Captar o Mistério no coração
da Realidade
Faustino Teixeira
PPCIR - UFJF
É com grande alegria que faço a apresentação desse precioso
trabalho realizado por Sibelius Pereira. Trata-se de uma obra que foi resultado
de tese doutoral, defendida sob minha orientação em 2012 no Programa de
Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Talvez tenha sido uma das teses mais brilhantes e cuidadosas que pude orientar
ao longo de minha carreira acadêmica. É uma pesquisa que dá continuidade aos
trabalhos que vêm sendo realizados em nosso programa de pós-graduação na área
de mística comparada das religiões. Uma reflexão que também chama a atenção da
academia para a importância dos estudos realizados nesse campo nem sempre
privilegiado, mas que é também fundamental para entender a dinâmica religiosa e
sua relação com a vida social. Como indicou Sibelius, a obra de Merton pode ser
tomada como “paradigma” também no âmbito acadêmico.
O trabalho busca apresentar o tema da contemplação em
Thomas Merton, tendo como base seu particular itinerário espiritual. Para a sua
abordagem, Sibelius fez recurso ao importante instrumental dos diários e cartas
do monge trapista, grande parte inéditos no Brasil. Indica que essa inclusão no
corpo da pesquisa traduz um elemento inovador nas incursões feitas sobre esse
autor no contexto brasileiro, favorecendo aquisições e intuições novidadeiras
sobre a inserção contemplativa de Merton.
A obra apresentada traduz não apenas uma reflexão sobre
Merton, mas também o vigoroso esforça de “falar a partir de Merton”, abrindo
espaços importantes para a palavra do monge contemplativo. E são vários Mertons
que vão se revelando na teia da reflexão interdisciplinar de Sibelius, mostrando
a riqueza e complexidade de um dos mais argutos e criativos pensadores cristãos
do século XX.
Considero muito feliz a intenção do autor de debruçar-se
sobre o tema da vida contemplativa de Merton. Através dessa porta de entrada,
desvendar a singularidade da visada que o místico trapista oferece sobre essa
questão tão candente. Não se trata de uma contemplação desligada do mundo, mas
ao contrário, inserida de forma viva nas malhas do real e na tessitura do
tempo. Como tão bem mostrou Merton em seus diários, o “trabalho de cela”
envolve delicadeza, atenção e escuta ao canto do tempo, aos pequenos e vivos
sinais que se apresentam no cotidiano. Um trabalho que envolve todos os
sentidos e coloca o contemplativo em estado permanente de atenção e escuta. Ao
refletir sobre isso em seu diário, no ano de 1965, Merton sublinha que “tudo”
se faz presente neste trabalho de cela, que envolve sintonia fina do coração
com a voz de Deus. No silêncio dessa presença é o foco da atenção que não deixa
escapar “nenhum dos sons dessa Voz” que se faz presente através das mediações
do tempo.
É no coração da realidade que Merton busca captar o enigma
convidativo do Mistério que tudo envolve. Não faz recursos a abstrações
diferenciadas para captar esse “segredo inefável” que se encontra em toda
parte. Indica apenas a importância de “estar presente”, de forma sensível e
atenta, ao precioso canto das coisas. Dizia ele para seus noviços, entre os
quais Ernesto Cardenal, que a vida contemplativa não podia estar separada da
vida concreta, de seus desafios e apelos. E ao contemplativo bastava estar ali
e “simplesmente viver”, com as veias abertas para os sinais dos tempos. Um
ensinamento que aprendeu ao longo de sua vida com os grandes mestres zen, entre
os quais Suzuki.
Outra singularidade do itinerário de
Merton, tão bem captada por Sibelius nesta obra, é a íntima relação entre vida
contemplativa e ação no mundo, entre Kenosis e Compaixão. Curioso observar que
quanto mais Merton adentrava na vida eremítica e solitária mais dilatava sua percepção
da “bondade de todas as coisas”, sendo tocado pela provocação de viver o
desafio da alteridade. O aprofundamento da sua vocação contemplativa
intensificava e ampliava sua experiência de Deus, cada vez mais envolvida por
dimensões inusitadas. Mantinha-se viva sua ideia de que a verdadeira solidão
não implica ensimesmamento, mas “abraça tudo”, justamente por ser animada pelo
amor. De forma magnífica, a experiência contemplativa joga o místico novamente
no mundo, com um olhar diferenciado, mas num mundo transfigurado pelo
itinerário interior. Sibelius busca mostrar como Merton reinaugura uma
perspectiva mística novidadeira, de
encontro com Deus na história: “Quanto mais aprofundava sua busca pela
transcendência, mais encontrava o seu tempo, com suas dores e angústias. E,
inversamente, quanto mais descobria a seus semelhantes, num abraço cada vez
mais amplo - tanto na perspectiva interreligiosa como na perspectiva humana –
mais encontrava o divino”.
Vale ainda assinalar o traço
dialogal de Merton, também acentuado com precisão por Sibelius. Ao apelo da
contemplação soma-se a convocação à compaixão e a abertura dialogal. Sobretudo
nos últimos anos de sua vida esse apelo ao mundo do outro firmou-se nele com
intensidade. De forma particular, sua experiência na Ásia, no último ano de sua
vida (1968), abriu horizontes maravilhosos de um diálogo em profundidade e de
um ecumenismo transconfessional: “Serei melhor católico, se puder afirmar a
verdade que existe no catolicismo e ir ainda além”. Vinha movido por uma sede
de “comunicação em profundidade” com o outro. Uma comunicação que não
significava ruptura com a tradição, mas o apelo de ampliar as cordas da
identidade para se aproximar da dignidade da diferença, e isso implicava a
utilização dos recursos da própria tradição, mas também o empenho de
ultrapassá-la, na direção do precioso patrimônio e enigma do outro.
O trabalho de Sibelius vem
enriquecido com sua ocular multidisciplinar. Alguém que vem do mundo das letras
mas bebe também nas aguas da teologia, e consegue navegar com destreza nesses
dois mundos. A peculiaridade do itinerário de Sibelius favorece uma ocular
singular na captação do especial caminho de Merton: o ritmo de sua
conversão, sua vinculação ao mundo das
letras, sua abertura estética, seu flerte com as vanguardas, sua liberdade
diante do catolicismo e da ordem trapista, sua rica experiência amorosa etc. É
uma obra que nos favorece acessar esses “vários Mertons” desenhados por facetas
singulares que não se excluem mas se somam.
É o leitor que vem presenteado com a
riqueza de um trabalho acadêmico tecido com tanta delicadeza e esmero, numa
linguagem acessível e sedutora. Estamos, sem dúvida, diante de uma das melhores
introduções ao pensamento de Thomas Merton publicadas no Brasil.
(Apresentação do livro de Sibelius Cefas Pereira. Thomas Merton:
contemplação no tempo e na história. São Paulo: Paulus, 2014, p. 17-20 -
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