domingo, 30 de setembro de 2012

Joseph Ratzinger e a crise de um papado


Uma avaliação pontificado de Bento XVI – por Marco Politi  (Resenha)

Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF

Joseph Ratzinger crise di un papato, por Marco Politi. Laterza, Roma-Bari 2011, 1 vol. It., 140 x 210mm, p. 328 – ISBN 978-88-420-9504-0

Marco Politi é hoje, sem dúvida, um dos maiores especialistas de questões vaticanas, com um reconhecimento internacional. Um nome sempre lembrado entre os grandes vaticanistas, como Giancarlo Zizola, Carl Bernstein, John L. Allen Jr., Luigi Accatoli e Alceste Santini. Dentre suas obras anteriores, destaca-se o best-seller, escrito junto com Carl Bernstein, His Holiness: John Paul II and The Hidden History of Our Time (1996 – com tradução brasileira pela editora Objetiva). Publicou ainda: Papa Wojtyla. L´addio (2007 - Morcelliana); Il ritorno di Dio (2004 - Mondadori); La Chiesa del no (2009 – Mondadori).
            Com sua nova obra, Joseph Ratzinger, crisi di un papato (2011), Marco Politi busca reconstruir , com uma impressionante informação, os primeiros seis anos do pontificado do papa Bento XVI. A tese central defendida pelo autor, é que nesses primeiros anos de pontificado, Joseph Ratzinger mostrou-se um papa competente no âmbito da teologia, uma personalidade de relevo espiritual e intelectual, mas um líder frágil no campo da geopolítica. Um papa “rigoroso nas análises, intransigente na defesa da doutrina e apaixonado na pregação”, mas hesitante na arte do governo e na lida cotidiana dos problemas internos da Igreja. São diversos os passos que traduzem uma clara incerteza na condução estratégica do pontificado (p. 284).
            Diferentemente de João Paulo II, o papa Bento XVI é um papa da palavra, não de grandes gestos. Há uma nítida descontinuidade no estilo, agora pontuado por clara “austeridade espiritual”. Marcou o início de seu pontificado pelo signo da “decantação”, para usar uma expressão do historiador Alberto Melloni, bem como pela intransigente defesa da identidade católica. Politi mostra com clareza que já durante o conclave que o elegeu o lobby pro-Ratzinger não apresentava um projeto vivo para o futuro da Igreja. O traço distintivo era de caráter defensivo, de reação ao mundo contemporâneo (p. 302), bem na linha do clássico livro-entrevista de Ratzinger, Rapporto sulla fede (1985).
            A fragilidade no âmbito da geopolítica reflete-se na dificuldade de um posicionamento coerente e sintonizado com os sinais dos tempos. O que ocorre, muitas vezes, como assinala Politi, é uma práxis de titubeio: “depois de passos falsos, movem-se os interventos de socorro”, como se uma “mão invisível” movesse o pontificado a cíclicas polêmicas e recaídas (pp. 108-109).
            No prefácio que escreveu para a obra, Stefano Rodotà sinaliza que os primeiros seis anos de pontificado de Bento XVI são marcados por uma “linha constelada de incidentes de percurso” que favorecem, sem dúvida, uma exposição da Igreja e a reveladora e impiedosa ação da crônica.  Na visão desse autor, “o teólogo, o estudioso que em determinados momentos parece mais preocupado com a redação de seus livros que com a função pontifical, distancia-se desse estereótipo e abre um momento distinto. É um tempo de retorno à ordem, de pregação ao serviço de uma projeto exigente, com o objetivo de pulir o mundo do pecado do relativismo e mantê-lo protegido dos riscos da ciência” (p. IX).
            Nos três primeiros capítulos do livro aborda-se os passos de preparação e o processo que resultou na eleição de Bento XVI ao papado. De acordo com o ritmo da tradição, Joseph Ratzinger não era um possível candidato em razão de suas posições “polarizantes”. O firme guardião da ortodoxia no pontificado anterior não armazenava as condições para obter os dois terços de votos necessários para a sua eleição. Era uma “personalidade polarizante” com um currículo recheado de atuações polêmicas: com a teologia da libertação (pp. 3-7), com o episcopado americano e as conferências episcopais em geral (pp. 8-9), com o magistério teológico, em razão de uma série de admoestações e punições a renomados teólogos, inclusive a falecidos (pp. 10-12). Alguns dos documentos produzidos no tempo em que era Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé causaram extremo desconforto, como no caso da Declaração Dominus Iesus, publicada em agosto de 2000 (p. 13). As resistências vieram também de segmentos da hierarquia católica, como os cardeais Franz König, Edward Cassidy, Carlo Maria Martini, Karl Lehman e Walter Kaspers (pp. 8 e 13-14).
