O ecumenismo e os desafios do pluralismo
religioso
(Entrevista para o CONIC – Setembro 2012)
Faustino
Teixeira
PPCIR/UFJF
1) Como
você analisa o pluralismo religioso no contexto brasileiro?
Como
estou organizando um livro com a antropóloga Renata Menezes sobre as religiões
brasileiras no Censo de 2010, e que deve sair no início de 2013 pela editora
Vozes, estou bem informado sobre as reflexões
que estão sendo feitas no Brasil sobre o tema. O debate é muito rico. A partir
das conclusões do censo, verifico que esse processo de pluralização do campo
religioso brasileiro está em curso, embora uma grande parte da declaração de
crença permaneça ainda vinculada ao âmbito cristão, com 64,6% de declaração
católica e 22,2% de declaração evangélica, ou seja, 86,8% dos declarantes estão
filiados ao cristianismo. É verdade que nesta forma de ser cristão,
particularmente no catolicismo, há uma malha muito larga no exercício de
experimentação. Como diz com razão Carlos Rodrigues Brandão em entrevista, há
uma grande diversidade nas formas de ser, crer e praticar o catolicismo no
Brasil. Ele indica que “a Igreja Católica se permite – entre as comunidades
eclesiais de base e as missas-espetáculo do padre Marcelo – abrir-se a todas as
alternativas possíveis e imagináveis do ser católico (...)” (Brandão, 2012, p.
55). Diria que há uma forma de vivenciar o catolicismo no cotidiano brasileiro
que envolve e inclui práticas, símbolos ou repertórios de outras tradições. É
por isso que Pierre Sanchis sublinha com pertinência haver muitas religiões dentro
dessa religião. Esse mesmo autor, em entrevista ao IHU-Notícias, salienta que
“um dos grandes problemas religiosos do próximo século será o da relação do
indivíduo com a instituição que lhe propicia uma identidade religiosa. Dizer-se
católico ou umbandista, até proclamar-se evangélico, não será mais unívoco”
(Sanchis, 2012, p. 7). Por maiores que tenham sido os esforços das equipes
envolvidas com o Censo 2010, a percepção real do quadro religioso brasileiro
ficou ainda prejudicada. Os analistas lançam uma certa desconfiança para com os
resultados apresentados. Sanchis sublinha a dificuldade em captar realmente o
fenômeno da múltipla pertença, que é, sem dúvida, muito maior do que a
declaração apresentada no último censo - 15.379 casos (Sanchis, 2012, p. 7);
Brandão fala que “é preciso acreditar desconfiando das estatísticas” (Brandão,
2012) e José Ivo Follmann sublinha que há “uma riqueza muito grande que subjaz
e que as estatísticas ainda não estão conseguindo fazer emergir” (Follmann,
2012). Nesse sentido, podemos afirmar, sim, o despontar de um pluralismo
religioso que se revela irrevogável. Fazendo uma comparação com a
diversificação religiosa que ocorre no âmbito internacional mais amplo, chamo a
atenção para o artigo apresentado pelo historiador das religiões francês, Frédéric
Lenoir, a respeito das “metamorfoses da fé”. Ele assinala que o fenômeno da
“dessecularização” está em pleno curso. Indica que nesse âmbito mais amplo o
cristianismo continua sua expansão, sobretudo no Sul Global (Ásia, África e
América Latina), em razão sobretudo da expansão pentecostal. O islã também
continua se firmando, mas com tendência a um crescimento menor na Europa e Ásia,
em razão da diminuição do número de conversões. O hinduísmo e o budismo tendem
a manter sua estabilidade, ainda que determinadas práticas relacionadas a tais
tradições, como a meditação, venham reforçadas e ampliadas sobretudo no
Ocidente e na América Latina. O mesmo ocorre com o judaísmo. E a conclusão que
ele aponta é interessante e coincidente com a expressa por pesquisadores
brasileiros: “As religiões continuarão
se transformando e sofrendo os efeitos da modernidade, notavelmente a
individualização e a globalização”, e os indivíduos a elas filiados viverão sua
pertença de forma bem diferenciada com respeito ao passado, fabricando “o seu
próprio dispositivo de sentido, às vezes sincrético, às vezes em bricolagem”
(Lenoir, 2012).
2) As
religiões têm se tornado mais abertas ao diálogo ou, ao contrário, mais
fechadas? Por quê?
