Pluralismo religioso e
ecumenismo na América Latina
Faustino Teixeira
PPCIR - UFJF
É uma
alegria poder estar hoje aqui na Pontifícia Universidade Urbaniana, a convite
de Gemma Debono. O meu sincero agradecimento às autoridades da Universidade
pela generosa acolhida, em particular ao Magnífico Reitor, Alberto Trevisiol. O tema de minha comunicação é ao mesmo tempo
convidativo e complexo. O que farei aqui, dentro do limite de tempo que me foi concedido, é avançar algumas hipóteses
e reiterar desafios que considero fundamentais envolvendo esta questão. Embora
a solicitação envolvesse o campo religioso mais amplo da América Latina, vou
concentrar-me no Brasil, onde posso acompanhar mais de perto os desdobramentos
da discussão sobre essa presença religiosa.
Em tempos de pluralização religiosa
Os
resultados do Censo Demográfico sobre as Religiões no Brasil foram publicados
no final de junho de 2012, num amplo trabalho coordenado pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). São dados que se referem ao ano
de 2010. Não houve mudanças tão substantivas com respeito ao censo anterior,
realizado em 2000. Os novos dados confirmam as tendências já apontadas
anteriormente, ou seja, a queda do catolicismo e o crescimento dos evangélicos
e dos sem-religião. O catolicismo romano é ainda preponderante, mas perde a
cada década sua centralidade, passando a se firmar como a “religião da maioria
dos brasileiros”, mas não mais a “religião dos brasileiros”. Numa população de
quase 191 milhões de habitantes, os católicos somam hoje no Brasil 123 milhões
de adeptos. Mas seu decréscimo tem sido constante nas últimas décadas: 89,2% em
1980; 83,3% em 1991; 73,6% em 2000 e 64,6% em 2010. Com respeito aos
evangélicos, os dados do IBGE apontam um crescimento, que vem se acentuando a
cada década. Mas sobretudo a partir da década de 1980, essa presença ganha
ainda maior visibilidade: 6,6% em 1980; 9% em 1991; 15,4% em 2000 e 22,2% em
2010 (42,2 milhões de adeptos). Esse singular crescimento deve-se sobretudo à
afirmação dos evangélicos pentecostais, que respondem por quase 60% do total
dos evangélicos declarados, ou seja 13,3% do índice geral de 22,2% de todo o
grupo evangélico. Nada menos que 25,3 milhões de fiéis. A terceira força
apontada pelo Censo de 2010 são os sem-religião, que somam hoje no Brasil 15,3
milhões de pessoas, ou seja 8% da população brasileira.
Os
dados apresentados indicam que o Brasil continua um país de forte presença
cristã, com cerca de 86,8% de pessoas envolvidas nesse circuito. Se a esta
porcentagem soma-se a presença dos sem religião, chegamos a 94,8%. O restante
da diversidade religiosa fica restrita a 5,2% dos declarantes. Nesse quadro
inserem-se os espíritas (2%) e as religiões afro-brasileiras (0,3%), além de
todas as outras demais tradições religiosas. Tudo isso significa que a
diversidade religiosa aparece ainda como um desafio em aberto no Brasil, embora
seus traços já se façam perceber.
Tendo em vista esse quadro
geral, podemos destacar a presença de um progressivo processo de pluralização
religiosa, que vai aos poucos quebrando a forte hegemonia cristã que ainda
predomina no país. E também a dinâmica de uma crescente desinstitucionalização
religiosa, com o enfraquecimento das filiações tradicionais. Ao lado da
multiplicação e diversificação das instituições
portadores de sentido, uma “menor fidelidade a elas”. Pesquisadores brasileiros
chamam a atenção para as mudanças que ocorrem hoje na relação identitária que
vincula os fiéis às suas instituições religiosas. Isto não se dá mais de forma
rígida e engessada, mas de maneira fluida, criativa e novidadeira. Os conteúdos
e significados da identidade religiosa tendem a ser menos totalizantes e
abertos a modalizações diversificadas. Como indicou o antropólogo Pierre
Sanchis, há que complexificar hoje “o sentido das declarações de pertença religiosa”[1].
