terça-feira, 29 de julho de 2014

Captar o Mistério no coração da Realidade

Captar o Mistério no coração da Realidade


Faustino Teixeira
PPCIR - UFJF

É com grande alegria que faço a apresentação desse precioso trabalho realizado por Sibelius Pereira. Trata-se de uma obra que foi resultado de tese doutoral, defendida sob minha orientação em 2012 no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora. Talvez tenha sido uma das teses mais brilhantes e cuidadosas que pude orientar ao longo de minha carreira acadêmica. É uma pesquisa que dá continuidade aos trabalhos que vêm sendo realizados em nosso programa de pós-graduação na área de mística comparada das religiões. Uma reflexão que também chama a atenção da academia para a importância dos estudos realizados nesse campo nem sempre privilegiado, mas que é também fundamental para entender a dinâmica religiosa e sua relação com a vida social. Como indicou Sibelius, a obra de Merton pode ser tomada como “paradigma” também no âmbito acadêmico.

O trabalho busca apresentar o tema da contemplação em Thomas Merton, tendo como base seu particular itinerário espiritual. Para a sua abordagem, Sibelius fez recurso ao importante instrumental dos diários e cartas do monge trapista, grande parte inéditos no Brasil. Indica que essa inclusão no corpo da pesquisa traduz um elemento inovador nas incursões feitas sobre esse autor no contexto brasileiro, favorecendo aquisições e intuições novidadeiras sobre a inserção contemplativa de Merton.

A obra apresentada traduz não apenas uma reflexão sobre Merton, mas também o vigoroso esforça de “falar a partir de Merton”, abrindo espaços importantes para a palavra do monge contemplativo. E são vários Mertons que vão se revelando na teia da reflexão interdisciplinar de Sibelius, mostrando a riqueza e complexidade de um dos mais argutos e criativos pensadores cristãos do século XX.

Considero muito feliz a intenção do autor de debruçar-se sobre o tema da vida contemplativa de Merton. Através dessa porta de entrada, desvendar a singularidade da visada que o místico trapista oferece sobre essa questão tão candente. Não se trata de uma contemplação desligada do mundo, mas ao contrário, inserida de forma viva nas malhas do real e na tessitura do tempo. Como tão bem mostrou Merton em seus diários, o “trabalho de cela” envolve delicadeza, atenção e escuta ao canto do tempo, aos pequenos e vivos sinais que se apresentam no cotidiano. Um trabalho que envolve todos os sentidos e coloca o contemplativo em estado permanente de atenção e escuta. Ao refletir sobre isso em seu diário, no ano de 1965, Merton sublinha que “tudo” se faz presente neste trabalho de cela, que envolve sintonia fina do coração com a voz de Deus. No silêncio dessa presença é o foco da atenção que não deixa escapar “nenhum dos sons dessa Voz” que se faz presente através das mediações do tempo.

É no coração da realidade que Merton busca captar o enigma convidativo do Mistério que tudo envolve. Não faz recursos a abstrações diferenciadas para captar esse “segredo inefável” que se encontra em toda parte. Indica apenas a importância de “estar presente”, de forma sensível e atenta, ao precioso canto das coisas. Dizia ele para seus noviços, entre os quais Ernesto Cardenal, que a vida contemplativa não podia estar separada da vida concreta, de seus desafios e apelos. E ao contemplativo bastava estar ali e “simplesmente viver”, com as veias abertas para os sinais dos tempos. Um ensinamento que aprendeu ao longo de sua vida com os grandes mestres zen, entre os quais Suzuki.

            Outra singularidade do itinerário de Merton, tão bem captada por Sibelius nesta obra, é a íntima relação entre vida contemplativa e ação no mundo, entre Kenosis e Compaixão. Curioso observar que quanto mais Merton adentrava na vida eremítica e solitária mais dilatava sua percepção da “bondade de todas as coisas”, sendo tocado pela provocação de viver o desafio da alteridade. O aprofundamento da sua vocação contemplativa intensificava e ampliava sua experiência de Deus, cada vez mais envolvida por dimensões inusitadas. Mantinha-se viva sua ideia de que a verdadeira solidão não implica ensimesmamento, mas “abraça tudo”, justamente por ser animada pelo amor. De forma magnífica, a experiência contemplativa joga o místico novamente no mundo, com um olhar diferenciado, mas num mundo transfigurado pelo itinerário interior. Sibelius busca mostrar como Merton reinaugura uma perspectiva mística  novidadeira, de encontro com Deus na história: “Quanto mais aprofundava sua busca pela transcendência, mais encontrava o seu tempo, com suas dores e angústias. E, inversamente, quanto mais descobria a seus semelhantes, num abraço cada vez mais amplo - tanto na perspectiva interreligiosa como na perspectiva humana – mais encontrava o divino”.

            Vale ainda assinalar o traço dialogal de Merton, também acentuado com precisão por Sibelius. Ao apelo da contemplação soma-se a convocação à compaixão e a abertura dialogal. Sobretudo nos últimos anos de sua vida esse apelo ao mundo do outro firmou-se nele com intensidade. De forma particular, sua experiência na Ásia, no último ano de sua vida (1968), abriu horizontes maravilhosos de um diálogo em profundidade e de um ecumenismo transconfessional: “Serei melhor católico, se puder afirmar a verdade que existe no catolicismo e ir ainda além”. Vinha movido por uma sede de “comunicação em profundidade” com o outro. Uma comunicação que não significava ruptura com a tradição, mas o apelo de ampliar as cordas da identidade para se aproximar da dignidade da diferença, e isso implicava a utilização dos recursos da própria tradição, mas também o empenho de ultrapassá-la, na direção do precioso patrimônio e enigma do outro.

            O trabalho de Sibelius vem enriquecido com sua ocular multidisciplinar. Alguém que vem do mundo das letras mas bebe também nas aguas da teologia, e consegue navegar com destreza nesses dois mundos. A peculiaridade do itinerário de Sibelius favorece uma ocular singular na captação do especial caminho de Merton: o ritmo de sua conversão,  sua vinculação ao mundo das letras, sua abertura estética, seu flerte com as vanguardas, sua liberdade diante do catolicismo e da ordem trapista, sua rica experiência amorosa etc. É uma obra que nos favorece acessar esses “vários Mertons” desenhados por facetas singulares que não se excluem mas se somam.