            Na Missa pro elegendo pontífice, a homilia proferida pelo cardeal Ratzinger dá o tom de sua perspectiva: a busca de uma fé clara e a radical crítica da denominada “ditadura do relativismo”. Era uma preocupação que ganhava corpo no núcleo de promotores de sua candidatura, entre os quais o enérgico e influente cardeal colombiano Alfonso López Trujillo, bem como o também colombiano Dario Castrillón Hoyos, então Prefeito da Congregação para o Clero. São sobretudo cardeais de língua espanhola. Percebe-se no colégio cardinalício uma aspiração em favor de uma identidade católica reforçada, e isso favorece a eleição de Ratinger, que acontece para a surpresa de muitos, no ano de abril de 2005, quando tinha a idade de setenta e oito anos.
            Como sinaliza Marco Politi, o novo estilo de Bento XVI logo se impõe, de um papa pregador e intelectual, marcado por um jeito peculiar, distinto de João Paulo II, mais sóbrio, contido, sem muita ênfase ou espetáculo. Assume com a intenção de firmar uma Igreja mais sólida e um cristianismo mais essencial. Dedica-se no início à redação de sua primeira encíclica, Deus caritas, e também à redação de seu livro sobre Jesus Cristo. Com seu livro sobre Jesus tinha uma intenção clara:  reanimar a identidade cristã num momento particular de secularização crescente da sociedade, que vê evaporar toda a referência a Deus na vida pública (p. 54).
            No capítulo quarto, Marco Politi trata a polêmica questão do discurso de Regensburg, ou da “catástrofe de Regensburg”, em setembro de 2006. Há que recordar que um pouco antes, no mês de março, num ato inesperado, o papa Bento XVI “exila” para o egito o então presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Interreligioso, Michael Fitzgerald, e subordina o mencionado Conselho ao Pontifício Conselho para a Cultura. Numa infeliz associação entre Islã e violência, com base numa referência feita a Muhammad, o discurso do papa provoca imediata reação, com repercussões internacionais, sobretudo no mundo muçulmano. Como mostrou Politi, “em uma hora, em Regensburg, rompe-se em frangalhos vinte anos de política wojtiliana no confronto do Islã” (p. 63). Exemplifica-se assim a dificuldade de exercício dialogal de um líder religioso no cenário geopolítico, com um procedimento distinto do papa anterior, que durante décadas construiu de forma laboriosa e paciente uma estratégia que se pautava pela perspectiva dialogal e não de confronto com o mundo muçulmano. Na sequência da crise, o Vaticano se viu pressionado a um posicionamento de retratação, que veio dois dias depois com uma declaração do secretário de Estado, cardeal Bertone,  desculpando-se do ocorrido (p. 67). Politi indica que as dificuldades de Bento XVI com o mundo muçulmano vinham de longe, e que a tendência em curso seria a de reduzir o lugar do diálogo com o Islã a um diálogo de culturas e civilização (pp. 69-70). Os desencontros com o Islã exigem de Bento XVI uma nova postura, mais dialogal, o que vai ocorrer durante sua visita a Turquia, realizada em novembro do mesmo ano. A crise de Regensburg desdobra-se em revisão de atitudes tomadas anteriormente, provocando a retomada do Pontifício Conselho para o Diálogo Interreligioso, com a nomeação do cardeal Jean-Louis Tauran, como o novo prefeito do dicastério, um grande diplomata e profundo conhecedor do mundo muçulmano (p. 75).