Uma dinâmica de complementaridade religiosa
Há, porém, um traço que
marca a religiosidade brasileira que deve ser sublinhado com ênfase. Um modo de
lidar com a religião que é muito distinto do que ocorre em outros países ou
continentes. O que para alguns poderia indicar superstição ou problemático
amálgama, para o brasileiro é um modo de ampliar as possibilidades de proteção.
Um dos retratos mais criativos e fiéis desta religiosidade brasileira veio
apresentado por João Guimarães Rosa em sua obra Grande Sertão: Veredas, cuja primeira edição saiu em 1956. É um
livro que nos coloca diante desta genuinidade brasileira, deste traço peculiar
de compor vivências e assumir identidades múltiplas. O personagem Riobaldo
traduz de forma esplêndida essa situação:
“Por isso é que se carece principalmente de religião: para
desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura (...). Muita religião, seu
moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de
todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue”[2].
O
religioso está sempre presente, banhando os caminhos desse povo singular.
Sobretudo no domínio popular não há possibilidade de ateísmo ou agnosticismo. É
uma possibilidade inexistente. Como diz o mesmo personagem de Guimarães Rosa:
“Estremeço. Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre
um milagre é possível, o mundo se resolve”[3].
Faz parte do repertório religioso brasileiro essa dança interreligiosa. Em
clássico texto sobre os caminhos que levam a Deus no Brasil, o antropólogo
Roberto da Matta resgata esse fabuloso perfil, como um patrimônio positivo:
“toda essa nossa capacidade de sintetizar, relacionar e conciliar, criando com
isso zonas e valores ligados à alegria, ao futuro e à esperança”. E isso num
mundo que se desencanta cada vez mais, afundando-se num individualismo apático
e problemático.
É bonito ver essa presença
de um mundo religioso multifacetado: na força do catolicismo popular – de
santos e rezas; na vitalidade espiritual do pentecostalismo, na dança dos deuses
que anima os rituais afro e na espiritualidade terrenal indígena. São traços de
um lindo patrimônio espiritual que escapa ao olhar superficial dos censos.
Escapa, por exemplo, ao censo a força de fenômenos religiosos recorrentes na
sociedade brasileira, como o transe, a possessão e a mediunidade. São dezenas
de milhões de brasileiros que lidam com este “outro mundo” povoado pela mais
variada gama de espíritos. Autores chegam a afirmar que cerca da metade da
população brasileira “participa diretamente de sistemas religiosos em que a
crença em espíritos e na sua periódica manifestação através dos indivíduos é
característica fundamental. Esse tipo de dado aparece muito precariamente em
estatísticas e censos”[4]. E
nessas práticas religiosas, envolvidas pela presença do “outro mundo” são
tecidos laços de confiança e solidariedade entre os fiéis, geração de auto-estima e afirmação de
importantes benefícios espirituais e afetivos, com ações solidárias de ajuda
mútua.
Ao descrever o belo ritual
de filhos e filhas de santo no candomblé da Bahia, Roger Bastida fala desta
experiência de intensificação na qualidade de sujeitos:
“Não são mais costureirinhas, cozinheiras, lavadeiras que rodopiam ao som dos tambores nas noites baianas; eis Omolu recoberto de palha, Xangô vestido de vermelho e branco, Iemanjá penteando seus cabelos de algas. Os rostos metamorfosearam-se em máscaras, perderam as rugas do trabalho cotidiano, desaparecidos os estigmas desta vida de todos os dias, feita de preocupações e de miséria (...). Por um momento, confundiram-se África e Brasil; aboliu-se o oceano, apagou-se o tempo da escravidão”[5].
Um catolicismo de malhas largas
Retomando
a questão do catolicismo no Brasil, há que sublinhar que esta tradição
religiosa apresenta-se no Brasil de forma bem diversificada, com malhas bem
distintas: temos um catolicismo santorial, um catolicismo de reafiliação, um
catolicismo institucional e um catolicismo midiático. É um catolicismo que se veste
de forma muito plural, que envolve dentro de si “muitas religiões” e que
apresenta caminhos diversificados. São várias as formas ou alternativas de
viver a fé e a crença católica no Brasil. Como sublinha Carlos Rodrigues
Brandão, o catolicismo brasileiro, assim como vem experimentado na vida
cotidiana, é uma religião que congrega padres e prostitutas, policiais e
bandidos, fieis da renovação carismática e das comunidades de base. É “uma rara
religião que, em suas muitas faces, permite que você tenha uma forma de
presença nela, mesmo quando você acha que já não é mais dela”[6].
