quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Leonardo Boff e sua Eclesiogênese

 Leonardo Boff e sua Eclesiogênese

 

Faustino Teixeira

 

Um dos mais preciosos livros da teologia da libertação e que está na base da fundamentação teológica das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) no Brasil é o livro de Leonardo Boff: Eclesiogênese (Vozes, 1977). A primeira ideia do livro nasceu junto com os dois primeiros encontros Intereclesiais de CEBs, ocorridos na cidade de Vitória, em 1975 e 1976. Foram nesses Intereclesiais que a expressão “eclesiogênese” ganhou cidadania. 

 

Como afirmei em meu livro sobre Os encontros intereclesiais de CEBs no Brasil (Paulinas, 1996), a ideia de uma “Igreja que nasce do povo” nasceu no primeiro intereclesial. Era algo que significava uma verdadeira eclesiogênese. A expressão ganhou cidadania e correu o mundo, marcando a vitalidade e potencialidade das CEBs. Não ocorreu, porém, sem suscitar dificuldades e controvérsias, recebendo inclusive uma advertência do papa João Paulo II por ocasião do Encontro de Puebla, em 1979.

 

O livro de Leonardo Boff nasceu como uma iniciativa do Instituto Nacional de Pastoral (INP). Foi um fruto de reflexão apresentada a um grupo de teólogos do INP, ligados à Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB). 

 

No sumário apresentado vislumbramos cinco capítulos: A CEB como nova experiência de Igreja; Que futuro possui a comunidade?; A Comunidade Eclesial de Base é Igreja, ou só possui elementos eclesiais?; As Comunidades Eclesiais de Base e a reinvenção da Igreja; Em que as CEBs poderão contribuir na superação da atual estrutura da Igreja. Por fim, são levantadas algumas Quaestiones Disputatae.

 

No capítulo primeiro, temos o tema das CEBs como nova experiência da Igreja. Para início de conversa, Leonardo sublinha que o surgimento das CEBs ocorrem “na conjuntura da sociedade moderna”, visando quebrar a atomização da existência nessa sociedade do anonimato. 

 

A experiência provoca um novo encontro entre as pessoas, que podem agora se conhecer e reconhecer como sujeitos da palavra. Na contramão de uma Igreja hierarquizada, as CEBs nascem com o rosto de uma nova experiência, marcada pela fraternidade e comunhão. Elas surgem igualmente respondendo a um desafio premente de crise da instituição Igreja, buscando uma nova presença eclesial centrada no leigo. E nascem gestando uma nova eclesiologia.

 

capítulo segundolança um desafio sobre o futuro da comunidade. Leonardo narra rapidamente o processo de gênese das CEBs no Brasil, com ênfase também no influxo da Conferência de Medellín (1968), da Exortação apostólica Evangelii nuntiandi, de Paulo VI (1975) e o Sínodo dos Bispos, de 1974. Indica que as comunidades nascem pela força do Espírito e não como alternativa à instituição em crise. Nascem respondendo ao imperativo comunitário, buscando um fermento renovador. A comunidade, diz Leonardo, é “utopia da sociedade”. Um jeito novo de “criar e manter a envolvência comunitária, como um ideal, um espírito a ser sempre recriado, vencendo a rotina e o ambiente institucionalizante e nivelador”. 

 

Como sublinha Leonardo, as Cebs nascem como Igreja que brota do chão do povo e reconstitui a mesma Igreja que nasceu dos apóstolos. Seu futuro está garantido na medida em que lança um contraponto profético à Igreja que está aí, movida por sua mesmidade. Ela interage profeticamente com a Igreja instituição, em tensão dialética, sem se deixar por ela envolver ou naufragar.

 

No capítulo terceiro, Leonardo aborda a eclesialidade das CEBs. Elas são de fato Igreja ou apenas contêm elementos de Igreja? Essa é a interrogação lançada. O elemento que confere pertinência às CEBs é sua eclesialidade. Como diz Boff, “a consciência e a explicitação cristã constitui, portanto, a característica da comunidade e o elemento de discernimento face a outros tipos de comunidade”. 

 

É o que na ocasião distinguia as CEBs brasileira de outras no exterior, como na Itália. O que faz as CEBs se constituírem como Igreja é o fato de homens e mulheres responderem de forma singular ao apelo comunitário e salvífico de Deus em Jesus Cristo. São plenamente cristãos, que “se reúnem em comunidade, professam a mesma fé, celebram a mesma libertação escatológica e tentam viver o seguimento de Jesus Cristo”. São, portanto, verdadeira Igreja e não apenas comunidades com elementos eclesiais. 

 

Leonardo procede toda uma argumentação teológica centrada na Constituição Lumen Gentium, do Vaticano II, para mostrar o valor das CEBs como experiência viva de Igreja particular, que confere visibilidade à Igreja Universal na base dos pobres. Leonardo tem consciência de que as CEBs não esgotam a eclesialidade da Igreja, mas traduzem um jeito digno e nobre de ser Igreja. As CEBs constituem verdadeira Igreja-sacramento, que “historiza, torna sinal e instrumento da salvação, a Igreja universal no lugar e na situação cultural em que ser enraíza”.

 

As CEBs como “reinvenção” da Igreja é tema do capítulo quarto. Ao falar de “reinvenção”, Leonardo busca ser claro. Quer dizer, uma Igreja que “começa a nascer das bases, do coração do Povo de Deus”. Uma experiência que provoca toda a Igreja a ser na perspectiva do seguimento de Jesus, sempre inspirada e renovada pelo Espírito. 