            No capítulo quinto, Politi aborda o delicado caso da retomada da missa tridentina, através de um motu proprio, Summorum pontificum (julho de 2007), visando uma reaproximação com a Fraternidade sacerdotal são Pio X, o movimento cismático anticonciliar dos seguidores de Marcel Lefebvre. Curiosamente, sublinha Politi, o mesmo Ratzinger que na revista Concilium havia definido o rito tridentino como “arqueológico”, assume a sua reintegração na vida da Igreja (p. 88). Trata-se, dizem os observadores, de um violento golpe. Não se trata apenas de uma retomada da missa em latim, mas de um questionamento do “valor constitutivo e formativo da reforma litúrgica, fruto do Vaticano II” (p. 89). É a carta branca concedida aos ultra-tradicionalistas lefebvrianos.
            A relação com os judeus vem abordada no capítulo sexto do livro, denominado “a ira dos rabinos”. Aborda-se ali a visita de Bento XVI ao campo de concentração de Auschwitz, na Polônia,  em maio de 2006. Em seu discurso o papa não fala em Shoah, mas apenas de holocausto. Sabe-se que para os judeus, a expressão Shoah é bem mais significativa do que holocausto, pois expressa a idéia de uma “catástrofe destrutiva”, evocando a violência e brutalidade não justificável do genocídio nazista. O que é mais grave no discurso do papa, segundo Politi, é a utilização de uma “lente deformante” na leitura da história, presente em seu discurso. Um discurso que visa deslocar a responsabilidade da Igreja católica no dramático episódio nazista, como se ele fosse totalmente “estranho” ao catolicismo alemão da época. O papa, em seu discurso, não menciona a expressão antissemitismo, e isso provoca a imediata reação nos ambientes judaicos. Dá-se a impressão que ele busca “desresponsabilizar o povo alemão e a Igreja” daqueles tristes episódios (p. 105). E novamente, nesse caso, ocorrem as intervenções de socorro, depois do passo em falso.
            No capítulo sétimo, aborda-se outra questão delicada, que foi a remissão da excomunhão a quatro bispos lefebvrianos, por ordem de Bento XVI, em janeiro de 2009, sendo um deles, Richard Williamson, um claro representante da extrema direita católica e porta-voz de um antissemitismo explícito. Alguém que negava inclusive a existência das câmaras de gás. Era mais uma vitória dos lefebvrianos, que em apenas um ano e meio conseguiram dois eloquentes presentes: a liberação da missa tridentina e a revogação da excomunhão de quatro de seus membros. Após o “incêndio”, novamente as tentativas de acomodação vaticana. É o que ocorre no discurso do papa em sua audiência geral, no final de janeiro de 2009 (p. 124), bem como na carta de Willianson endereçada ao Vaticano, reconsiderando suas ofensivas declarações (p. 135).
            A mecânica dos passos em falso aparece novamente na reflexão do capítulo oitavo, em torno da infeliz nomeação de Gerhard Wagner, como bispo auxiliar de Linz, na Áustria, em fevereiro de 2009. Os meios de comunicação austríacos logo reagiram alarmados, pois a figura escolhida era de um conservadorismo vivo e ameaçador. Duas semanas depois, sob a pressão geral de segmentos da igreja austríaca e da opinião pública, o papa Bento XVI comunica em boletim a dispensa do bispo em questão.
            No capítulo nono, aparece o tema da solidão de Bento XVI no governo pontifício. Distintos episódios, duros e difíceis, apontam para problemas no modo como o papa governa a Igreja. Indica Politi que é o ponto frágil de sua gestão. E sublinha: “Ratzinger experimenta o fracasso de decisões que imaginava profícuas, dá-se conta da ineficiência de quem na cúria deveria sustentá-lo e assiste impotente a uma revolta que se propaga nos meios de comunicação. Coisa ainda mais amarga, é obrigado a abrir os olhos para a rachadura radical do mundo católico com respeito à sua linha” (p. 160).