            É o leitor que vem presenteado com a riqueza de um trabalho acadêmico tecido com tanta delicadeza e esmero, numa linguagem acessível e sedutora. Estamos, sem dúvida, diante de uma das melhores introduções ao pensamento de Thomas Merton publicadas no Brasil.  


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(Apresentação do livro de Sibelius Cefas Pereira. Thomas Merton: contemplação no tempo e na história. São Paulo: Paulus, 2014, p. 17-20 - 

Pluralismo religioso e ecumenismo na América Latina

Pluralismo religioso e ecumenismo na América Latina

Faustino Teixeira
PPCIR - UFJF

            É uma alegria poder estar hoje aqui na Pontifícia Universidade Urbaniana, a convite de Gemma Debono. O meu sincero agradecimento às autoridades da Universidade pela generosa acolhida, em particular ao Magnífico Reitor, Alberto Trevisiol. O tema de minha comunicação é ao mesmo tempo convidativo e complexo. O que farei aqui, dentro do limite de tempo que  me foi concedido, é avançar algumas hipóteses e reiterar desafios que considero fundamentais envolvendo esta questão. Embora a solicitação envolvesse o campo religioso mais amplo da América Latina, vou concentrar-me no Brasil, onde posso acompanhar mais de perto os desdobramentos da discussão sobre essa presença religiosa.

Em tempos de pluralização religiosa

            Os resultados do Censo Demográfico sobre as Religiões no Brasil foram publicados no final de junho de 2012, num amplo trabalho coordenado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). São dados que se referem ao ano de 2010. Não houve mudanças tão substantivas com respeito ao censo anterior, realizado em 2000. Os novos dados confirmam as tendências já apontadas anteriormente, ou seja, a queda do catolicismo e o crescimento dos evangélicos e dos sem-religião. O catolicismo romano é ainda preponderante, mas perde a cada década sua centralidade, passando a se firmar como a “religião da maioria dos brasileiros”, mas não mais a “religião dos brasileiros”. Numa população de quase 191 milhões de habitantes, os católicos somam hoje no Brasil 123 milhões de adeptos. Mas seu decréscimo tem sido constante nas últimas décadas: 89,2% em 1980; 83,3% em 1991; 73,6% em 2000 e 64,6% em 2010. Com respeito aos evangélicos, os dados do IBGE apontam um crescimento, que vem se acentuando a cada década. Mas sobretudo a partir da década de 1980, essa presença ganha ainda maior visibilidade: 6,6% em 1980; 9% em 1991; 15,4% em 2000 e 22,2% em 2010 (42,2 milhões de adeptos). Esse singular crescimento deve-se sobretudo à afirmação dos evangélicos pentecostais, que respondem por quase 60% do total dos evangélicos declarados, ou seja 13,3% do índice geral de 22,2% de todo o grupo evangélico. Nada menos que 25,3 milhões de fiéis. A terceira força apontada pelo Censo de 2010 são os sem-religião, que somam hoje no Brasil 15,3 milhões de pessoas, ou seja 8% da população brasileira.

            Os dados apresentados indicam que o Brasil continua um país de forte presença cristã, com cerca de 86,8% de pessoas envolvidas nesse circuito. Se a esta porcentagem soma-se a presença dos sem religião, chegamos a 94,8%. O restante da diversidade religiosa fica restrita a 5,2% dos declarantes. Nesse quadro inserem-se os espíritas (2%) e as religiões afro-brasileiras (0,3%), além de todas as outras demais tradições religiosas. Tudo isso significa que a diversidade religiosa aparece ainda como um desafio em aberto no Brasil, embora seus traços já se façam perceber.

Tendo em vista esse quadro geral, podemos destacar a presença de um progressivo processo de pluralização religiosa, que vai aos poucos quebrando a forte hegemonia cristã que ainda predomina no país. E também a dinâmica de uma crescente desinstitucionalização religiosa, com o enfraquecimento das filiações tradicionais. Ao lado da multiplicação  e diversificação das instituições portadores de sentido, uma “menor fidelidade a elas”. Pesquisadores brasileiros chamam a atenção para as mudanças que ocorrem hoje na relação identitária que vincula os fiéis às suas instituições religiosas. Isto não se dá mais de forma rígida e engessada, mas de maneira fluida, criativa e novidadeira. Os conteúdos e significados da identidade religiosa tendem a ser menos totalizantes e abertos a modalizações diversificadas. Como indicou o antropólogo Pierre Sanchis, há que complexificar hoje “o sentido das declarações de pertença religiosa”[1].

Uma dinâmica de complementaridade religiosa

Há, porém, um traço que marca a religiosidade brasileira que deve ser sublinhado com ênfase. Um modo de lidar com a religião que é muito distinto do que ocorre em outros países ou continentes. O que para alguns poderia indicar superstição ou problemático amálgama, para o brasileiro é um modo de ampliar as possibilidades de proteção. Um dos retratos mais criativos e fiéis desta religiosidade brasileira veio apresentado por João Guimarães Rosa em sua obra Grande Sertão: Veredas, cuja primeira edição saiu em 1956. É um livro que nos coloca diante desta genuinidade brasileira, deste traço peculiar de compor vivências e assumir identidades múltiplas. O personagem Riobaldo traduz de forma esplêndida essa situação:

“Por isso é que se carece principalmente de religião: para desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura (...). Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue”[2].

            O religioso está sempre presente, banhando os caminhos desse povo singular. Sobretudo no domínio popular não há possibilidade de ateísmo ou agnosticismo. É uma possibilidade inexistente. Como diz o mesmo personagem de Guimarães Rosa: “Estremeço. Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve”[3]. Faz parte do repertório religioso brasileiro essa dança interreligiosa. Em clássico texto sobre os caminhos que levam a Deus no Brasil, o antropólogo Roberto da Matta resgata esse fabuloso perfil, como um patrimônio positivo: “toda essa nossa capacidade de sintetizar, relacionar e conciliar, criando com isso zonas e valores ligados à alegria, ao futuro e à esperança”. E isso num mundo que se desencanta cada vez mais, afundando-se num individualismo apático e problemático.