Em
recente artigo sobre o traço místico e religioso do povo brasileiro, Leonardo
Boff dizia que esta “visão encantada do mundo” talvez seja uma das mais ricas e
novidadeiras contribuições que os brasileiros podem oferecer à cultura mundial
emergente, uma “cultura tão pouco mágica e tão pouco sensível ao jogo, ao humor
e à convivência dos contrários”[7].
O desafio ecumênico e dialogal
Toda
essa riqueza interreligiosa que povoa o cenário brasileiro vem sendo nos
últimos tempos embaçada por práticas localizadas de intolerância religiosa, o
que é uma pena. Trata-se de uma intolerância que não combina com esse país do
“sincretismo religioso”, entendido aqui no seu sentido mais positivo de
intercâmbio, troca e aprendizado, ou seja, de fenômeno rico que acompanha a
dinâmica universal de grupos humanos que entram em contato: “a tendência a
utilizar relações apreendidas no mundo do outro para ressemantizar o seu
próprio universo”[8]. É
uma triste tendência que se vê por toda parte, de acirramento dos
fundamentalismos, e de perspectivas religiosas que se fixam na “rigidez de um
pensamento único”. Em belo texto de Bergoglio publicado aqui na Itália no
jornal La Repubblica, em 13 de março de 2014, ele falava desse risco dos
fundamentalismos e do substantivo desafio do diálogo. Dizia que é o diálogo que
“desvela a verdade” e a “verdade que se nutre do diálogo”. Daí a necessidade da
“escuta atenta, do silêncio respeitoso, da empatia sincera, o autêntico
colocar-se em disposição face ao estrangeiro e ao outro”, enquanto virtudes
essenciais a serem cultivadas e irradiadas no mundo de hoje[9].
O
ecumenismo e o diálogo interreligioso são empenhos que se somam e se
complementam na essencial tarefa de uma ecumene planetária. Foi, aliás, o
diálogo ecumênico que rompeu determinado modelo de absolutismo católico e
favoreceu o diálogo com as grandes religiões do mundo. Mediante o impulso
ecumênico buscou-se “corrigir dogmatismos e fanatismos que conduziram (e, em
algumas situações, ainda conduzem) a enfrentamentos árduos e a inimizades, e,
por outro lado (...) plasmar relações diferentes entre os que são conscientes
de suas identidades particulares e desejam viver em paz”[10].
O evento de Assis, em 1986, apontou o horizonte irreversível dessa abertura:
“Ou aprendemos a caminhar juntos e em paz e em harmonia, ou nos desconhecemos
mutuamente e nos destruímos a nós mesmos e aos outros”[11].
O
crescente pluralismo religioso na América Latina e no Caribe tem desafiado as igrejas cristãs.
De modo particular, o assombroso crescimento pentecostal, mas também a retomada
de expressões religiosas dos povos originários e de matriz africana. É o que se
vem verificando entre os mayas na Guatemala, entre os povos indígenas de
Chiapas, ou quéchuas, aymaras e mestiços na região andina, bem como entre os
negros no Brasil e em Cuba. O esforço de compreensão adequada destes fenômenos
tem sido “uma das tarefas ecumênicas mais urgentes e decisivas”[12],
num caminho que possibilita captar esta irradiação como dinâmica de afirmação
comunitária de povos que foram em geral excluídos da participação e cidadania
social. E esse desafio ecumênico não se restringe às igrejas cristãs,
envolvendo também uma dimensão macro na luta comum em favor da afirmação da
vida e de sua dignidade.
Conclusão
Em
sua última obra publicada, o teólogo Jacques Dupuis falava em três atitudes
essenciais para um exercício novo no campo teológico em torno da abertura interreligiosa,
todas elas envolvendo um trabalho de purificação: da memória, da linguagem
teológica e da inteligência teológica.
