Um testemunho de abertura, respeito e
liberdade
(Entrevista no IHU Online)
- Tendo presente sua proximidade e relação de amizade,
qual o seu
testemunho sobre João Batista Libânio, que celebra 80
anos de vida?
Falar sobre o mestre Libânio é sempre motivo de grande
alegria para mim. São décadas pontuadas por uma grande e linda amizade. Ele
está na raiz de minha vocação teológica. Com ele veio o impulso decisivo para o
aprofundamento no mundo da teologia. Vinha da Ciência da Religião, motivado a
continuar meus estudos no campo da sociologia da religião. Ocorreu então o
toque de delicadeza de Libânio incentivando-me a trilhar rumos alternativos,
com a possibilidade de continuidade dos estudos na PUC do Rio. E aí nasceu toda
uma trajetória de vida. Não é difícil falar sobre o Libânio e os valores que a
ele estão associados. É uma figura iluminada, um mestre em seu sentido mais
nobre. Um dos traços mais bonitos de sua vida é a alegria, o otimismo e o
profundo respeito aos caminhos da liberdade. O seu entusiasmo é contagiante.
Por onde passa deixa um rastro e um aroma diferencial. Suas palavras abrem
caminhos e suscitam possibilidades. Sabe também, como poucos, acolher com
carinho, a qualquer momento, as pessoas com suas angústias e dificuldades. É um
traço de sua vida. Mesmo nos espaços jesuítas, em geral reservados, soube estar
sempre aberto e atento às demandas dos outros. Como é sabido, a porta de seu
quarto ou gabinete sempre esteve aberta para a generosidade desse acolhimento.
Como um verdadeiro mestre, soube sempre ajudar os outros a se encaminhar, e de
uma forma didática singular, nos caminhos do aprendizado teológico. Sim, um
pedagogo muito especial. Seria difícil nomear todos os profissionais,
ministros, leigos e bispos que passaram por esse aprendizado. E todos guardam,
sem dúvida, uma linda recordação dessa convivência e legado. Sua presença viva
e dedicada não se deu apenas no campo da academia, mas também no âmbito da
pastoral da juventude e do compromisso pastoral.
- Como a teologia vibra no modo de ser de Libânio?
A teologia que pulsa no coração de Libânio é uma
teologia sedenta de realidade. É dos teólogos que viveram e assumiram a
primavera conciliar. Foi nesse lindo clima que se gestou sua reflexão. Trata-se
de uma reflexão diferenciada, pontuada pela abertura e ousadia, mas também pela
simplicidade e busca. Não é uma teologia morna ou puramente intelectual, mas
vibrante e entusiasmada, pois gestada no humus da compaixão e da generosidade.
Já no período de sua atuação em Roma, enquanto repetidor de estudos no Colégio
Pio Brasileiro, irradiava essa alegria e abertura. Em seu retorno ao Brasil,
veio o reforço da Teologia da Libertação, e o incentivo mais fundo para uma
reflexão enraizada na vida e no compromisso com os pobres. Os alunos tinham
contato com Libânio no início de seu processo de formação teológica, o que é
muito importante. Seus cursos tinham esse traço propedêudico. Como não recordar
suas aulas de introdução à teologia e de teologia fundamental, que abriam o
ciclo da formação teológica. Dali vinham as inspirações geradoras de todo um
caminho de formação, e também um entusiasmo único para essa nobre tarefa. Para
Libânio, a arte de formar-se envolve um duplo movimento, de ampliação das
qualidades humanas e religiosas e de compromisso com a transformação do mundo.
- Que pensadores ou fontes matriciais fundamentam o
pensamento de
Libânio?