É bonito ver essa presença de um mundo religioso multifacetado: na força do catolicismo popular – de santos e rezas; na vitalidade espiritual do pentecostalismo, na dança dos deuses que anima os rituais afro e na espiritualidade terrenal indígena. São traços de um lindo patrimônio espiritual que escapa ao olhar superficial dos censos. Escapa, por exemplo, ao censo a força de fenômenos religiosos recorrentes na sociedade brasileira, como o transe, a possessão e a mediunidade. São dezenas de milhões de brasileiros que lidam com este “outro mundo” povoado pela mais variada gama de espíritos. Autores chegam a afirmar que cerca da metade da população brasileira “participa diretamente de sistemas religiosos em que a crença em espíritos e na sua periódica manifestação através dos indivíduos é característica fundamental. Esse tipo de dado aparece muito precariamente em estatísticas e censos”[4]. E nessas práticas religiosas, envolvidas pela presença do “outro mundo” são tecidos laços de confiança e solidariedade entre os fiéis,  geração de auto-estima e afirmação de importantes benefícios espirituais e afetivos, com ações solidárias de ajuda mútua.

Ao descrever o belo ritual de filhos e filhas de santo no candomblé da Bahia, Roger Bastida fala desta experiência de intensificação na qualidade de sujeitos:

“Não são mais costureirinhas, cozinheiras, lavadeiras que rodopiam ao som dos tambores nas noites baianas; eis Omolu recoberto de palha, Xangô vestido de vermelho e branco, Iemanjá penteando seus cabelos de algas. Os rostos metamorfosearam-se em máscaras, perderam as rugas do trabalho cotidiano, desaparecidos os estigmas desta vida de todos os dias, feita de preocupações e de miséria (...). Por um momento, confundiram-se África e Brasil; aboliu-se o oceano, apagou-se o tempo da escravidão”[5].

Um catolicismo de malhas largas

            Retomando a questão do catolicismo no Brasil, há que sublinhar que esta tradição religiosa apresenta-se no Brasil de forma bem diversificada, com malhas bem distintas: temos um catolicismo santorial, um catolicismo de reafiliação, um catolicismo institucional e um catolicismo midiático. É um catolicismo que se veste de forma muito plural, que envolve dentro de si “muitas religiões” e que apresenta caminhos diversificados. São várias as formas ou alternativas de viver a fé e a crença católica no Brasil. Como sublinha Carlos Rodrigues Brandão, o catolicismo brasileiro, assim como vem experimentado na vida cotidiana, é uma religião que congrega padres e prostitutas, policiais e bandidos, fieis da renovação carismática e das comunidades de base. É “uma rara religião que, em suas muitas faces, permite que você tenha uma forma de presença nela, mesmo quando você acha que já não é mais dela”[6].

            Em recente artigo sobre o traço místico e religioso do povo brasileiro, Leonardo Boff dizia que esta “visão encantada do mundo” talvez seja uma das mais ricas e novidadeiras contribuições que os brasileiros podem oferecer à cultura mundial emergente, uma “cultura tão pouco mágica e tão pouco sensível ao jogo, ao humor e à convivência dos contrários”[7].

O desafio ecumênico e dialogal

            Toda essa riqueza interreligiosa que povoa o cenário brasileiro vem sendo nos últimos tempos embaçada por práticas localizadas de intolerância religiosa, o que é uma pena. Trata-se de uma intolerância que não combina com esse país do “sincretismo religioso”, entendido aqui no seu sentido mais positivo de intercâmbio, troca e aprendizado, ou seja, de fenômeno rico que acompanha a dinâmica universal de grupos humanos que entram em contato: “a tendência a utilizar relações apreendidas no mundo do outro para ressemantizar o seu próprio universo”[8]. É uma triste tendência que se vê por toda parte, de acirramento dos fundamentalismos, e de perspectivas religiosas que se fixam na “rigidez de um pensamento único”. Em belo texto de Bergoglio publicado aqui na Itália no jornal La Repubblica, em 13 de março de 2014, ele falava desse risco dos fundamentalismos e do substantivo desafio do diálogo. Dizia que é o diálogo que “desvela a verdade” e a “verdade que se nutre do diálogo”. Daí a necessidade da “escuta atenta, do silêncio respeitoso, da empatia sincera, o autêntico colocar-se em disposição face ao estrangeiro e ao outro”, enquanto virtudes essenciais a serem cultivadas e irradiadas no mundo de hoje[9].

            O ecumenismo e o diálogo interreligioso são empenhos que se somam e se complementam na essencial tarefa de uma ecumene planetária. Foi, aliás, o diálogo ecumênico que rompeu determinado modelo de absolutismo católico e favoreceu o diálogo com as grandes religiões do mundo. Mediante o impulso ecumênico buscou-se “corrigir dogmatismos e fanatismos que conduziram (e, em algumas situações, ainda conduzem) a enfrentamentos árduos e a inimizades, e, por outro lado (...) plasmar relações diferentes entre os que são conscientes de suas identidades particulares e desejam viver em paz”[10]. O evento de Assis, em 1986, apontou o horizonte irreversível dessa abertura: “Ou aprendemos a caminhar juntos e em paz e em harmonia, ou nos desconhecemos mutuamente e nos destruímos a nós mesmos e aos outros”[11].

            O crescente pluralismo religioso na América Latina e  no Caribe tem desafiado as igrejas cristãs. De modo particular, o assombroso crescimento pentecostal, mas também a retomada de expressões religiosas dos povos originários e de matriz africana. É o que se vem verificando entre os mayas na Guatemala, entre os povos indígenas de Chiapas, ou quéchuas, aymaras e mestiços na região andina, bem como entre os negros no Brasil e em Cuba. O esforço de compreensão adequada destes fenômenos tem sido “uma das tarefas ecumênicas mais urgentes e decisivas”[12], num caminho que possibilita captar esta irradiação como dinâmica de afirmação comunitária de povos que foram em geral excluídos da participação e cidadania social. E esse desafio ecumênico não se restringe às igrejas cristãs, envolvendo também uma dimensão macro na luta comum em favor da afirmação da vida e de sua dignidade.

