A dimensão espiritual do diálogo interreligioso
Faustino Teixeira
“O essencial é saber ver”
(Fernando Pessoa)
Introdução
O pluralismo religioso é um fato incontornável de nosso tempo. As diferenças estão aí, por toda parte, a convocar novas perspectivas de conversação e entendimento. É um tempo de mobilidade maior, onde o contato entre as pessoas de crenças diversificadas vem intensificado. As distinções religiosas tornam-se mais imediatas num mundo de fronteiras frágeis. Como indica Clifford Geertz, “as diferenças de crenças, às vezes mais radicais, são mais diretamente visíveis, com frequência crescente, e mais diretamente encontradas: prontas para a suspeita, a preocupação, a repugnância e a altercação”1. Estas diferenças podem, porém, suscitar reconciliação e diálogo. É o grande desafio de nosso século XXI. Enquanto o século anterior deixou como herança um perigoso “estado de inquietação”, com índices de violência assustadores, o século que se inicia traz como possibilidade um caminho dialogal alternativo. Em lugar do “choque de civilizações”, abre-se a perspectiva do “intercâmbio e diálogo entre elas”. É mediante a parceria e conversação que as culturas e religiões afirmam-se mais profundamente como si mesmas. O caminho está no empreendimento cooperativo, como tão bem sublinhou Edwar Said:
Parece-me que, se não enfatizarmos e fomentarmos o espírito de cooperação e intercâmbio humanístico - e aqui falo não de deleite desinformado e entusiasmo amadorístico pelo exótico, mas de um profundo compromisso existencial e trabalho em prol do outro -, vamos acabar batendo no tambor estridente e superficial da defesa de ´nossa` cultura contra todas as demais2.
Acreditar no diálogo não é escamotear as dificuldades reais de entendimento entre os povos e as religiões. A imagem que ainda vigora em nosso tempo é a das afirmações identitárias rígidas, de um mundo marcado pela diabolização do outro e pela irradiação dos nacionalismos mortíferos. Mas há que buscar horizontes alternativos, de ampliação da visão e de exercício de um cuidado singular com os outros, em sua diferença irredutível e irrevogável. Há que ampliar as cordas para suscitar um novo conhecimento e abertura dialogais. Ou cultivamos esse conhecimento mútuo ou terminamos “isolados num mundo beckettiano de solilóquios em choque”3.
O pluralismo religioso vem sendo cada vez mais vislumbrado como um valor irrevogável. Deixa de ser reconhecido como um fenômeno conjuntural passageiro, um fato provisório, para ser percebido na sua riqueza, como um pluralismo de princípio ou de direito. Torna-se uma “realidade cognitiva” que delineia a forma como percebemos nós mesmos e os outros. Aqueles que se fixam no conhecimento restrito de sua própria tradição religiosa não a conhecem em profundidade, pois a presença do “desvio” do outro, em sua alteridade singular, faculta uma melhor inteligência de nossa identidade. O pluralismo religioso, enquanto realidade fundamental, “tem invadido, explodido e transformado o mundo religioso de muitos de nós – por meio do olhar, da voz e do toque de um Outro religioso que é parte das nossas vidas”4.
Esta diversidade nos envolve por todos os lados e guarda consigo “potencialidades secretas”, abrindo espaços inusitados para o exercício novidadeiro de uma vida comum incrementada pela dinâmica da generosidade. A presença provocadora da diferença e da alteridade amplia o campo das possibilidades e faculta o real exercício de uma conversação enriquecedora.
O encontro entre as religiões torna-se um imperativo humano de nossos dias. O diálogo aparece como um desafio singular para captar e compreender a extraordinária diversidade das tradições religiosas, bem como deixar-se enriquecer por ela. Nenhuma religião consegue exaurir o campo da experiência religiosa humana, sempre aberta a novas significações. As religiões não são “mônadas isoladas” e destacadas da dinâmica plural do real. Elas inserem-se numa teia complexa de relações e aprendizados, que relativiza as seduções particularistas. E os místicos assinalam, com acerto, que os desacordos que dividem as religiões e os seres humanos, ocorrem pelo apego à superficialidade dos nomes e das formas. Se houvesse maior atenção à dinâmica de profundidade que as aproxima e envolve, o entendimento e a paz seriam alcançados5.
