Teólogo mineiro analisa o primeiro ano
do papa Francisco à frente da Igreja
(Entrevista concecida a Álvaro Castro –
Jornal Hoje em Dia, 13/03/2014)
Há
um ano os olhos do mundo estavam voltados para a chaminé da capela Sistina no
Vaticano, esperando que uma fumaça branca fosse lançada, indicando que o novo
pontífice da Igreja Católica havia sido escolhido. Após a saída de Bento XVI no
dia 28 de fevereiro, de maneira repentina e contrariando as tradições católicas
em abandonar o posto que é vitalício, muito se debateu sobre quem seria o novo
papa e se ele seria capaz de resgatar fieis cada vez mais distantes. E
contrariando as expectativas de que o novo líder seria um europeu, um argentino
foi escolhido para assumir o cargo mais alto dentro da hierarquia católica.
Jorge Mario Bergoglio foi então anunciado, escolhendo o nome Francisco (o
primeiro usar este nome em homenagem ao santo conhecido por sua humildade), e
já chegou fazendo história, ao ser o primeiro latino-americano e o primeiro
jesuíta a ocupar o posto.
De
jeito simples, bastante simpático e torcedor de carteirinha do San Lorenzo
(literalmente), foi aos poucos mudando o tom duro e, em certo ponto, obscuro
que a Santa Sé havia tomado nos últimos anos, sob o comando de Joseph Alois
Ratzinger. Ele assumiu publicamente a luta contra denúncias de irregularidades
que atingiram a Santa Sé e se pronunciou de forma contundente sobre acusações
de pedofilia e questões tratadas até então como tabu aos católicos, como o
aborto e o homossexualismo. "Se uma pessoa é gay e se está em busca do
Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgar?", disse sobre o tema.
Aos
brasileiros, trouxe a marca da humildade ao desfilar pelo Rio de Janeiro em
carro simples, com as janelas abertas, quebrando mais uma série de protocolos e
tradições, se aproximando do povo e ganhando novamente a simpatia dos fiéis,
que aos poucos se afastaram da Igreja com a morte de João Paulo II e que não
retornaram com Bento XVI.
Para entender melhor o significado de seu primeiro ano
à frente da Igreja, seus desdobramentos e consequências para os católicos de
Minas, o Hoje em Dia conversou com o teólogo mineiro (*) Faustino Teixeira,
doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma), pesquisador
e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
1
- Como você avalia de forma geral este primeiro ano do papado de Francisco?
Quais seus aspectos positivos e seus aspectos negativos?
Acredito que essa presença do papa Francisco na vida
da Igreja católica significou um impacto da maior grandeza. A mudança mais
importante ocorreu no estilo de sua atuação, assumindo um papel novidadeiro de
pastor. O que mais impressiona em seu trabalho pastoral é o exercício de
acolhida, de escuta, de ampliação dos canais de conversação e de mudança
radical no trabalho evangelizador. É todo um projeto que está em curso, no
sentido de retomada da perspectiva evangélica original, de cuidado e atenção
para com os pobres, na linha do seguimento de Jesus. O que está em jogo não é a
ampliação quantitativa dos quadros católicos, mas a afirmação de um novo modo
de ser igreja, em que a centralidade está no testemunho de vida, mais do que na
dinâmica disciplinadora da vida ecclesial. Com respeito aos aspectos negativos,
prefiro falar em desafios em aberto: a questão da mulher na igreja, da
descentralização da vida ecclesial, da ampliação da colegialidade na igreja, do
exercício de maior sintonia da igreja com os desafios do tempo e a reforma viva
da cúria romana.
2 - Ao contrário do que muitos imaginavam, a Igreja
consagrou um papa argentino em um momento em que se projetava o retorno de um
italiano ao Vaticano. Quais os reflexos dessa escolha do papado para nós
brasileiros e, sobretudo, para os católicos mineiros, com o sumo pontífice
oriundo da América Latina?
O que mais encanta os latino-americanos no papa
Francisco é o seu despojamento e a sua alegria. É alguém que favoreceu um novo
alento para uma igreja que passava por momentos de forte desencantamento. Diria
ainda mais, de uma igreja que alimentava, com sua prática e orientação, um
sentimento crescente de desafeição, sobretudo entre os jovens. O papa Francisco
veio trazer uma nova energia espiritual, e o que encanta, um testemunho de uma
igreja servidora e acolhedora. Para a América Latina, que foi o berço da
teologia da libertação, a sintonia com o papa Francisco é muito forte. É um
papa que traz consigo uma mensagem evangelizadora que foi um traço comum na
prática eclesial do continente em décadas passadas, desestimulada em seguida
por toda uma dinâmica centralizadora que marcou as últimas décadas. Francisco
despertou novamente a esperança.