Conclusão

            Em sua última obra publicada, o teólogo Jacques Dupuis falava em três atitudes essenciais para um exercício novo no campo teológico em torno da abertura interreligiosa, todas elas envolvendo um trabalho de purificação: da memória, da linguagem teológica e da inteligência teológica.  No horizonte de sua reflexão, o fundamental desafio da acolhida do pluralismo religioso, entendido como um pluralismo de princípio: que revela não só a generosidade singular de Deus em suas manifestações, como também todas as riquezas de sua “sabedoria infinita e multiforme”. Lançava Dupuis com ousadia uma provocação teológica inaugural em favor de uma “compreensão renovada no modo de pensar os ´outros` e o seu patrimônio cultural e religioso”[13].

            No clássico manifesto aprovado no I Encontro da Assembleia do Povo de Deus em Quito (Equador), no ano de 1992, firmou-se a ideia de que “o povo de Deus são muitos povos”[14]. Era a porta de entrada para uma nova perspectiva dialogal, macroecumênica, que inseria as diversas tradições religiosas do continente no mesmo sonho fraterno do Deus sempre maior. O que existe, em verdade, é uma extraordinária diversidade das tradições religiosas, vivas e pujantes em sua ação no tempo, presentes para serem reconhecidas na sua dignidade sagrada. A grande sinfonia da unidade não está ainda dada, mas encontra-se em processo, sempre adiada, sendo tecida pelos singulares fragmentos, que são as religiões, mas também as espiritualidades que animam o nosso tempo. Numa bela imagem cunhada pelo papa João Paulo II, o diálogo é uma “viagem fraterna” onde uns acompanham os outros, tendo sempre como meta transcendente o horizonte destinado por Deus. E nesta viagem estamos sempre sendo surpreendidos pelos enigmas de Deus.

Referências Bibliográficas

ASSEBURG, Benno & ZWETSCH, Roberto (orgs.). Desafios e propostas missionárias na realidade brasileira : reflexões a partir da Consulta sobre Missão realizada pelo CMI/Unidade II e o CECA, em São Leopoldo, RS, nos dias 08-11 de setembro de 1996. São Leopoldo : CECA, 1997.
BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001
BINGEMER, Maria Clara L. (Org). O impacto da modernidade sobre a religião.  São Paulo: Loyola, 1992
BRANDÃO, Carlos Rodrigues.  Revisitando o catolicismo popular. IHU-Online, ano 4, n. 169, p. 73-78, 19 de dezembro de 2005.
DUPUIS, Jacques. Il cristianesimo e le religioni. Dallo scontro all´incontro. Brescia: Queriniana, 2001.
GUIMARÃES ROSA, João. Grande sertão: veredas. 14 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.
PONTIFICIO  Consiglio per il Dialogo Interreligioso. Il dialogo interreligioso nell´insegnamento ufficiale della Chiesa Cattolica (1963-2013). Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2013.
RAMALHO, José Ricardo (Org). Uma presença no tempo. A vida de Jether Ramalho. São Leopoldo: Oikos, 2010
SANCHIS, Pierre. Pra não dizer que não falei de sincretismo. Comunicações do Iser, ano 13, n. 45, p. 4-11, 1994.
TEIXEIRA, Faustino. O diálogo interreligioso como afirmação da vida. São Paulo: Paulinas, 1997.
TEIXEIRA, Faustino & MENEZES, Renata (Orgs). Religiões em movimento. O Censo de 2010. Petrópolis: Vozes, 2013.
VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose. Antropologia das sociedades complexas. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

(Texto apresentado no Congresso Internacional, “In ascolto dell´America: encontro fra popoli, culture, religioni – Strade per il futuro”, ocorrido na Pontificia Università Urbaniana (Roma), em abril de 2004)
           
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[1] Pierre SANCHIS. Prefácio. In: Faustino TEIXEIRA e Renata MENEZES (Orgs). Religiões em movimento. O Censo de 2010. Petrópolis: Vozes, 2013, p. 14.
[2] João GUIMARÃES ROSA. Grande sertão: veredas. 14 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p. 15.
[3] Ibidem, p. 48.
[4] Gilberto VELHO. Projeto e metamorfose. Antropologia das sociedades complexas. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 54. Ver também: José Jorge de CARVALHO. Características do fenômeno religioso na sociedade contemporânea. In: Maria Clara L. BINGEMER (Org). O impacto da modernidade sobre a religião.  São Paulo: Loyola, 1992, p. 144-147.
[5] Roger BASTIDE. O candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 39.
[6] Carlos Rodrigues BRANDÃO. Revisitando o catolicismo popular. IHU-Online, ano 4, n. 169, 19 de dezembro de 2005, p. 74.
[8] Pierre SANCHIS. Pra não dizer que não falei de sincretismo. Comunicações do Iser, ano 13, n. 45, 1994, p. 7.
[10] Julio de SANTA ANA. Mestre em rigor e lealdade. In: José Ricardo RAMALHO (Org). Uma presença no tempo. A vida de Jether Ramalho. São Leopoldo: Oikos, 2010, p. 80.
[11] PONTIFICIO  Consiglio per il Dialogo Interreligioso. Il dialogo interreligioso nell´insegnamento ufficiale della Chiesa Cattolica (1963-2013). Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2013, p. 491.
[12] Walter ALTMANN. O pluralismo religioso como desafio ao ecumenismo e à missão na América Latina. In: Benno, ASSEBURG & Roberto ZWETSCH (orgs.). Desafios e propostas missionárias na realidade brasileira : reflexões a partir da Consulta sobre Missão realizada pelo CMI/Unidade II e o CECA, em São Leopoldo, RS, nos dias 08-11 de setembro de 1996. São Leopoldo : CECA, 1997. p. 61-72.
[13] Jacques DUPUIS. Il cristianesimo e le religioni. Dallo scontro all´incontro. Brescia: Queriniana, 2001, p. 474.
[14] Apud Faustino TEIXEIRA. O diálogo interreligioso como afirmação da vida. São Paulo: Paulinas, 1997, p. 149.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

O resgate da espiritualidade no cotidiano

O resgate da espiritualidade no cotidiano


Faustino Teixeira
PPCIR – UFJF


“Compositor de destinos
Tambor de todos os ritmos
Tempo Tempo Tempo Tempo
Entro num acordo contigo
Tempo Tempo Tempo Tempo”

(Caetano Veloso)