            Nos capítulos dez a doze, Marco Politi aborda temas delicados como as controvérsias em torno dos preservativos e a questão da pedofilia na Igreja. Diante do “grito dos inocentes”, Bento XVI se vê convocado a confessar os graves pecados da Igreja nesse campo dos abusos sexuais. É o que aparece na corajosa carta aos católicos da Irlanda, de março de 2009. Na visão de Politi, trata-se de “um dos documentos mais significativos do pontificado. Ratzinger faz sua mea culpa. Confessa os graves pecados da Igreja” (p. 219). Situações delicadas e que exigem enfrentamento, envolvem líderes de movimentos da Igreja, como Marcial Maciel Degollado, fundador dos Legionários de Cristo, e também acusado de abusos sexuais (pp. 237s). A imprensa italiana reage firme, e denuncia o silêncio dos jornais católicos a respeito dos casos de pedofilia. Tudo isso provoca uma grande desilusão entre os fiéis, que se desencantam com a Igreja. Os dados trazidos por Politi são expressivos (p. 247).
            A grande preocupação de Bento XVI é com a Europa, como mostra Politi no capítulo treze de seu livro. Está ali o núcleo duro da atenção do papa. O que era antes uma “coluna do catolicismo” vive agora uma situação de crise, laicização e relativização. É ali que se dá o fenômeno mais dramático do esvaziamento das igrejas, da diminuição estrondosa do clero e do sangramento dos fiéis, desencantados com a prática religiosa em curso. As cifras falam por si mesmo. Só na Alemanha, terra do papa, mais de 123.681 fiéis abandonam a Igreja em 2009. São cerca de 40% os fiéis alemães que abandonaram a Igreja desde a eleição de Bento XVI (p. 136). Mesmo no seu país de origem, Ratzinger não consegue mais seguidores. Segundo Politi, somente um terço dos alemães segue apoiando sua linha de trabalho e pouco mais da metade dos católicos estão convencidos em defendê-lo (p. 285).   São poucos os católicos que seguem de fato a Igreja, como indica Politi baseando-se numa pesquisa realizada na Itália em 2007. O que prevalece, mais do que os discursos ouvidos, é mesmo a lei da consciência (p. 272). As perdas no campo da vida religiosa são também expressivas (p. 288). Politi sinaliza que mesmo as tentativas de uma abertura dialogal com os ateus, como no exemplo da criação do “Átrio dos Gentios”, não resulta em sucesso, pois mantém acesa a disparidade e a centralidade clerical (pp. 281-282).
            O título do último capítulo traduz claramente o momento da atual conjuntura da Igreja católica, um horizonte incerto. Essa incerteza reflete-se em vários âmbitos, como no caso do diálogo interreligioso. A relação com os muçulmanos permanece delicada, como se viu anteriormente. Com os judeus permanece tensa, com a manutenção de posicionamentos restritivos, como o presente na carta Summorum Ponficum. Resiste-se em reconhecer a dignidade única dos judeus e o traço irrevogável de sua aliança. Permanece em vigor posicionamentos problemáticos que insistem em convocar os judeus a reconhecerem em Jesus o salvador de todos os humanos (p. 107). Os importantes encontros de Assis, iniciados com João Paulo II em 1986, perdem a sua mordência e significado (p. 184). Permanece como um nó na garganta de muitos irmãos de outras religiões, incluindo os protestantes, o regressivo documento Dominus Iesus, que em verdade bloqueou o caminho dialogal. É o que sentem, por exemplo os luteranos (p. 292).
            Apesar dos esforços em favor das jornadas com a juventude, o que se ouve entre muitos jovens, e nos fiéis em geral, como salienta Politi, é que o papa atual “não transmite esperança”, não suscita sedução. Em verdade, “aparece muito teólogo e não vem percebido como imagem de uma Igreja de misericórdia” (p. 304).
            Não se pode restringir a avaliação da atual conjuntura da Igreja católico-romana a um único olhar. Há outras interpretações e outras perspectivas de visada, mesmo entre importantes vaticanistas hoje em ação. Mas não há dúvida de que este livro de Marco Politi, sério e amplamente documentado, traz uma importante contribuição para a compreensão da Igreja nesse difícil momento atual. Seria muito oportuno que esta obra pudesse ser acolhida e traduzida para o português.

(Publicado na Revista Eclesiástica Brasileira (REB),  v. 72, n. 287, julho de 2012, p. 754-758. )


2 comentários:

  1. Ótima resenha.
    corrigindo em "Apesar dos esforços em favor das jornadas com a juventude, o que se houve..."
    o certo é "o que se ouve..."
    abraço

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