De
forma curiosa, a afirmação do pluralismo moderno – como vem mostrando Peter
Berger -, engendra não apenas a possibilidade dialogal, como poderia se prever,
mas também – e vivamente -, a “redescoberta das heranças confessionais”
(Berger, 1985, p. 159). Pode-se até encontrar nos tempos atuais núcleos ou
segmentos religiosos mais abertos e disponíveis à acolhida dialogal. Berger
nomina-os de “virtuosos do pluralismo”, por lidarem de forma mais tranquila com
os desafios que envolvem a conversação interreligiosa e o diálogo. Mas na
verdade, a maioria das pessoas e dos grupos religiosos tem enorme dificuldade
com o pluralismo e com os possíveis efeitos relativizadores que envolvem sua
perspectiva. Esses núcleos sentem-se inseguros num mundo percebido como confuso
e cheio de possibilidades interpretativas. Diante do risco da relativização, a
emergência de um fascínio pelos sistemas absolutos e pelos caminhos
fundamentalistas. Vejo como um traço do tempo atual, não tanto a busca
dialogal, mas a afirmação das certezas identitárias e o enrijecimento das
perspectivas religiosas nos muros protetores das ortodoxias. Isso é muito
triste.
3) Quais
algumas das dificuldades que você percebe no processo de abertura ecumenica, e
que pistas possíveis se anunciam para a sua superação?
Em
entrevista publicada no IHU-Online da Unisinos, de 24 de setembro de 2012, o
teólogo jesuíta Roger Haight assinalou que entre alguns dos desafios
enfrentados pela perspectiva cristã nesse momento pós-moderno está o
ecumenismo. Lamenta que ele vai perdendo força justamente no momento em que
mais se faz necessário. E sinaliza: “Somos incapazes de imaginar estruturas
eclesiais que preservem nossa unidade real ao mesmo tempo em que respeitem
tradições espirituais cristãs autônomas diferentes” (Haight, 2012, p. 19).
Tendo por base a conjuntura católico-romana, constato que os últimos 35 anos
foram bem reticentes a uma dinâmica ecumênica prometedora. Acredito que alguns
documentos do magistério católico, como a Dominus
Iesus, acabaram provocando uma inibição na caminhada ecumênica. Isso foi
reconhecido por autoridades do magistério, como Walter Kaspers, que na ocasião
da publicação da Declaração, em 2000, ocupava o cargo de Secretário do
Pontifício Conselho para a Promoção da
Unidade dos Cristãos. Em artigo de 2001, Kaspers expressa seu descontentamento
com o tom e o estilo do documento da Congregação para a Doutrina da Fé.
Sublinha que a Declaração suscitou dúvidas sobre o real empenho ecumênico da
Igreja católica, provocando desilusões e ferindo muitas pessoas, entre as quais
ele mesmo (Kaspers, 2001, p. 128). Em ocasião anterior, o mesmo Kaspers já
havia tensionado com o cardeal Joseph Ratzinger a respeito de temas
relacionados à Igreja, que envolviam, a seu ver, o risco de uma acentuação do
centralismo romano (Kaspers, 2012, p. 439). Em livro-entrevista, publicado em
2008, Kasper havia sublinhado os acentos diferenciados que marcavam os dois
dicastérios romanos: a Congregação para a Doutrina da Fé e Conselho para a
Unidade dos Cristãos. E dizia: “Conservar a integridade e a pureza da fé é uma
coisa, colocar a fé em diálogo com outras tradições eclesiais é uma outra.
Entre as duas não há contraste, mas acentos diversos e diversos modos de olhar”
(Kasper; Deckers, 2009, p. 176). Enquanto o primeiro pensa e fala em termos
magisteriais, o segundo em termos dialogais Em linha de descontinuidade com a posição
teológica de Ratzinger, Kaspers mantinha e mantém a defesa do título de igreja
às comunidades protestantes (Kaspers, 2012, p. 262). Pistas de abertura foram
dadas por documentos essenciais como a carta encíclica Ut unum sint (1995), sobre o empenho ecumênico, publicada no pontificado
de João Paulo II, em cuja redação teve um importante papel o teólogo dominicano
Jean-Marie Roger Tillard (1927-2000). De forma arrojada, o documento sublinha
que “para além dos limites da Comunidade Católica, não existe o vazio ecclesial”
(n. 13), e as outras Comunidades podem inclusive revelar de forma ainda mais
eficaz “certos aspectos do mistério cristão” (n. 14). O espírito essencial do
ecumenismo está na perspectiva dialogal, entendida como “intercâmbio de dons”.
Trata-se de um caminho “irrevogável”, que se distancia radicalmente de uma
perspectiva de anexação das outras Igrejas a uma Igreja específica, envolvendo
antes as Comunidades dialogais na experiência de realização da comunhão e da
unidade, no profundo respeito às diversidades (Kaspers, 2001, p. 130). E de uma
unidade que vai sendo tecida ao longo do processo de interlocução criativa.
4. O
diálogo entre as igrejas tem ocorrido com certa frequência, em menor ou maior
escala, aqui no Brasil, mas o diálogo com outros grupos ainda engatinha. O que
pode ser feito, por exemplo, para que as igrejas comecem a dialogar mais com
grupos como os muçulmanos, judeus, religiões de matrizes africanas, etc.?