1. O mistério e sedução da alteridade
O diálogo interreligioso envolve sempre a relação entre interlocutores diferentes, num processo construtivo voltado para o conhecimento mútuo e o enriquecimento recíproco. O diálogo não pode prescindir da identidade e da firmeza de posição, mas pressupõe igualmente a consciência da vulnerabilidade, da disposição de abertura diante de um enigma que ultrapassa as particularidades. Envolve um movimento de recolhimento de si para “para deixar valer o outro”. O outro humano é um patrimônio de mistério que se revela a cada momento, deixando sempre adiante uma virtualidade a ser captada. A alteridade desconcerta e seduz. Ela traduz o mistério da maravilha, que é fascínio e admiração. É quando a alteridade apresenta-se de maneira substantiva e se dá o “impacto com o outro, com a sua indeduzível e improgramável presença”6 É essa admiração que faculta estupor e aciona uma provocação inédita de desarme e abertura.
A presença do outro suscita não apenas maravilha, mas também agonia, na medida em que sua presença nos desconcerta e nos desvia do caminho seguro até então trilhado. É a outra face da dinâmica da alteridade, que nos faz viver a experiência do limite e da fronteira. É agonia na medida em que nos convoca a viver a radicalidade de um exercício de fronteira, um embate com um irredutível que remove as entranhas intelectuais e afetivas. Trata-se de uma convocação dolorosa a romper com as defesas e alongar as cordas, quebrar os preconceitos e aceitar o desafio da abertura às surpresas que acompanham o advento do outro.
O outro permanece, porém, resguardado por um “mistério pessoal intransponível”, mysterium tremendum, que expressa uma experiência de mundo que é única. Há um silêncio que não pode ser ocupado por ninguém, que escapa ao alcance da linguagem, mas um silêncio que convida, pois é também um mysterium fascinans. O diálogo traduz o movimento de aproximação e encontro entre dois mundos distintos. Ele provoca o alargamento de espaços e a expansão das individualidades, deixando sempre em todos os que o realizam uma “marca” diferencial:
Um diálogo é, para nós, aquilo que deixou uma marca. O que perfaz um verdadeiro diálogo não é termos experimentado algo de novo, mas termos encontrado no outro algo que ainda não havíamos encontrado em nossa própria experiência de mundo (...). O diálogo possui uma força transformadora. Onde um diálogo teve êxito ficou algo para nós e em nós que nos transformou7.
2. O diálogo como apropriação de novas possibilidades
O diálogo interreligioso envolve uma conversação delicada e desafiadora entre interlocutores distintos, animados por convicções fundadas, que buscam encontrar “semelhanças na diferença”. Não se trata de demandar uma realidade que apague ou escamoteie as distinções, mas de apropriar-se de novas possibilidades. Há que estar autenticamente animado pela vontade de entrar em conversação com o outro, e isso é inquietante pois exige do sujeito a disposição de “arriscar toda sua auto-compreensão atual” ao disponibilizar-se a levar a sério a perspectiva do outro, que também exige para si o reconhecimento de sua autenticidade e verdade.
Não há como sair ileso de um diálogo verdadeiro. Todos saem modificados. Em qualquer conversação dialogal, ou diálogo dialógico, os interlocutores encontram-se diante da possibilidade de uma mudança, que pode ser mais radical, como indica o termo religioso “conversão”, ou menos intensa, mas também singular, quando ocorre a apropriação de uma nova possibilidade para o sujeito: o que para ele era antes diferente ou estranho, torna-se agora verdadeiramente possível8.
Num dos documentos mais abertos do magistério católico, Diálogo e Anúncio (DA), do Pontifício Conselho para o Diálogo Interreligioso, assinala-se que o diálogo interreligioso é auto-finalizado, tendo em si mesmo o seu próprio valor. Indica-se que o seu objetivo fundamental é a “conversão mais profunda de todos para Deus”. No processo de interlocução criadora pode, porém, ocorrer uma decisão de mudança radical. E reportando a um documento anterior, sobre o Diálogo e Missão, do Secretariado para os não-cristãos, assinala-se: “Nesse processo de conversão, ´pode nascer a decisão de deixar uma situação espiritual ou religiosa anterior, a fim de se dirigir para outra`”. O diálogo sincero requer, por um lado, o reconhecimento da existência das diferenças, e, pelo outro, o profundo respeito pela convicção das pessoas e sua livre decisão em conformidade com a consciência9.
