Prefácio – Imitação de Cristo
(Henrique Cristiano José Matos. Imitação de Cristo. Caminhos
de crescimento espiritual. Belo Horizonte: O Lutador, 2014)
É com grande alegria que apresento essa edição bilíngue da
obra de Tomás de Kempis, Imitação de
Cristo, este clássico livro que traduz o cerne da espiritualidade da
Devoção Moderna. Outras traduções foram publicadas no Brasil, mas esta tem uma característica
peculiar, expressando uma preciosa pesquisa de investigação histórica e de
cuidado literário. Com o trabalho realizado por Frater Henrique Cristiano José
de Matos, o leitor consegue acessar o conteúdo da obra com a base necessária de
compreensão do contexto histórico e da inspiração que moveu esse grande
espiritual do século XIV.
Como traço novidadeiro, a partilha de uma rica pesquisa
realizada junto ao Instituto de Espiritualidade “Titus Brandsma”, vinculado à
Universidade de Nimega (Holanda), e em particular ao trabalho realizado por
Frei Rudolf van Dijk, da ordem carmelita, responsável pela mais rica edição
bilíngue da Imitação de Cristo,
publicada em 2008. É este instituto de pesquisa, fundado pela Província
Neerlandesa da Ordem dos Carmelitas da Antiga Observância, que vem realizando
nos últimos tempos as mais importantes investigações científicas sobre a
Devoção Moderna, trazendo pistas inovadoras para a compreensão da clássica obra
de Tomás de Kempis.
O resultado mais preciso das investigações
realizadas, e assumidas nesta edição, é uma nova ordenação dos livros que
compõem a Imitação de Cristo. Nas
edições tradicionais, a obra finalizava com o livro de exortação à sagrada
comunhão, sendo precedido pelo livro sobre a consolação interior. Dava-se,
assim, uma importância fundamental à comunhão eucarística, entendida como
coroamento do caminho espiritual. Na nova edição há uma mudança de ordem, e de
compreensão teológica, favorecendo uma melhor percepção da dimensão mística
deste livro tão popular. Com a nova visão, o livro apresenta-se como um manual
religioso dividido em quatro etapas: iniciando com a convocação ao abraço da
vida espiritual e concluindo com a união deificante proporcionada pelo diálogo
intradivino. A nova sequência, na verdade, vem retomar a ordem original do
livro, traduzindo uma “surpreendente articulação interna” e uma
“progressividade do itinerário espiritual”.
Em sua preciosa introdução, Frater
Henrique desoculta esse traço místico essencial do livro de Thomas Kempis,
sublinhando que a meta final do percurso espiritual não é o Cristo, celebrado
na Eucaristia, mas o Pai celeste. A Eucaristia acena para um horizonte que é
mais amplo e que expressa a íntima união com Deus. Para utilizar uma imagem de
João da Cruz, a Eucaristia acena para uma ceia maior, que “deleita e enamora”,
o panis angelicum que é o alimento do
“próprio Amado”.
Com a reflexão sugerida, a obra
apresentada revela-se como um “guia mistagógico”, indicando uma precisa
pedagogia religiosa que privilegia um caminho interior de crescimento
espiritual. Em linha de sintonia com a inspiração traçada pela devoção moderna,
a Imitação de Cristo sublinha a
centralidade da interioridade, mas pontuada pelo seguimento de Jesus. Trata-se
de uma “interiorização do espírito de Jesus” e um convite a uma vida
cristiforme que se abre ao horizonte maior do Mistério de Deus. Ou como indicou
Frater Henrique, a “busca de Deus, seguindo o Cristo, na perspectiva da união
definitiva no amor trinitário”.
É toda uma linha de reflexão que expressa
um singular influxo da linhagem mística que começa com Agostinho, e que passa
por autores como Jan van Ruusbroec, Mestre Eckhart e outros espirituais
vinculados aos Cartuxos e Cisterciences. De modo particular, esse movimento em
direção à interioridade, ao lado interior da existência humana (o dedans), como questionamento vivo ao
projeto habitual de vinculação quase exclusiva ao mundo da superficialidade (o dehors), que situa o “ego” no centro de
todo movimento existencial. Um momento decisivo ocorre quando a pessoa
“interiorizada” responde ao desafio de viver o discipulado de Jesus, sem impor
resistência à ação da graça. E esse seguimento joga a pessoa no mundo, na
experiência agápica essencial. Daí a missionaridade que envolve essa obra prima
de Tomás de Kempis, rompendo com esquemas interpretativos que confinam a
interpretação do livro numa linha meramente intimista e subjetivista. Como
salienta Frater Henrique, “o próprio testemunho da vida de seu autor comprova o
contrário, como também a irradiação apostólica da Devoção Moderna, da qual
fazia parte”.
Por fim, vale perguntar sobre as
razões que motivam a grande sedução exercida por esse livro desde sua primeira
irradiação, com uma popularidade só ultrapassada pela Bíblia. Buscar entender
sua “estranha atração” sobre tantas pessoas é algo que motiva muitos de seus
intérpretes, entre os quais Frater Henrique. E ele consegue passar para o
leitor, de forma admirável, esse toque sedutor. E sua resposta é clara:
trata-se de um livro que “fala, antes de tudo, ao coração”, que “toca
diretamente ao ser humano: o próprio sentido da existência”. É um livro que fala
ao coração dos leigos, e neles sempre encontrou sua mais preciosa ressonância.
Talvez o segredo maior dessa atração esteja na capacidade de trazer à tona
valores tão esquecidos na cultura atual, pontuada pela lógica da
competitividade, da produtividade e da centralidade egoica. Há hoje, por todo
lado, uma sede de humanização que encontra eco em livros dessa natureza, que
traduzem um caminho alternativo: de “descentramento de si”, de busca da
simplicidade, da gratuidade, do despojamento e liberdade interior. E Frater
Cristiano conclui sua reflexão com um toque bem latino-americano: “A intimidade
com o Senhor inclui, necessariamente, uma decidida solidariedade com os outros,
particularmente com os excluídos e todos os que se encontram ´à beira da
estrada da vida`”.
Faustino
Teixeira
PPCIR-UFJF
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