Introdução

            O tema da espiritualidade ganha uma particular atenção no tempo atual e nas discussões acadêmicas. Não há dúvida sobre o efeito crítico exercido por tal resgate nos caminhos tomados pela sociedade ocidental, fundada em outros valores, como a competitividade, a produtividade, o consumismo e a centralidade do mundo egóico. A espiritualidade suscita valores bem distintos, que dizem respeito a qualidades do espírito humano que em nosso tempo estão embaçadas ou obstruídas. São valores essenciais como o amor desinteressado, a compaixão, a atenção, a hospitalidade, o cuidado, a delicadeza, a paciência e a abertura ao outro. O objetivo aqui proposto é o de resgatar o significado da espiritualidade nesse tempo propício. Algumas distinções se fazem necessárias nesse primeiro momento de reflexão. Em primeiro lugar, entre mística e espiritualidade. Com base na pista aberta por Raimon Panikkar, a mística diz respeito à “experiência integral da vida” ou da realidade. A espiritualidade, por sua vez, é o caminho indicado para alcançar essa experiência[1]. E as formas de trilhar esse processo são distintas e plurais. Na “carta de navegação” para avançar nos meandros do Real encontram-se espiritualidades religiosas ou não, daí uma segunda distinção, agora entre espiritualidade e religião. A religião, como mostrou Émile Durkheim em sua clássica obra de 1912, “é um sistema solidário de crenças seguintes e de práticas relativas a coisas sagradas (...); crenças e práticas que unem na mesma comunidade moral, chamada igreja, todos os que a ela aderem”[2]. A espiritualidade, por sua vez, envolve uma realidade mais ampla, estando relacionada com “qualidades do espírito humano”[3], com qualidade de vida. Não está necessariamente vinculada a uma religião precisa, a doutrinas ou confissões específicas. A espiritualidade traduz a atuação de atributos básicos que não são apanágio privado das religiões, encontrando-se também presentes, mesmo em alto grau, em indivíduos ou práticas que são seculares. Firma-se no momento uma certa preferência em falar de “opções espirituais”, religiosas ou não, para ampliar o campo dos caminhos seguidos no âmbito da espiritualidade. É o que já vem sendo destacado por autores como Henri Pena-Ruiz e André Comte-Sponville, que defendem a ideia mais ampla de uma vida espiritual, que traduz a presença do espírito em práticas multiformes da vida social[4].

O apelo da profundidade

            A espiritualidade diz respeito ao cultivo de uma dimensão fundamental, que trata da interioridade do ser humano, envolvendo a “expansão da vitalidade” e da qualidade de vida. Um caminho que resgata uma concepção mais fecunda do ser humano, em particular sua dimensão de profundidade, que foge aos parâmetros transmitidos pela cultura dominante. Em texto iluminador, Leonardo Boff assinala:

“A singularidade do ser humano consiste em experimentar a sua própria profundidade. Auscultando a si mesmo percebe que emergem de seu profundo apelos de compaixão, de amorização e de identificação com os outros e com o grande Outro, Deus. Dá-se conta de uma Presença que sempre o acompanha, de um Centro ao redor do qual se organiza a vida interior e a partir do qual se elaboram os grandes sonhos e as significações últimas da vida. Trata-se de uma energia originária, com o mesmo direito de cidadania que outras energias, como a sexual, a emocional e a intelectual. Pertence ao processo de individuação acolher essa energia, criar espaço para esse Centro e auscultar estes apelos, integrando-os ao projeto de vida. É a espiritualidade no seu sentido antropológico de base”[5]. 

            A espiritualidade traduz um modo de ser, uma atitude essencial que acompanha o ser humano em cada passo de seu cotidiano. Ela expressa uma energia que é comum a todos, independente de crença religiosa, visibilizando a dimensão de profundidade da própria condição humana. Não há como desvencilhar o ser humano da espiritualidade, pois essa é uma dimensão antropológica fundamental, compondo o repertório existencial de todo vivente. O teólogo Karl Rahner sublinhou esse traço antropológico da transcendentalidade, e o potencial de abertura do humano à experiência do mistério santo, em sua dupla dimensão de distância e proximidade: do mistério que por um lado escapa aos confins da vida cotidiana, mas por outro vem acolhido como presença acolhedora e intimidade amorosa que se comunica. Trata-se, como lembra Rahner, de uma experiência que acontece não apenas quando o sujeito participa explicitamente de uma atividade religiosa, mas em todo momento em que ele atua de forma autêntica a sua experiência. Diz Rahner a respeito:

“A experiência original de Deus até em sua autocomunicação pode ser tão universal, tão atemática e tão ´arreligiosa`, que ocorra, sem nome, mas realmente, onde quer que venhamos a exercer nossa existência. Quando a pessoa, conhecendo teórica ou praticamente ou agindo como sujeito, se vê confrontada com o abismo de sua existência, abismo que é a única realidade a dar base a tudo, e quando essa pessoa tem a coragem de olhar para dentro de si e achar nas próprias profundezas a sua verdade última, aí ela poderá fazer também a experiência de que esse abismo a acolhe como sua verdadeira e indulgente segurança, e dá-lhe legitimação e ânimo para a fé (...)”[6].

                  Em linha de sintonia com a reflexão de Karl Rahner, o teólogo Paul Tillich também trabalha com a categoria de profundidade. Faz recurso a ela para expressar de forma mais viva o mistério de Deus. Todo ser humano encontra-se sob o impacto da “Presença Espiritual”, e no âmbito de sua profundidade, na base mais íntima de seu ser, revela-se seu fundo criador, ou seja, aquilo que lhe diz respeito “de forma última”[7]. Na visão de Tillich, Deus não é um ser sobrenatural, fixado no além ou nas alturas, mas alguém que se encontra no fundo infinito e inexaurível da própria existência, no centro mesmo da vida[8]. Assim como no ser humano há essa dimensão incógnita de profundidade, também nas religiões há em sua profundidade (depht) um “ponto virgem” que acaba sendo ocultado nas realizações ambíguas de sua própria particularidade. É um ponto que se visualiza à medida que ocorre um aprofundamento da própria religião, no desenvolvimento da dinâmica orante, reflexiva e prática. Na medida em que se avança no sentido desta interioridade, os traços rotineiros da dinâmica religiosa particular são relativizados e firma-se uma “liberdade espiritual” singular, que favorece a percepção viva da presença do divino em “todas as expressões do sentido último da vida humana”[9]. 