É verdade que o diálogo profundo exige dos interlocutores a prontidão para “se deixar transformar pelo encontro” (DA 47). Mas o diálogo requer que os parceiros entrem em conversação mantendo a integralidade de sua própria fé. Há que respeitar e amar a própria tradição de pertença, sentir-se domiciliado. Ao “auto-respeito genuíno” soma-se o desafio imprescindível da “auto-exposição ao outro”. E isso não significa ceder a um “pluralismo frouxo de privacidades”, mas deixar-se interpelar pela verdade do outro. Como assinala David Tracy, “cada auto-identidade, no auto-respeito por sua própria particularidade, irá descobrir de maneira nova a si própria ao liberar-se para a auto-exposição no diálogo com os outros. Parece assegurado que cada um será modificado por esse diálogo”10.
3. Espiritualidade e abertura dialogal
Há uma importante dimensão espiritual do diálogo interreligioso que vem sendo destacada por autores que trabalham o tema. Em sua reflexão pioneira, Raimon Panikkar assinala que o encontro genuíno entre as diversas religiões não pode acontecer sem esta indispensável dimensão espiritual e mística:
Sem uma certa experiência que transcende o reino mental, sem um certo elemento místico na própria vida, não se pode esperar superar o particularismo da própria religiosidade, e menos ainda ampliá-la e aprofundá-la, ao ser defrontado com uma experiência humana diferente11.
A espiritualidade, entendida como caminho para atingir a experiência suprema da Realidade, torna-se um fator essencial para o exercício dialogal. É ela que fornece o tônus fundamental para a nossa ação no mundo e qualifica o nosso procedimento.
A espiritualidade é como uma ´carta de navegação` no mar da vida do homem: a soma dos princípios que dirigem o seu dinamismo para ´Deus`, dizem alguns; para uma sociedade mais justa ou para a superação do sofrimento, dizem outros. Podemos, então, falar de espiritualidade budista, ainda que os budistas não falem de Deus; e também de uma espiritualidade marxista, embora os marxistas sejam alérgicos à linguagem religiosa. O conceito, assim tão amplo, exprime melhor uma qualidade de vida, de ação, de pensamento etc., não ligado a uma doutrina, confissão ou religião determinada, ainda que seus pressupostos sejam facilmente reconhecíveis12.
É a sensibilidade espiritual que desoculta a dimensão de profundidade, onde habita o “ponto luminoso” que dá razão e sentido ao nosso ser. Animados por ela conseguimos despertar para a “infinita Realidade que existe dentro de tudo que é real”13. Importantes místicos das tradições islâmica e cristã identificaram este “ponto” (nuqta) como o centro nevrálgico da esfera da unidade14. Trata-se de um “ponto cego e suave”, um “ponto virgem” que expressa a misteriosa presença do Mistério em nós, recolhido em nosso mais íntimo rincão, como centelha que ilumina o olhar. É o ponto que está na base de todas as luzes, cores e silêncio e preside a dinâmica de nosso ser. O impulso espiritual possibilita-nos captar essa presença e irradiá-la em nossa vida. É necessário e essencial, como diz o poeta, “saber ver”, mas isto exige uma “aprendizagem de desaprender”, a superação da perspectiva egocêntrica que domina a nossa trajetória. As mesmas coisas estão sempre aí, mas nem sempre são motivo de nossa atenção. O olhar atento é capaz de desocultar uma dimensão completamente diversa, um sentido oculto e o sentimento vibrante do real. Esse ponto privilegiado e singular está sempre aí e pode ser percebido a cada momento, desde que haja clima para a sua recepção. O místico francês, Teilhard de Chardin, identificou-o como um “centro móvel”, que favorece “a eterna descoberta e o eterno crescimento”:
Quanto mais cremos compreendê-lo, mais Ele se revela outro. Quanto mais pensamos possuí-lo, mais Ele se recua, atraindo-nos para as profundezas de si mesmo. Quanto mais nos aproximamos dele, por meio de todos os esforços da natureza e da graça, mais Ele aumenta, em um mesmo movimento, sua atração sobre nossas potências e sobre a receptividade dessas potências ao encanto divino15.