No horizonte de sua reflexão, o fundamental desafio da acolhida do
pluralismo religioso, entendido como um pluralismo de princípio: que revela não
só a generosidade singular de Deus em suas manifestações, como também todas as
riquezas de sua “sabedoria infinita e multiforme”. Lançava Dupuis com ousadia
uma provocação teológica inaugural em favor de uma “compreensão renovada no modo
de pensar os ´outros` e o seu patrimônio cultural e religioso”[13].
No
clássico manifesto aprovado no I Encontro da Assembleia do Povo de Deus em
Quito (Equador), no ano de 1992, firmou-se a ideia de que “o povo de Deus são
muitos povos”[14].
Era a porta de entrada para uma nova perspectiva dialogal, macroecumênica, que
inseria as diversas tradições religiosas do continente no mesmo sonho fraterno
do Deus sempre maior. O que existe, em verdade, é uma extraordinária
diversidade das tradições religiosas, vivas e pujantes em sua ação no tempo,
presentes para serem reconhecidas na sua dignidade sagrada. A grande sinfonia
da unidade não está ainda dada, mas encontra-se em processo, sempre adiada,
sendo tecida pelos singulares fragmentos, que são as religiões, mas também as
espiritualidades que animam o nosso tempo. Numa bela imagem cunhada pelo papa
João Paulo II, o diálogo é uma “viagem fraterna” onde uns acompanham os outros,
tendo sempre como meta transcendente o horizonte destinado por Deus. E nesta
viagem estamos sempre sendo surpreendidos pelos enigmas de Deus.
Referências Bibliográficas
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(Texto
apresentado no Congresso Internacional, “In ascolto dell´America: encontro fra
popoli, culture, religioni – Strade per il futuro”, ocorrido na Pontificia
Università Urbaniana (Roma), em abril de 2004)
.....
[1] Pierre SANCHIS. Prefácio. In: Faustino TEIXEIRA e
Renata MENEZES (Orgs). Religiões em
movimento. O Censo de 2010. Petrópolis: Vozes, 2013, p. 14.
[2] João GUIMARÃES ROSA. Grande sertão: veredas. 14 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980,
p. 15.
[3] Ibidem, p. 48.
[4] Gilberto VELHO. Projeto
e metamorfose. Antropologia das sociedades complexas. 3 ed. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2003, p. 54. Ver também: José Jorge de CARVALHO. Características
do fenômeno religioso na sociedade contemporânea. In: Maria Clara L. BINGEMER
(Org). O impacto da modernidade sobre a
religião. São Paulo: Loyola, 1992,
p. 144-147.
[5] Roger BASTIDE. O
candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 39.
[6] Carlos Rodrigues BRANDÃO. Revisitando o catolicismo
popular. IHU-Online, ano 4, n. 169,
19 de dezembro de 2005, p. 74.
[7] Veja: http://leonardoboff.wordpress.com/2014/03/01/a-gestacao-do-povo-brasileiro-a-universidade-e-o-saber-popular/ (acesso em 14/03/2014).
[8] Pierre SANCHIS. Pra não dizer que não falei de
sincretismo. Comunicações do Iser,
ano 13, n. 45, 1994, p. 7.
[10] Julio de SANTA ANA. Mestre em rigor e lealdade. In:
José Ricardo RAMALHO (Org). Uma presença
no tempo. A vida de Jether Ramalho. São Leopoldo: Oikos, 2010, p. 80.
[11] PONTIFICIO
Consiglio per il Dialogo Interreligioso. Il dialogo interreligioso nell´insegnamento ufficiale della Chiesa
Cattolica (1963-2013). Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana,
2013, p. 491.
[12] Walter ALTMANN. O
pluralismo religioso como desafio ao ecumenismo e à missão na América Latina.
In: Benno, ASSEBURG & Roberto ZWETSCH (orgs.). Desafios e propostas missionárias na realidade brasileira :
reflexões a partir da Consulta sobre Missão realizada pelo CMI/Unidade II e o
CECA, em São Leopoldo, RS, nos dias 08-11 de setembro de 1996. São Leopoldo :
CECA, 1997. p. 61-72.
[13] Jacques DUPUIS. Il
cristianesimo e le religioni. Dallo scontro all´incontro. Brescia: Queriniana, 2001, p. 474.
[14] Apud Faustino TEIXEIRA. O diálogo interreligioso como afirmação da vida. São Paulo:
Paulinas, 1997, p. 149.
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