            O Mistério maior sem nome identifica-se com essa “infinita e inexaurível profundidade e base de todo ser”. A palavra “Deus” está vinculada a esta profundidade. E como diz o bispo John Robinson, com base em Paul Tillich,

“se essa palavra não tem grande sentido para ti, tradu-la, e fala das profundidades da tua vida, da fonte do teu ser, da tua máxima preocupação, daquilo que tomas a sério sem qualquer reserva. Talvez, para conseguir isso, devas esquecer tudo quanto de tradicional aprendeste acerca de Deus, talvez mesmo a própria palavra. Sabes já muito de Deus se souberes que Deus significa profundidade. E nesse caso não te podes chamar ateu ou descrente, porque não podes dizer ou pensar: ´A vida não tem profundidade. A vida é superficial. O próprio ser não passa de algo à superfície`. Se pudesser afirmar isto com toda a seriedade, então serias ateu; de contrário, não o és. Quem conhece a profundidade, conhece a Deus”[10].

Uma experiência holística da realidade

            Em clássica obra sobre a filosofia da religião, o místico e pensador judaico, Abraham Joshua Heschel, sinalizou que um dos riscos que acompanham o avançar da civilização é a perda do sentido da maravilha[11]. Algo semelhante afirma Raimon Panikkar em seu diagnóstico da crise da filosofia no mundo contemporâneo, ao reconhecer a “perda do sentido místico da existência”[12]. Argumenta que o fixar-se prevalentemente na “opus rationis” traduz um empobrecimento na captação do traço vital que é essencial, e aquilo que ajuda a mover o ser humano em sua existência. Propõe o desafio da percepção de uma intuição cosmoteândrica, que envolve a perspectiva de sintonia entre o Divino, o Humano e o Cósmico, numa trindade indissolúvel. Enquanto experiência que envolve essa totalidade, a mística diz respeito a todos os problemas humanos, bem como o caminho de sua realização, a espiritualidade. Daí se afirmar, com razão, que se trata de uma “experiência holística da realidade”. O exercício da espiritualidade é o “respiro mesmo da vida”. O contemplativo está inserido no tempo com a atenção desperta, e em momento algum se vê deslocado ou distante dos reais problemas e questões que tocam o desafio humano. É alguém que não necessita de um céu distante, porque reconhece a sacralidade de todas as coisas que o rodeiam no tempo. É alguém que “simplesmente ´senta`, simplesmente ´é`, vive”[13].

            Dizem os grandes mestres do zen budismo que a vida cotidiana é a via, “o coração cotidiano é a via”[14]. A vida de todos os dias torna-se lugar de uma inusitada liturgia. Vibra no zen essa consciência cotidiana, algo muito simples e delicado: “dormir quando se tem sono e comer quando se tem fome”. O acesso à verdade zen esta nesta atenção ao cotidiano: “Se realmente desejais penetrar a verdade zen, fazei-o enquanto estais de pé ou andando, dormindo ou sentados, enquanto falais ou ficais em silêncio, ou quando estais ocupados nos diversos afazeres do trabalho cotidiano”[15]. O que se demanda é uma atenção desperta para os detalhes do dia a dia, com a mente desimpedida e disponível. E isto começa a partir do momento que os olhos se abrem no início da manhã e dura todo o tempo em que a mente está desperta. Cada instante ganha um significado especial, como por exemplo no manejo de uma folha de verdura ao preparar uma refeição[16]. O mundo fenomênico, demasiadamente humano, é o que conta na experiência zen. Não há nada além da experiência concreta, sensível, onde se desenrola a vida. E a consciência espiritual que se desentranha nesse tempo vem dotada de um particular “poder dinâmico”, que propicia um novo modo de ver[17].

            O desafio consiste em acolher o cotidiano em sua elementar maravilha. Mas para tanto há que transformar o mundo interior. A paisagem externa ganha um conteúdo novidadeiro na medida em que o olhar vem educado. Outro grande mestre zen, Kodo Sawaki, dizia: “Os homens acumulam consciência, mas penso que o horizonte último reside na capacidade de poder sentir o som dos vales e captar as cores das montanhas”[18]. E fazê-lo com respeito, reverência e gratuidade (mushotoku).

Há que saber ler o que há no mundo com os olhos embebidos pelo Real (Haqq), para além da circularidade limitadora da dinâmica criatural (Khalq). Uma pista que vem lançada pelos místicos sufis: lavar o rosto e as mãos nas águas desse lugar, de forma a poder ver o Real que subjaz na realidade. É o que diz, por exemplo, Rûmî de forma tão sublime num de seus poemas. Reverberando uma passagem do romance de Nabokov, que trata a questão do dom, Lila Azam Zanganeh assinala: “O outro mundo nos rodeia sempre e não é, de modo algum, o ponto de chegada de nenhuma peregrinação. Em nossa casa mundana, as janelas são substituídas por espelhos; as portas, até certa altura, permanecem fechadas; mas o ar adentra pelas frestas”. Mesmo num horizonte que se apercebe obscurecido, pontuado por  “escuridão vítrea”, cintila a “estranheza da vida” com sua magia, suscitando a percepção de um “extraordinário estofo”, numa textura cintilante que se revela magnífica[19].

O cultivo da espiritualidade

A espiritualidade, como já assinalado, diz respeito às “qualidades do espírito humano”, revelando uma dimensão de profundidade. A espiritualidade aciona o movimento desses valores fundamentais que são irradiados por todo canto. Ela é um exercício de vida e experimentação. Deixar-se habitar pela atmosfera da espiritualidade é criar um espaço garantido e especial para as fragrâncias da profundidade. Os frutos vão surgindo naturalmente, pois dali se irradiam serenidade, vitalidade e entusiasmo. A paz também é um dos efeitos imediatos desse novo modo de ser, uma paz que brota do âmbito da interioridade:

“Dessa paz espiritual a humanidade precisa com urgência. Ela é a fonte secreta que alimenta a paz cotidiana em todas as suas formas. Ela irrompe de dentro, irradia em todas as direções, qualifica as relações e toca o coração íntimo das pessoas de boa vontade. Essa paz é feita de reverência, de respeito, de tolerância, de compreensão benevolente das limitações dos outros e da acolhida do Mistério do mundo. Ela alimenta o amor, o cuidado, a vontade de acolher e de ser acolhido, de compreender e de ser compreendido, de perdoar e de ser perdoado”[20].