O acesso a esse “ponto luminoso”, que pode também ser identificado com o centro do coração, se dá através do desapego e do despreendimento. Esse é o caminho essencial para o encontro com a realidade em sua densidade verdadeira. E, curiosamente, o despreendimento não significa um abandono das coisas ou distanciamento da realidade, mas um adentramento mais fino em sua espessura. As coisas, uma vez percebidas com a ocular de quem sintonizou-se com o “ponto luminoso”, são apaixonadamente amadas em sua grandeza. E isso vale também para as religiões, que passam a ser percebidas em sua peculiaridade e riqueza, como um patrimônio espiritual.
Ao despojamento segue-se a abertura do coração. Não se adentra nos segredos divinos senão mediante o despojamento e a purificação. Seguindo as pistas abertas pela tradição mística sufi, o coração (qalb) é o órgão por excelência da percepção mística, o “ponto de impacto dos acontecimentos espirituais” e o “lugar do segredo divino”16. A própria raiz da palavra em árabe, Q-L-B, indica a idéia de “receptáculo” ou “suporte” das diversificadas epifanias divinas. O coração está animado por uma infindável capacidade de captar e acolher formas e imagens. É um órgão plástico por excelência, de pulsação contínua, capaz de inversões, mudanças e flutuações inusitadas, como traduz um outro termo derivado da mesma raiz: taqallub. Em clássico poema, Ibn ´Arabî assinala:
Meu coração está aberto a todas as formas:
É uma pastagem para as gazelas,
E um claustro para os monges cristãos,
Um templo para os ídolos,
A Caaba do peregrino,
As tábuas da Torá,
E o livro do Corão.
Professo a religião do Amor,
Em qualquer direção que avancem Seus camelos;
A religião do Amor
Será minha religião e minha fé17.
As teofanias divinas sucedem-se e modificam-se constantemente. A cada segundo o coração capta imagens diversificadas da presença do Mistério sempre maior. E em sua plasticidade é capaz de acolher com generosidade esse dom da diversidade. São manifestações que expressam aspectos diferenciados da Verdade divina. Não há, porém, como conter e exprimir essa Verdade em sua totalidade. Daí a necessidade permanente de manter aberta a porta da percepção. Não há porque fixar-se numa única tradição religiosa, excluindo a possibilidade do enriquecimento advindo da relação e do diálogo com o diferente. Ligar-se dessa forma exclusiva a um credo particular é deixar escapar bens preciosos18.
Na medida em que se aprofunda em direção ao núcleo do coração, as representações tornam-se movediças, os nomes e formas superficiais vão perdendo sua couraça de impenetrabilidade, e passam a ser enriquecidos pelo calor das diversas teofanias que brilham por todo canto. As religiões deixam de ser “mônadas isoladas” e passam a ser percebidas como “fragmentos” que participam de uma sinfonia singular, pontuada pela abertura e inacabamento. Nada mais problemático que o “encarceramento na aparência”. Há que avançar sempre para dentro, no âmbito da profundidade.
É nessa direção da interioridade que se realizam as experiências mais profundas e enriquecedoras do diálogo entre as religiões. É quando o diálogo torna-se mais profícuo, enquanto “enriquecimento recíproco e cooperação fecunda, na promoção e preservação dos valores e dos ideais espirituais mais altos do homem”19. Um dos grandes mestres neste âmbito foi Thomas Merton, que empreendeu um caminho de abertura interreligiosa admirável. Num de seus últimos trabalhos, em torno do diálogo da experiência monástica, assinala que o monge “deve ser um exemplo vivo da realização tradicional e interior. Deve estar completamente aberto à vida e à nova experiência por ter utilizado integralmente sua própria tradição e a ter ultrapassado”20. Na verdade, ao se penetrar com seriedade intensa na própria tradição religiosa, o buscador se dá conta da riqueza ainda muito maior do mistério, que brilha também alhures. Essa interiorização permite uma maior desprendimento e, sobretudo, liberdade. É um mergulho que disponibiliza para o outro, que mantém as portas e janelas abertas para a tradição e herança das experiências que acontecem em outras comunidades religiosas.