3- Minas Gerais tem um grande contingente de
católicos, com mais de 14 milhões de fiéis. De que forma que as posturas de
Francisco tem refletido nas decisões e posturas da Igreja Católica em Minas
Gerais?
Os reflexos ainda são pequenos, pois ainda temos um
corpo eclesial que foi moldado por outra dinâmica evangelizadora, dos dois
últimos papas. A mudança no papado não se refletiu ainda na mudança do ritmo
eclesial. É uma questão de tempo, e creio que isto ainda vai demorar, pois as
teias de uma nova dinâmica evangelizadora exigem transformações bem precisas:
no modo de pensar a igreja, na assunção de uma nova perspectiva de serviço, de
quebra de comportamentos restritivos arraigados e tantas outras coisas. Temos
ainda uma igreja em estado de choque, diria, pois convocada a um novo modo de
ser, bem diferente do que estava acontecendo nas últimas décadas. É o que
Francisco vem dizendo nos últimos tempos: a necessidade de romper comportamentos
tradicionais, de ir ao encontro do outro, de quebrar práticas de acomodação, de
adequar os discursos e práticas às novas exigências evangelizadoras. E
sobretudo ouvir os clamores do tempo. Nossa igreja estava mais acostumada a
ditar as normas… Agora deve entrar num ritmo diferente, de mais humildade e
vocação ao serviço.
4- No começo deste ano, a BBC Brasil defendeu uma
"revolução suave" de Francisco à frente da Igreja. É possível
corroborar esta afirmação? O papado de Francisco realmente vem trazendo
mudanças à Igreja da magnitude um processo revolucionário? Esse processo pode
ser sentido na igreja mineira?
Como bom jesuíta, o trabalho de Francisco é feito com
muito discernimento, sem muita pressa. O traço da paciência marca o seu
projeto. Mas as mudanças estão em curso. Diz Francisco na longa entrevista
concedida ao pe. Antonio Spadaro, em agosto de 2013: “O discernimento no Senhor
guia-me no meu modo de governor”. Mas vai sempre em frente, com a tranquilidade
que a gravidade da situção exige. Diz ainda: “Tenho de esperar, avaliar
interiormente, tomando o tempo necessário. A sabedoria do discernimento resgata
a necessária ambiguidade da vida e faz encontrar os meios mais oportunos, que
nem sempre se identificam com aquilo que parece grande ou forte”. Os reflexos
das mudanças já se fazem sentir, também na igreja mineira, não há dúvida.
5- O papa Bento XVI, antecessor de Francisco, foi
muito criticado durante todo seu pontificado pela falta de carisma e um certo
endurecimento da Igreja. É possível afirmar que Francisco quebrou essa
"marca", dando um tom mais brando e "próximo" aos fiéis
durante seu primeiro ano à frente da
Igreja Católica?
Sem dúvida alguma, Francisco traz consigo uma marca de
pastor, pontuado pela humildade, pela alegria e pela dinâmica da escuta. O papa
Ratzinger vinha habitado por ares mais sombrios, talvez em razão do influxo
agostiniano. Era um papa-teólogo e disciplinador. Muito preocupado com a
restauração na igreja e muito crítico diante dos caminhos do pós-concílio. Suas
atitudes com respeito ao diálogo eram também muito restritivas. Francisco
marca, sem dúvida, uma mudança significativa. E o seu tom é muito claro: de
retomada de uma igreja mais preocupada em “curar as feridas e aquecer o coração
dos fiéis”, numa perspectiva de maior proximidade. E outro traço importante: é
portador de um discurso simples, de fácil acesso, pontuado pelo tempero da
alegria e da esperança. E um discurso que vem acompanhado de uma prática de
testemunho efetivo, com sinais vivos e precisos. É disso que a comunidade
cristã está precisando mais nesses tempos de apatia e desencanto.