Sublinho isso num artigo que escrevi num livro de
homenagem aos 80 anos de Libânio, organizado por Afonso Murad e Vera Bombonatto
(Teologia para viver com sentido. São Paulo: Paulinas, 2012). Ele teve grandes
mestres em sua trajetória, e cada um deles pontuou um aspecto importante de sua
perspectiva teológica. Ele sublinha a presença do padre Antônio Aquino no
incentivo ao exercício metodológico. Com ele aprendeu a importância da
tranquilidade e leveza na arte de escrever. Com outro mestre, Franz Lennartz, ocorreu
a abertura ao universo da psicologia profunda, tão fundamental para a arte do
acompanhamento pedagógico e pastoral. Teve também a presença do padre Oscar
Mueller, que aprofundou em sua vida o agudo sentido da liberdade pessoal e o
respeito à diversidade dos caminhos. Duas palavras que marcam a personalidade
de Libânio: o valor da liberdade e o respeito pelo outro. São dois traços
sempre lembrados por todos que passaram por seu caminho ou que ainda desfrutam
de sua presença amiga. Não se pode deixar de mencionar, entre seus importantes
mestres, a presença do pe. Henrique Cláudio de Lima Vaz. Foi das presenças mais
decisivas em sua vida, com uma força irradiadora indescritível. Não só um
mestre da inteligência, mas também um amigo de todos os momentos. No âmbito do
influxo intelectual, há que sublinhar a presença de Karl Rahner, que deixou
marcas profundas em sua abertura teológica, sobretudo a dinâmica de integração
do humano com o divino. Deve-se lembrar, por fim, outras personalidades latino-americanas e
brasileiras que o marcaram em sua trajetória, de modo particular na afirmação
de sua reflexão teológica libertadora. Nomes como Gustavo Gutiérrez, Leonardo
Boff, Clodovis Boff, José Oscar Beozzo, Frei Betto e outros, não podem ser
esquecidos. Contribuíram para o enraizamento de sua reflexão teológica no mundo
dos empobrecidos.
- Em linhas gerais, como o senhor descreve a caminhada
de Libânio
enquanto teólogo e a sua importância para o contexto
latino-americano?
Vejo sua contribuição em dois âmbitos. Em primeiro
lugar, no testemunho vivo, alegre, simples e desapegado de sua presença na
igreja e na sociedade. Esse testemunho é o que fala mais forte em sua vida e o
que mais encanta a todos. Trata-se de um teólogo com o pé no chão e com o
coração aberto. Sua presença fala por si mesma do encantador mistério do reino
de Deus. Outro vetor de sua contribuição está na dinâmica de sua pedagogia de
formador. Tem um dom especial de iniciar as pessoas na arte de formar-se.
Dentre suas inúmeras obras, destacam-se aquelas que tratam dessa questão: da
formação, do discernimento, da iniciação à vida intelectual e da introdução aos
mistérios da teologia. Teve também, e continua tendo, um papel muito importante
na abertura das consciências, tanto no campo da consciência crítica, como
igualmente da compreensão mais crítica dos cenários da igreja. São
reconhecidamente clássicos os livros que escreveu sobre a conjuntura da igreja,
sobre a teologia da libertação e o Vaticano II.
- O que destaca de mais marcante sobre a ‘Tropa
Maldita’ e a
relação desse grupo com Libânio?
Ao retornar ao Brasil, depois de longos anos de
formação na Europa, um dos espaços importantes de atuação de Libânio foi no
campo da pastoral da juventude. Registrou esse trabalho num importante livro a
respeito, publicado em 1978 (O mundo dos jovens. São Paulo: Loyola, 1978).
Atuou como orientador nos Cursos da Juventude Crista (CJC), prosseguindo depois
no acompanhamento de jovens universitários. Isso no começo dos anos 70. A
“Tropa Maldita” nasceu nesse caldo. Eram jovens universitários, desencantados
com os grupos tradicionais de juventude, e que buscavam caminhos mais críticos
de atuação. Irmanados por fortes laços de amizade e carinho por Libânio,
gestados nos encontros de juventude, esses jovens receberam a pronta acolhida
de Libânio para dar continuidade ao trabalho de formação. Assim nasceu o novo
grupo, a “Tropa” do Libânio, como indicou um antigo padre e dirigente do CJC,
de onde veio grande parte do grupo. A “Tropa” se reunia com Libânio em torno de
quatro vezes por ano, quase sempre na cidade de Juiz de Fora, no antigo
seminário maior dos padres redentoristas, no bairro Floresta. Aproveitavam-se
os feriados maiores para possibilitar a reunião do grupo. E os temas eram de
grande atualidade: conjuntura brasileira, formação da consciência crítica,
aprofundamento filosófico etc. Muitos autores passaram pela reflexão do grupo:
Teilhard de Chardin, Jacques Monod, Ivan Illich, Paul Tillich, Carlos Drummond
de Andrade e tantos outros. Vale sublinhar que os encontros aconteceram num
difícil momento da conjuntura política, em pleno exercício da ditatura militar.