            O cultivo da espiritualidade, entendida como movimento e caminho para a experiência do Real, exige do sujeito uma dinâmica particular de despojamento e interiorização. Há que romper com o modo habitual de ser e deixar-se tocar pelos apelos da profundidade. Não se trata de uma viagem tranquila, mas uma “saída” para dentro de si mesmo. Os grandes mestres espirituais assinalam que essa viagem interior, apesar de árdua e desgastante, revela surpresas inesperadas. Ela requer disposições precisas, e um exercício radical de despojamento, humildade e purificação do coração. Não há como viver a intensidade da experiência senão deslocando o ego de sua centralidade, com a  afirmação de sua vulnerabilidade, contingência e limite. O acesso ao fundo do Mistério, em sua centelha mais íntima, requer uma “límpida humildade”, como revela Mestre Eckhart. E sublinha de forma poética:

“As estrelas derramam toda a sua força no fundo da terra, na natureza e no elemento da terra, produzindo ali o ouro mais límpido. Quanto mais a alma chega ao fundo e no mais íntimo de seu ser, tanto mais a força divina nela se derrama plenamente e opera veladamente de maneira a revelar grandes obras e a alma torna-se bem grande e elevada no amor a Deus, que se compara ao ouro límpido”[21].

                  É o Mistério mesmo que se derrama em vida e doação nesse “portal da misericórdia” que é o coração. Daí falar Mateus com autoridade que os puros de coração verão a Deus (Mt 5,8). Para o exercício dessa purificação requer-se um trabalho de silenciamento, de repouso e escuta. É o que Thomas Merton identificou como “trabalho de cela”. E isto para poder “estar presente”, concentrado. Assim como a natureza precisa repousar e recuperar-se durante a noite, assim também o ser humano necessita desse “espírito da noite”, da “aragem da aurora”, dessa passividade e repouso para poder encontrar sua identidade mais rica[22]. A Bíblia relata a importância dessa “quietação” quando trata da observância do sábado, dia de repouso sagrado. O espírito necessita desse precioso momento em que se deixa envolver pelo silêncio, de forma a preparar todos os sentidos para o espetáculo da experiência do Real, do abandono no mundo. Num precioso trabalho sobre a espiritualidade dos sentidos vigilantes, o teólogo Jürgen Moltmann fala desse despertar dos sentidos pela animação vivificadora do Espírito[23]. Tudo incidindo numa espiritualidade nova, voltada inteiramente para a vida, “a única vida que Deus ama na sua totalidade”; numa espiritualidade dos sentidos, sintonizada para perceber a presença do Mistério em todas as coisas.

Conclusão

            O Mistério está aí, no meio das coisas. Esse é um aprendizado essencial para aquele que busca adentrar-se nos caminhos da espiritualidade. Já dizia o grande místico cristão, Teilhard de Chardin, que Deus marca sua presença nos âmbitos mais recônditos da realidade, “no mais secreto, no mais consistente, no mais definitivo do mundo”. Basta educar o olhar para então captar esta presença diáfana, que sinaliza a ausência de profanidade para todo aquele que sabe ver[24]. Assim também a percepção do mestre Dôgen, para o qual o despertar não é senão a consciência viva do instante presente. É o que expressa de forma solene em seu Shôbôgenzô, na seção onde transcreve um discurso pronunciado em 1242 (Zenki): “cada instante é um instante de plenitude”[25]. O mesmo mestre assinala que “cada coisa canta a verdade” e todo grão de areia, por mais ralo que seja, revela a singular realidade[26].

            Num dos mais belos sermões de Mestre Eckhart, onde aborda a relação de Jesus com Marta e Maria, vislumbra-se o traço de uma mística do cotidiano. Opera-se ali uma interessante inversão na visão da espiritualidade tradicional sobre o tema, com um destaque especial ao lugar de Marta. Para o místico renano, Marta é alguém que se encontra na “condição essencial” (weselîch stân), enquanto exercita ao extremo o seu fundo da alma. É alguém que está no tempo “essencialmente”, ou seja, “está junto às coisas” mas livre com relação a elas. Trata-se de algo que só acontece com quem viveu o despojamento de forma radical[27]. Esse é o desafio essencial para todos os que buscam uma espiritualidade profunda. Adentrar-se no mundo, abandonar-se aos seus desafios, mas mantendo sempre acesa a liberdade e o desapego. Nada mais estranho ao mundo espiritual do que destacar-se do mundo para vivenciar o mistério de Deus. A experiência de Deus, ao contrário, envolve experimentar a vida em profundidade. Estão aí todas as tradições místicas para sinalizar essa verdade: o contato vivo com o Mistério nas coisas suscita no buscador a dinâmica de um novo olhar, que transfigura a realidade do mundo, permitindo ao mesmo alcançar “níveis de profundidade e de beleza” que escapam a todo olhar superficial[28].

            Nada mais essencial à vida do que a “fragrância da espiritualidade”. Cabe ao buscador captar esse “perfume” do Mistério em todas as coisas e saber irradiá-lo com alegria e emoção. E isto em todas as tarefas da vida cotidiana. Como indicou Leonardo Boff, a pessoa que abre em seu mundo pessoal esse caminho de profundidade “irradia vitalidade e entusiasmo, porque carrega Deus dentro de si. Esse Deus é amor que no dizer do poeta Dante move o céu, todas as estrelas e o nosso próprio coração”[29].