Nada mais letal, segundo Merton, do que o entrincheiramento identitário, a afirmação individualista e auto-suficiente da própria tradição. O caminho que ele propõe vai noutra direção, de abertura e aceitação dos outros:
Serei melhor católico, se puder afirmar a verdade que existe no catolicismo e ir ainda além (…). Se eu me afirmo como católico simplesmente negando tudo que é muçulmano, judeu , protestante, hindu, budista etc., no fim descobrirei que, em mim, não resta muita coisa com que me possa afirmar como católico: e certamente nenhum sopro do Espírito com o qual possa afirmá-lo21
Todos que no cristianismo ou em outras tradições religiosas trabalham na linha da perspectiva mística vão reforçando uma convicção cada vez mais clara de que quanto mais se aprofunda e se adentra na experiência religiosa, tornada possível na sua própria tradição, tanto mais cresce a consciência de que a Realidade experimentada não se limita à própria religião. No apogeu de sua reflexão teológica, Paul Tillich intuiu de forma extremamente profunda esta questão ao indicar o caminho da profundidade como a condição essencial de ultrapassagem de uma particularidade limitada do cristianismo: não se trata de um caminho que leve ao abandono da própria tradição religiosa, mas de seu aprofundamento mediante a oração, o pensamento e a ação. Para ele,
na profundidade de toda religião viva há um ponto onde a religião como tal perde sua importância e o horizonte para o qual ela se dirige provoca a quebra de sua particularidade, elevando-a à uma liberdade espiritual que possibilita um novo olhar sobre a presença do divino em todas as expressões do sentido último da vida humana22.
Em semelhante linha vai a reflexão de Mestre Eckhart num de seus sermões alemães, quando trata da importância da “límpida humildade” para o acesso ao “fundo de Deus”. E a surpresa para quem faz essa experiência é a percepção viva da força generosa do amor de Deus, que brilha em todo canto:
As estrelas derramam toda sua força no fundo da terra, na natureza e no elemento da terra, produzindo ali o ouro mais límpido. Quanto mais a alma chega no fundo e no mais íntimo de seu ser, tanto mais a força divina nela se derrama plenamente e opera veladamente de maneira a revelar grandes obras e a alma tornar-se-á bem grande e elevada no amor de Deus, que se compara ao ouro límpido23.
Todo esse mergulho na interioridade faculta a tônica do amor, que potencializa a abertura do ser humano para a beleza de todas as coisas. Em viva sintonia com a perspectiva do Cântico dos Cânticos, Eckhart indica que “quando a alma flui totalmente em Deus, ela não sabe de mais nada a não ser de amor”24. Igualmente Tauler, num de seus sermões, assinala que “é onde o vale é mais profundo que a água escorre de forma mais abundante”25.
Conclusão
No terceiro volume de sua trilogia cristológica, Edward Schillebeeckx acentuou que a acolhida da diversidade está na essência mesma do cristianismo, sendo o seu fundamento o anúncio e prática do reino de Deus por Jesus26. A fidelidade autêntica a Jesus Cristo envolve a abertura para os outros. É Jesus mesmo que nos lança ao desafio radical da alteridade. Na verdade, “Jesus é o caminho que está aberto para outros caminhos”27. As religiões, enquanto inseridas na história, são habitadas por ambiguidades que não podem ser apagadas. Elas estão no tempo e sofrem a dinâmica de sua limitação. Não há como considerar uma religião abrangentemente verdadeira. Utilizando uma expressão de Paul Ricoeur, elas são fragmentos, e cada fragmento “sugere unidade potencial, mas seu conjunto, não tendo nenhum horizonte comum, não se impõe como unidade: talvez fique à espera de uma unidade para o momento indiscernível”28. Trata-se de uma sinfonia sempre adiada, pois a totalidade é inimaginável. Querer ocupar todo o espaço seria uma pretensão arrogante, ou mesmo ilusória. Todas as religiões estão confrontadas com limites bem definidos. Cada fragmento é convocado a aprofundar sua lógica, a respeitar seu intuito universal, mesmo sabendo que ele encontra-se ainda vazio “de todo conteúdo capaz de unificar o diverso religioso”29. A palavra mesma de Jesus constitui um alerta contra possíveis pretensões totalizantes, funcionando como uma admoestação contra a tentação de ultrapassagem de fronteiras que são precisas. É uma palavra que “convida cada fragmento a não ultrapassar suas fronteiras para incluir nele próprio a exterioridade”30. O Deus que Jesus anuncia é também um Deus de todos: “Ele é o ´Pai do céu`. Não está ligado ao templo de Jerusalém nem a qualquer outro lugar sagrado. É o Pai de todos, sem discriminação nem exclusão alguma. Não pertence a um povo privilegiado. Não é propriedade de uma religião. Todos podem invocá-lo como Pai”31.