Algumas das reuniões foram vividas em clima de muita apreensão e temor, dado o
clima do período. Os tempos não eram propícios para articulações de grupos,
muito menos de universitários. Mas a coragem do grupo e o estímulo do Libânio
foram mais fortes para enfrentar tais adversidades. E o grupo seguiu com os
encontros. Era uma turma bem diversificada, abrigando jovens de diversos ramos
acadêmicos: medicina, psicologia, teologia, filosofia, sociologia, serviço
social… E de distintas partes do Brasil: Belo Horizonte, Juiz de Fora, Rio de
Janeiro, Sete Lagoas, Volta Redonda e São Paulo. Os encontros tinham momentos
reflexivos, que eram fortes, e momentos celebrativos. As celebrações de Libânio
eram indescritíveis, com um ritmo singular de liberdade e participação. E
sempre animadas por muita música e cantoria. No repertório, a presença
constante de Geraldo Vandré, Chico Buarque de Hollanda e Milton Nascimento. Bem
distante das celebrações mornas que marcam o nosso tempo, as celebrações do
Libânio eram vivas e entusiasmantes. O clima era de muita liberdade e todos
participavam com alegria e emoção. O grupo percorreu as décadas de 70, 80 e
inícios de 90. Curioso é que muitos casais formaram-se nesse grupo e também
amizades duradouras. Depois vieram os filhos, que também passaram a participar
com os pais dos encontros, formando em seguida uma verdadira “tropinha”, com
encontros dedicados aos seus temas. O grupo ainda voltou-se a reunir em tempos
mais recentes. Por ocasião dos 80 anos de Libânio, em fevereiro de 2012, houve
um grande encontro festivo da Tropa, no mesmo Seminário da Floresta, para
celebrar essa efeméride. Ali nesse grupo gestou-se uma gama de profissionais em
campos diversificados de atuação, que brilham com destaque no cenário nacional.
E na base dessa formação, a presença amiga e duradoura de Libânio.
- Quais são os traços marcantes do mestre Libânio?
Destacaria a alegria, o cuidado e a delicadeza, mas
sobretudo o gesto de respeito aos caminhos diversificados e o sagrado
compromisso de valorizar o campo da liberdade. Todos nós que vivemos a riqueza
dessa presença em nossas vidas somos unânimes em reconhecer esse traço de Libânio.
Seu respeito à liberdade é irradiador. Sua capacidade de escuta, de abertura e
de aceitação da singularidade e irredutibilidade dos passos de cada um talvez
seja um dos segredos mais lindos de sua sedução. Em tempos de tanta arrogância
e autoritarismo, também no campo das igrejas, presenças assim, tranquilas e
abertas, são testemunhos imprescindíveis.
- A partir de Libânio, o que significa ser Igreja num
mundo pós-moderno
e plural?
Com base no aprendizado com Libânio, entendo que
ser igreja nesse tempo atual exige de nós alguns requisitos essenciais. Há que
ter sempre aceso no coração os valores essenciais da solidariedade aos outros,
do potencial de hospitalidade e abertura, da delicadeza e cuidado na escuta dos
sinais dos tempos, sobretudo nos pequenos e inusitados sinais do cotidiano. E
também uma abertura imarcessível ao mundo plural. Nada mais triste e
desalentador que uma igreja cerrada em si mesma, na solidão de sua consciência
de posse da verdade. Os caminhos vivenciados e apontados por Jesus, que é o
nosso mestre maior, vão por outras veredas, bem mais arejadas e livres. Como
tão bem mostrou José Antônio Pagola, em seu fabuloso livro sobre Jesus, já na
quarta edição brasileira, o que esse galileu e profeta do reino de Deus trouxe
para nós é algo bem singelo: o amor pela vida e o cuidados com os outros. O que
ele nos transmite, quando de fato dele nos aproximamos, é um apaixonado amor
pela vida. É alguém que contagia e irradia saúde, transmitindo com vigor uma
profunda fé na bondade de Deus. Como assinala Pagola, o que o Deus compassivo,
anunciado por Jesus, pede a seus filhos e filhas é “uma vida inspirada pela
compaixão. Na pode agradar-lhe mais. Construir a vida como Deus a quer só é
possível se se fizer do amor um imperativo absoluto”. Isso também aprendemos
com Libânio.
(Publicado no IHU Online nº 394 – Ano XII – 28/05/2012
– pp. 17-20:
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