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[1] Raimon PANIKKAR. Vita e parola. La mia opera. Milano: Jaca Book, 2010, p. 21; Id. L´experienza della vita. La mistica. Milano: Jaca Book, 2005, p. 18 e 57-58.
[2] Émile DURKHEIM. As formas elementares de vida religiosa. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 79.
[3] DALAI LAMA. Uma ética para o novo milênio. Rio de Janeiro: Sextante, 2000, p. 32-33; Leonardo BOFF. Espiritualidade. Um caminho de transformação. Rio de Janeiro: Sextante, 2001, p. 20-21.
[4] Henri PENA-RUIZ. La laïcité. Paris: Flammarion, 1998, p. 22; André COMTE-SPONVILLE. O espírito do ateísmo.  São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 10.
[5] Leonardo BOFF. Espiritualidade, dimensão esquecida e necessária. In:
[6] Karl RAHNER. Curso fundamental da fé. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 164.
[7] Paul TILLICH. Teologia sistemática. 5 ed. São Leopoldo: EST/Sinodal, 2005, p. 123.
[8] John A.T. ROBINSON. Um Deus diferente. Lisboa: Herder, 1967, p. 55-61.
[9] Paul TILLICH. Le christianisme et les religions. Paris: Aubier, 1968, p. 173; Id. La mia ricerca degli assoluti. Roma: Ubaldini, 1968, p. 103. O que caracteriza o místico é esse exercício de aventurar-se no âmbito da profundidade da religião, buscando restabelecer o contato imediato e experimental com a fonte primordial. É alguém que não se contenta com a forma tradicional de religião. Tendo sido agraciado por experiência singular de iluminação, passa a captar dimensões novas e incandescentes do Mistério, fruto dessa dinâmica de interiorização. Ver a respeito: Juan Martin VELASCO. El fenómeno místico, clave para la compreensión del hecho religioso y del ser humano. In: Luce LÓPEZ-BARALT (Ed.). Repensando la experiencia mística desde las ínsulas extrañas. Madrid: Trotta, 2013, p. 34-35.
[10] John A.T. ROBINSON. Um Deus diferente, p. 25.
[11] Abraham Joshua HESCHEL. L´uomo non è solo. Una filosofia della religione. Milano: Mondadori, 2001, p. 45.
[12] Raimon PANIKKAR. Mistica Pienezza di vita. Mistica e spiritualitá, tomo 1. Milano: Jacabook, 2008, p. 13. O filósofo Henrique Cláudio de LIMA VAZ também argumentava nesse sentido, ao questionar a “dissolução da inteligência espiritual” no bojo da revolução antropocêntrica da filosofia moderna: Experiência mística e filosofia na tradição ocidental. São Paulo: Loyola, 2000, p. 19.
[13] Raimon PANIKKAR. Mistica Pienezza di vita, p. 11-16 e 51-53. Também para Thomas Merton, em sua experiência na Trapa, a percepção da vida do contemplativo ia nesta direção: “A vida do contemplativo era simplesmente viver, como o peixe na água”. A dinâmica contemplativa como um “estado de ânimo” que atua em todos os momentos da existência, sinalizando uma atmosfera singular na qual se vive: Ernesto CARDENAL. Vida perdida. Memórias 1. Madrid: Trotta, 2005, p. 144 e 187. Dogen dizia que os grande mestres do zen não faziam nada de extraordinário: simplesmente “comiam arroz e bebiam chá”: DÔGEN. Kajô – La vie quotidienne. In: Maitre DÔGEN. Shôbôgenzô. La vrai loi, trésor de l´oeil. Tome 3. Vannes Cedex: Sully, 2007, p. 299.
[14] WOU-MEN. Passe sans porte. 2 ed. Paris: Villain et Belhomme, 1968, p. 79. Wou-men, em sua clássica obra de 1229, retoma um dito tradicional do mestre chinês Nan-ts´iuan, firmando-o como uma das regras essenciais do ensinamento zen. Ver também a introdução de D.T.Suzuki na obra de Eugen HERRIGEL. A arte cavalheiresca do arqueiro zen. São Paulo: Pensamento, 1978, p. 11; Id. Vivere zen. Roma: Mediterranee, 1996, p. 12.
[15] D.T. SUZUKI. A doutrina zen da não-mente. São Paulo: Pensamento, 1993, p. 92-93 e 89.
[16] Francis Dojun COOK. Como allevare un bue. La pratica dello zen come è insegnata nello Shobogenzo del Maestro Dogen. Roma: Ubaldini, 1981, p. 25; Gianpietro Sono FAZION. Lo zen di Kodo Sawaki. Roma: Ubaldini, 2003, p. 41 e 45; DOGEN & Uchiyama RÔSHI. Istruzioni a un cuoco zen. Roma: Ubaldini, 1986, p. 21; DÔGEN. Shôbôgenzô – Zenki. St-Just-La-Pendue: Les Belles Lettres, 2011.
[17] Toshihiko IZUTSU. Hacia una filosofia del budismo zen. Madrid: Trotta, 2009, p. 33; Francis Dojun COOK. Como allevare un bue, p. 56.
[18] Gianpietro Sono Fazion. Lo zen di Kodo Sawaki, p. 100-101.
[19] Lila Azam ZANGANEH. O encantador. Nabokov e a felicidade. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 234-235.
[20] Leonardo BOFF. A espiritualidade na construção da paz. In:
[21] Mestre ECKHART. Sermões alemães 1. Bragança Paulista/Petrópolis: Editora Universitária São Francisco/Vozes, 2006, p. 297 (Sermão 54 a).
[22] Thomas MERTON. Reflexões de um espectador culpado. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 158.
[23] Jürgen MOLTMANN. Spiritualità dei sensi vigili. Modena: Fondazione Collegio San Carlo di Modena, 2006, p. 6-7 e 18-19.
[24] Teilhard de CHARDIN. O meio divino. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 12-13 e 33.
[25] DÔGEN. Shôbôgenzô – Zenki, p. 75-76.
[26] Gianpietro Sono Fazion. Lo zen di Kodo Sawaki, p. 39-40. Sinaliza Dôgen em seu Shôbôgenzô: “Se todas as coisas constituem revelação da realidade última, também um único grãozinho de pó traduz a revelação da realidade única”: ibidem, p. 45.
[27] Mestre ECKHART. Sermões Alemães 2. Bragança Paulista/Petrópolis: São Francisco/Vozes, 2008, p. 128 e 133 (Sermão 86). E também: Alois M. HAAS. Introduzione a Meister Eckhart. Fiesole: Nardini, 1997, p. 101-102 e 104.
[28] Juan Martin VELASCO. El fenómeno místico..., p. 54-55.
[29] Leonardo BOFF. Espiritualidade, dimensão esquecida e necessária. In:
http://www.uniblog.com.br/cariocadapiedade/34433/leonardo-boff---o-teologo-da-libertacao.html (acesso em 29/04/2014).