De
fato, o diálogo ecumênico envolve dificuldades menores para a sua realização.
Ele tem uma história de décadas e bem firmada, apesar de também envolver
resistências bem concretas. Esse diálogo, como mostrou Claude Geffré, favoreceu
a superação de certo modelo de absolutismo católico, abrindo espaços para o
diálogo com as outras tradições religiosas (Geffré, 2006, p. 135). É um diálogo
que tem como regra áurea a busca da unidade na diversidade. Já o diálogo
interreligioso volta-se para um horizonte mais amplo, marcado pela aspiração a
uma Realidade Última, nem sempre nomeada. É um diálogo que tem como base comum
o empenho em favor da superação do sofrimento humano e de afirmação da
dignidade da criação. Tenho defendido a ideia de que o verdadeiro diálogo
interreligioso pressupõe o reconhecimento da “dignidade da diferença” e a
abertura para um pluralismo de princípio. Não se pode entrar no diálogo com uma
convicção enrijecida, como se só um dos interlocutores fosse animado pela
presença substantivo do Mistério Maior. Há que respeitar a dignidade de
convicção dos interlocutores, de forma a favorecer um real intercâmbio de dons.
Não serve de ajuda alguma ao diálogo estabelecer diferenças qualitativas entre
os interlocutores, como se os outros fossem portadores de “crenças” e só os
cristãos depositários da autêntica “fé”. Daí se falar hoje em dia do desafio de
um “diálogo entre fés”, visto como mais apropriado para o diálogo entre
alteridades dignamente reconhecidas.
5) O
crescimento dos grupos pentecostais constitui ameaça ou oportunidade para o
diálogo ecumênico? Por quê?
O
verdadeiro ecumenismo não pode ser excludente, deve envolver igualmente os
grupos pentecostais. Estudiosos do movimento evangélico, como Waldo Cesar e
Richard Shaull, que se dedicaram ao final da vida ao significado da experiência
pentecostal, pontuaram a força de
penetração do pentecostalismo nos meios populares. Trata-se para os fiéis de
uma experiência espiritual muito importante, de recomposição da subjetividade;
uma oportunidade fascinante de reconstrução e potenciamento de identidades
dilaceradas pela pobreza e exclusão. Com o movimento pentecostal novas relações
humanas foram tecidas, laços de confiança estabelecidos e uma importante
geração de auto-estima firmada, o que é essencial para qualquer empreendimento
transformador. Richardo Shaul fala em “reconstrução da vida no poder do
espírito”. Acentua em seu livro que “os pentecostais estão criando novas
relações humanas em comunidade no mais baixo nível da sociedade”, podendo
exercer um papel importante nas mudanças que se fazem necessárias (Cesar;
Shaull, 1999, p. 266-267).
6) Como
você encara o papel do CONIC no contexto religioso brasileiro?
Vejo
o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) como um importante instrumento
de discussão e ampliação da temática ecumênica no âmbito das Igrejas cristãs,
com o desafio de provocar cada vez mais essas comunidades a ampliarem seus horizontes dialogais, no
profundo respeito à dignidade dos outros. Essa “associação fraterna de Igrejas”
que se unem no seguimento de Jesus tem por vocação essencial o projeto de
firmar a dinâmica de uma unidade que respeite a diversidade. Trata-se também do
desafio de deixar-se habitar por um “ecumenismo espiritual”, pontuado pela
humildade e abertura, pela kênose e compaixão. Isso significa um movimento de
despojamento para deixar que ação do Espírito atue, desvendando os caminhos
essenciais a serem seguidos. E sobretudo um caminho de solidariedade aos outros,
de abertura hospitaleira, de atenção e cuidado aos caminhos inusitados e
supreendentes da ação misteriosa de Deus na história. É mediante um tal
despojamento que se instaura o clima necessário para uma ação de transformação
nas Igrejas e na sociedade.
Referências:
BERGER,
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Paulinas, 1985.
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Carlos Rodrigues. A emergência do indivíduo e as novas formas de viver a
religião. IHU-Online, n. 401, Ano
XII, 3/09/2012, p. 54-58.
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Waldo & SHAULL, Richard. Pentecostalismo
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http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/513484-transito-religioso-e-o-permanente-peregrinar-entrevista-especial-com-jose-ivo-follmann.
Acesso em 25/09/2012.
GEFFRÉ,
Claude. De babel à pentecôte. Essais
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HAIGHT,
Roger. “A Igreja institucional permanece escandalosamente inalterada”. IHU-Online, n. 403, Ano XII, 24/09/2012,
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JOÃO
PAULO II. Ut Unun Sint. Carta
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KASPER,
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SANCHIS,
Pierre. Pluralismo, transformação, emergencia do indivíduo e de suas escolhas. IHU-Online, n. 400, Ano XII, 27/08/2012,
p. 5-7.
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