6- Durante seu primeiro ano à frente da Santa Sé,
Francisco vem lutando para combater as irregularidades burocráticas dentro do
Vaticano. Como está sendo seu desempenho na prática e também com relação à
imagem da igreja após sua entrada? Além disso, ao admitir que há problemas relacionados a pedofilia e a
corrupção no banco do Vaticano, por exemplo, o papa se indispõe de alguma forma
com a cúria, que durante séculos tentou abafar esses escândalos?
A colegialidade foi o caminho escolhido por papa
Francisco para lidar com essa difícil questão, e com todos os escândalos que
marcaram os últimos anos no Vaticano, que apressaram a renúncia do papa
Ratzinger. Logo no início de seu pontificado criou uma comissão de cardeais
para tratar da reforma da cúria, tendo como coordenador o arcebispo de
Tegucigalpa (Honduras), Oscar Andrés Rodriguez Maradiaga. Os trabalhos dessa
comissão já mostram frutos importantes, indicando que o projeto de Francisco
não é brincadeira ou apenas retórica, mas expressa uma vontade viva de
transformação no seio da igreja. Longe de querer abafar os problemas, o que se
verifica é uma vontade de mudança e de transformar esse terreno minado por
tristes escândalos.
7- Chamou muito a atenção a imagem do papa no Rio de
Janeiro em carro mais popular, percorrendo as ruas da cidade de janela aberta,
dando mais espaço para a aproximação do povo. Pode-se esperar que essa imagem
mais "humana" e menos ostentativa se mantenha? De que forma isso se reflete nas escolhas dos
temas abordados pelo papa até este momento?
A viagem ao Rio de Janeiro, assim como a presença de
Francisco em Lampeduza, forneceram a marca desse papado. Foram visitas que
deram o toque evangelizador de Francisco, como porta de entrada de uma nova
forma de presença da igreja. Essa imagem mais “humana” é o que confere a
grandeza desse novo profeta na linhagem do poverello de Assis. A razão mais
forte de seu encanto está neste seu testemunho, que certamente amplia as
possibilidades de sua indicação para o prêmio nobel da paz. O nosso tempo
precisa, sim, de palavras e gestos de esperança, e isso Francisco traz em sua
vida como uma tatuagem.
8- Apesar de uma imagem mais branda e
"progressista", pode-se esperar que a Igreja apresente abordagens
mais "abertas" a questões chave como o homossexualismo, aborto e o
uso de anticoncepcionais? A postura agregadora em relação a homossexuais e a outras
religiões, dentre outros temas espinhosos para a igreja, tem potencial para
mudar a forma como as pessoas, principalmente os jovens, enxergam a igreja
católica?
O que marca a atuação de papa Francisco é a capacidade
de acolhida. Assinalou por diversas vezes nesse primeiro ano de pontificado que
a tarefa fundamental da comunidade eclesial é “curar as feridas” e escutar a
dor daqueles que sofrem e são excluídos. No campo da sexualidade existem
aqueles que foram excluídos da atenção da igreja, e Francisco lamenta isso. Durante
o voo de regresso a Roma, depois de sua visita ao Brasil, ele falou que a
igreja não está para julgar os homossexuais “de boa vontade”, não cabendo à
igreja intervir nesse campo da intimidade. Assinala que não pode haver
“ingerência espiritual na vida pessoal”. É tarefa da igreja estar presente
também nesse campo, com escuta e atenção. Francisco fala no mistério do ser
humano, e assinala: “Na vida, Deus acompanha as pessoas e nós devemos
acompanhar com misericórdia. Quando isso acontece, o Espírito Santo inspira o
sacerdote a dizer a coisa mais apropriada”. Ou seja, Francisco faz a opção de
discernimento e não de julgamento precipitado. Isso faz parte de sua trajetória
de pastor, que é convocado a avaliar caso a caso. Isso vale para todas as
outras situações que envolvem a sexualidade. Para ele, Francisco, o
confessionário não pode ser uma “sala de tortura”, mas um “lugar de
misericórdia”.
9- Qual traço ou característica você
acredita que poderia resumir o primeiro ano de Francisco como pontífice?
O que
resume de forma mais bonita sua presença na vida da igreja neste primeiro ano
de pontificado é a forma de sua presença e de seu testemunho, pontuados pela
humildade, abertura, alegria e esperança. São esses traços essenciais que
conferem a Francisco um carisma muito especial, favorecendo um aroma
evangelizador novidadeiro. Desse testemunho que conjuga simplicidade e profecia
nasce uma fragrância singular, que ilumina e seduz.
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