Rasgar os corações para reiventar a
Igreja
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
Em sua primeira missa depois da
renúncia, na cerimônia de quarta feira de cinzas, Bento XVI serve-se da leitura
do profeta Joel para sinalizar a presença de difíceis conflitos e divisões na
vida da igreja católica romana. O profeta diz: “Rasgai os vossos corações e não
as vossas roupas” (Jl 2,13). Diz o papa:
“Mesmo nos nossos dias, muitos estão prontos para rasgar-se as vestes diante de
escândalos e injustiças, naturalmente
cometidas por outros, mas poucos parecem disponíveis para agir sobre seu
próprio coração”. Tudo indica que entre
as razões de sua renúncia não esteja apenas as referidas razões de saúde, mas
também o esgotamento provocado pelas “lutas de poder internas” que contaminam a
cúria romana.
Em editorial do jornal italiano Corriere
della Sera (13/02/2013), seu diretor, Ferrucio de Bortoli trata do anúncio da
renúncia de Bento XVI. O título é forte: “Uma frágil grandeza”. Aborda o
delicado tema do “tormento interior” que também contribuiu para a decisão de
Bento XVI. Teólogo de relevo, mas de gabinete, o papa Ratzinger não estava
preparado para lidar com as querelas cotidianas da cúria romana e das
espinhosas questões da vida da igreja. O autor sugere que nos últimos tempos, o
sentimento de solidão deve ter sido “devastador” para ele. Foi se sentindo cada
vez mais só... Em clássica obra sobre o
pontificado do papa Ratzinger, Marco Politi sublinha que o papa “experimenta o
fracasso de decisões que imaginava profícuas, dá-se conta da ineficiência de
quem na cúria deveria sustentá-lo e assiste impotente à uma revolta que se
propaga nos meios de comunicação. Coisa ainda mais amarga: é obrigado a abrir
os olhos para a rachadura radical do mundo católico com respeito à sua linha”. Encorajado pela insensibilidade de uma cúria
mais voltada para os “jogos de poder” e pelas “lutas fratricidas”, acabou
firmando sua decisão de renunciar ao cargo.
As resistências da cúria foram crescendo
na medida em que o papa assumiu para si a responsabilidade de questionar certos
abusos em curso na igreja, sobretudo no âmbito da pedofilia. Num dos documentos
mais contundentes de seu pontificado, a carta aos católicos da Irlanda, em
março de 2009, resolve denunciar “o grito dos inocentes” e reconhecer os graves
pecados da igreja nesse campo dos abusos sexuais. Expressa com vigor, em nome
da igreja, sua “vergonha e remorso”. É a primeira vez que um papa reconhece
coletivamente a culpa da instituição eclesiástica pelos abusos cometidos ao longos dos anos por seus
membros. Bento XVI rompe também com outro “muro de silêncio” ao ordenar uma
investigação mais séria sobre o fundador dos Legionários de Cristo, Marcial
Maciel Degollado, acusado de abusos sexuais reincidentes contra seminaristas. Tudo
isso irritou segmentos conservadores da cúria, que preferiam manter o
tradicional silêncio a respeito.
Mas como diz com acerto Marco Politi, em
artigo publicado no dia 14/02/2013 no Il Fatto Quotidiano, a solidão em que o
papa se viu envolvido, tem a ver com os colaboradores que ele próprio escolheu
ao longo de sua atuação no Vaticano e a carência de eficiência nas estratégias
de realização de seu projeto. Como diz o adágio espanhol: “Cria cuervos que
ellos te sacarán los ojos”. Essa é a verdade. O que acabou ocorrendo em âmbito
mundial, foi uma crescente desafeição dos fiéis e da opinião pública com
respeito à instituição igreja e também ao seu líder, como também mostrou Politi
em seu ousado artigo.
Trata-se de um pontificado turbulento,
dizem os analistas, pontuado por muitas indefinições e gafes: envolvendo
posicionamentos negativos sobre os gays e os preservativos, sobre o celibato
eclesial, a atuação das mulheres, de impasses na relação com o islã, titubeios
ecumênicos, concessões aos lefebvrianos, infeliz reedição da oração de sexta
feira santa que tanto desagradou segmentos do judaísmo e posicionamentos
críticos contra o pensamento teológico mais aberto. Politi sublinha que a
obsessiva repetição dos “princípios não negociáveis” provocou, na verdade, “um
cisma subterrâneo, silencioso mas profundo, no âmbito do Povo de Deus”.
A renúncia do papa foi talvez sua “única
grande reforma”, como salientou Politi. Não foi um gesto qualquer, mas um ato
de governo de grande alcance, um profundo ato de “magistério spiritual”. Daí
ter provocado novamente a irritação da ala conservadora da igreja. Um ato que
guarda consigo um significado preciso, de “dessacralização” de um cargo, de
visualização de seu limitado alcance. Como pontuou Ernesto Galli em editorial do
jornal Corriere della Sera (13/02/2013), o gesto de Bento XVI coloca em
discussão “o modo de ser da estrutura central do governo da igreja”, abrindo
também espaço para sinalizar os limites da própria instituição, os costumes
arraigados e os sombrios jogos de poder.
Com a renúncia abrem-se novas possibilidades
de mudança no campo eclesial, como mostrou John L. Allen Jr, em artigo
publicado na Folha de São Paulo (14/02/2013). Ela pode, “na realidade, abrir
espaço para um conclave mais inclinado a colocar a igreja num rumo diferente”,
e ele indica três razões: a quebra de normalidade, com a possibilidade de
surpresas no âmbito de uma tradição tão conservadora; o indício de que “a
igreja precisa de um reinício”; e a realização de um conclave “livre do efeito
funeral”, favorecendo um espaço de mais liberdade para decisões novidadeiras.
Coloca-se agora em evidência a
necessidade de uma reinvenção da igreja, de um novo tonus spiritual que
illumine a instituição e seus fiéis para fazer frente à crise atual da
cristandade. Trata-se de um aceno importante para o conclave que se anuncia. A
necessidade da presença de um pastor autêntico para guiar a comunidade dos
cristãos, de alguém que saiba comunicar, antes de tudo, vida e esperança, mais
que simples conhecimento teológico. Que saiba erguer sua voz ativa e profética
contra as dores do mundo e mostrar a dignidade de todos, sobretudo dos mais
excluídos e espoliados. O novo pontífice deve ser alguém, como mostrou com
acerto Juan Arias, “capaz de entender que o mundo está mudando rapidamente e
que de nada serve à igreja continuar levantando muros para impeder que lhe
cheguem os gritos de mudança que provêm de grande parte da própria
cristandade”.
(Publicado no Boletim REDE – Rede de Cristãos – Ano 18,
15/02/2013)