(Publicado na Revista Tempo Brasileiro, nº 183, out/dez 2010, pp. 45-56)
1 GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 158.
2 SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 330.
3 GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia, p. 82.
4 KNITTER, Paul F. Jesus e os outros nomes. São Bernardo do Campo: Nhandu Editora, 2010, pp. 48-49.
5 RÛMÎ, Djalâl-od-Din. Mathnawî. La quête de l´Absolu. Paris: Rocher, 1990, p. 516 (MII, 3680).
6 FORTE, Bruno. Teologia in dialogo. Milano: Raffaello Cortina Editore, 1999, p. 60.
7 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 247.
8 TRACY, David. Pluralidad y ambigüedad. Madrid: Trotta, 1997, p. 142-143.
9 PONTIFÍCIO Conselho para o Diálogo Interreligioso. Diálogo e Anúncio. Petrópolis: Vozes, 1991, n. 41. Ver também: SECRETARIADO para os Não-Cristãos. A Igreja e as outras religiões (Diálogo e Missão). São Paulo: Paulinas, 2001, n. 37.
10 TRACY, David. A imaginação analógica. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2004, p. 567.
11 PANIKKAR, Raimon. La nuova innocenza 3. Sotto il Monte: Servitium, 1996, p. 156.
12 PANIKKAR, Raimon. Vita e parola. La mia opera. Milano: Jaca Book, 2010, p. 24.
13 MERTON, Thomas. Novas sementes de contemplação. 2 ed. Rio de Janeiro: Fisus, 2001, p. 10
14 RUSPOLI, Stéphane. Le message de Hallâj l´expatrie. Paris: Cerf, 2005, pp. 148 e 264; MASSIGNON, Louis. La passion de Hallaj III. Paris: Gallimard, 1975, p. 26; MERTON, Thomas. Reflexões de um espectador culpado. Petrópolis: Vozes, 1970, pp. 151, 175 e 183.
15 CHARDIN, Teilhard. O meio divino. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 115.
16 MASSIGNON, Louis. Écrits mémorables II. Paris: Robert Lafont, 2009, pp. 309-310.
17 IBN ´ARABI. L´interprète des désirs. Paris: Albin Michel, 1996, p. 95. Para o aprofundamento desse tema ver: IBN ´ARABÎ. Le livre des chatons des sagesses. Tome premier. Beyrouth: Al-Bouraq, 1997, pp. 318-319 e 328-338; SOUZA, Carlos Frederico Barboza. A mística do coração. A senda cordial de Ibn´Arabî e João da Cruz. São Paulo: Paulinas, 2010, pp. 248-253.
18 Tanto Al Hallaj como Ibn ´Arabî alertam para o risco de fixação numa única tradição religiosa, negando o aprendizado que pode ser obtido com as outras religiões. A negação desse aprendizado traduz, na verdade, a negação de imensos bens que procedem do “Princípio fundamental” que preside e anima todas estas tradições. Ver a respeito: HALLÂJ, Husayn Mansur. Dîwân. Paris: Éditions du Seil, 1981, p. 108 (Muqatta´a 50); IBN ´ARABÎ. Le livre des chatons des sagesses. Tome premier, p. 278.
19 SECRETARIADO para os Não-Cristãos. A Igreja e as outras religiões (Diálogo e Missão), n. 35.
20 MERTON, Thomas. O diário da Ásia. Belo Horizonte: Vega, 1978, p. 248.
21 MERTON, Thomas. Reflexões de um espectador culpado, p. 166.
22 TILLICH, Paul. Le christianisme et les religions. Paris: Aubier, 1968, p. 173.
23 ECKHART, Mestre. Sermões alemães 1. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 297 (Sermão 54 a).
24 ECKHART, Mestre. Sermões alemães 2. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 67 (Sermão 71).
25 TAULERO, Giovanni. I sermoni. Milano: Paoline, 1997, pp. 418-419 (Beati gli occhi che vedono cio che voi vedete).
26 SCHILLEBEECKX, Edward. Umanità la storia de Dio. Brescia: Queriniana, 1992, p. 218.
27 KNITTER, Paul F. Jesus e os outros nomes, p. 108.
28 DUQUOC, Christian. O único Cristo. A sinfonia adiada. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 88.
29 Ibidem, p. 170.
30 Ibidem, p. 163.
31 PAGOLA, José Antonio. Jesus aproximação histórica. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 392.
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