo minha experiência, e com muita alegria. Em que acredito ? Um de meus guias
é Guimarães Rosa, que por meio do jagunço Tartarana, no Grande Sertão: Veredas,
expressa um pouco o que sinto: “Natureza da gente não cabe em nenhuma certeza
(...). As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho da
noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas”. Continuo firme a acreditar na
beleza do sentido, na dinâmica dos valores, na presença palpitante do Mistério,
que a cada dia vejo acontecer e brilhar por todo canto, sem se restringir ao
território restrito das religiões. Nossa
grande tarefa não consiste em responder ou resolver o enigma do mundo, mas
simplesmente aprender a viver no tempo, adentrando-se nas suas entranhas. Em
linda oração ao tempo, Caetano Veloso sublinha que ele “um dos deuses mais
lindos”, sendo nossa tarefa “entrar em acordo” com ele. A eternidade não é um para
além da história, mas a vivência do tempo na sua integralidade e profundidade.
Aqui e agora se abre a possibilidade de nossa realização fundamental.
Como canta Gilberto Gil, “mistério sempre há de pintar por
aí”. É ele o que existe de mais evidente. Em razão de minha substantiva
inserção no campo do diálogo das religiões e da mística comparada, sinto-me
leve e livre para poder lidar com essa presença gratuita do Mistério. E
sobretudo estar muito alerta para captar o canto das coisas. Já dizia Simone Weil,
“a atenção é a forma mais rara e mais pura da generosidade”. Busco assumir isso
como essencial em minha caminhada no momento atual: estar presente no tempo e
manter aceso todos os sentidos para captar com respeito a pluralidade dos
caminhos que levam ao Enigma maior. Daí insistir com tanta frequência no valor
sagrado da diversidade, na abertura ao pluralismo de princípio, como um dom
rico e gratuito. E acrescento ainda algo mais: o encontro com o diferente me
faz perceber dimensões do Mistério que escapam à minha visada. O diálogo
firma-se assim como essencial, na medida em que nos leva a descobrir facetas inusitadas
e novidadeiras. Como dizia Jacques Dupuis, em razão do diálogo os cristãos
encontram a linda oportunidade de descobrir, com maior profundidade, dimensões
do mistério divino que escapam à ocular cristã. Nesse sentido, ser cristão hoje
significa ser inte-religioso, mas também inter-relacional. E assim me coloco
nesse momento atual: como alguém que se sente domiciliado na tradição cristã,
com tranquilidade e liberdade para lidar com o mundo da diferença. Em linha de
sintonia com o buscador jesuíta, Paolo dall´Oglio, é em razão de minha
tranquilidade na fé em Jesus Cristo, e não por uma dúvida a seu respeito, que
vejo com alegria esse horizonte dialogal.
Torne-se para mim cada vez mais essencial viver essa
abertura respeitando o sagrado destino espiritual de cada ser humano. Um
destino que pode envolver a escolha religiosa, mas que pode igualmente ocorrer
em caminhos não religiosos, mas pontuados pelo exercício de qualidades
espirituais fundamentais. Dentre essas qualidades, o amor radical para com o
próximo. Como lembrou o grande arquiteto da teologia católica, Karl Rahner, na
experiência deste amor já acontece implicitamente “toda a relação salvífica do
homem para com Deus e para com Cristo”. Dizia também a grande mística, Teresa
de Ávila, em suas Moradas, que quanto mais avançamos no amor ao próximo, mais
próximos estamos do amor de Deus. Nós, no cristianismo, temos a alegria de
contar com uma Presença que fascina, que é Jesus de Nazaré: alguém que nos
transmite uma força interior impressionante. Alguém que viveu o diálogo na sua
radicalidade, e que contagia luz, saúde e esperança. Como sublinhou José
Antonio Pagola, é um exemplo que não se restringe ao mundo dos cristãos, mas
que constitui um “patrimônio da humanidade”.
Com base nessa minha experiência de fé, espero que essa nova sensibilidade espiritual
possa ecoar por todo canto, e que as pessoas sigam com alegria o caminho da
profundidade, para além dos enrijecimentos identitários. Não vejo outra saída
possível. Pelos meandros da profundidade é que acessamos a liberdade espiritual
essencial para viver no tempo a possibilidade de uma acolhida generosa da
diferença. E quanto mais aprofundamos nossa identidade, domiciliados com
liberdade em nossa tradição, mais seremos capazes de celebrar a presença do
Mistério em toda parte.
(Publicado
no IHU-Online n. 462, Ano XV – 30/03/2015, p. 42-43)
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