 

As CEBs tem algo bem concreto a oferecer à Igreja: “Ajudam a Igreja toda a se considerar a partir da realidade mais fundamental, sem a qual não existe Igreja: a fé na presença ativa do Ressuscitado e do seu Espírito no seio de toda a comunidade humana, fazendo que ela viva os valores sem os quais não há humanidade”. Nelas, os leigos ocupam um lugar de protagonismo, enquanto “criador de valores eclesiológicos”. Trata-se igualmente de uma Igreja toda ministerial, onde vigora uma igualdade fundamental de todos.

 

A real contribuição das CEBs para um modelo alternativo de Igreja é tema do quinto capítulo. Segundo Leonardo, “a forma como se organizam as CEBs e a praxe que nelas se articula corroboram para superar um obstáculo fundamental da vida comunitária: a estrutura de participação na Igreja”. Superando o tradicional modelo triangular da Igreja dividida hierarquicamente em três termos, Bispo-Padre-Fiel, as CEBs buscam um caminho tecido por nova rede de relações, onde o leigo passa a assumir um lugar mais decisivo na gestão da Igreja, “como um dos termos participantes da estrutura”. 

 

Ao final, aparecem as Quaestiones Disputatae. O primeiro tema abordado tem um toque eclesiológico:  Quis o Jesus histórico uma única forma institucional de Igreja? Leonardo Boff reconhece no livro que quando se entende a Igreja como experiência de graça, é correto dizer que Jesus Cristo fundou a Igreja. Mas enquanto instituição não. Aqui se entende a instituição visível, sua organização sacramental e instituição ministerial hierárquica. 

 

A Igreja institucional nasce na base de elementos colocados por Jesus em seu ministério, o que não significa, entretanto que ele tenha criado a instituição do modo específico como se firmou na história. Pode-se falar concretamente na Igreja só após a fé na ressurreição. 

 

É o que diz Leonardo com razão. Citando o grande exegeta do Segundo Testamento, Schnackenburg, “podemos falar de Igreja no sentido próprio, como comunidade de Cristo, somente após a elevação de Cristo e da vinda do Espírito Santo”. Como o Reino anunciado por Jesus não encontrou realização histórica, a Igreja surge como propulsora desse sonho de Jesus na história. Ela nasce, assim, de certo modo, relacionada ao “fracasso” de Cristo em sua labuta pelo Reino.

 

De fato, a intenção original de Jesus não foi a de fundar uma instituição hierárquica, mas de propor o Reino de Deus. E Reino de Deus para Jesus tinha um significado bem preciso, como indica Bultmann, citado por Boff: “o governo de Deus que põe termo ao mundo atual, que aniquila tudo o que é antidivino, satânico e sob o qual geme atualmente o mundo, e que assim, acabando com toda a miséria e com todo o sofrimento, traz a salvação ao povo de Deus, que aguarda o cumprimento das promessas proféticas”. Esse Reino anunciado por Jesus é, por um lado, uma grandeza presente, mas por outro, uma grande que guarda uma dimensão importante de futuro.

 

A ideia de Pedro como fundamento da fé eclesial também vem trabalhada por Boff, com ênfase em seu caráter de explicação etiológica.  Ele é fundamento na medida em que foi assim concebido pela comunidade dos cristãos, que entenderam que “sobre sua confissão e sua fé na ressurreição” a Igreja veio concebida. Toda a passagem evangélica de Mateus que fala em Pedro como pedra e fundamento é uma “reflexão feita pela comunidade”, como um passo nitidamente pós-pascal e não propriamente jesuânico.

 

Também o tema da última ceia vem abordado por Boff, que o identifica como um “derradeiro sinal escatológico”. Ela, a ceia, seria, em verdade, no seu sentido primordial, “um símbolo da ceia celestial dos homens no Reino de Deus”, como claramente transparece na passagem de Lucas.

 

A Igreja que nasce sob a inspiração de Jesus Cristo, é profundamente modelado pelo Espírito renovador. Ela tem sua origem, como diz Hans Kung, e vem lembrado por Boff, “não simplesmente nos discípulos, nos desígnios e na missão de Jesus pré-pascal, mas sim no conjunto do acontecimento cristológico”. Ela foi, sim, “pré-formada pelo Jesus histórico”, mas em sua forma concreta “se apoia na decisão dos apóstolos, iluminados pelo Espírito Santo”.

 

A Igreja é, sim, portadora do sonho de Jesus, e sacramento do Reino na história. Ela nasce do “conjunto do evento cristológico” e dá sequência na história ao projeto inacabado do Reino de Deus.

 

O segundo tema tratado nas Quaestiones Disputataefoi a questão do leigo e o seu direito em celebrar a Ceia do Senhor. Em linha semelhante de reflexão de outros teólogos como Edward Schilebbeckx, Boff aborda corajosamente o tema desse direito do leigo. 

 

Para ele, “as CEBs mostram que o leigo pode fazer tudo o que, pastoralmente, um sacerdote faz. Apenas não pode consagrar e perdoar os pecados”. Leonardo busca apresentar ao final do livro, como um theologumenon, a hipótese do direito do leigo celebrar a Ceia do Senhor. E o faz em nome da fé e do batismo “pelos quais os fiéis são inseridos em  Cristo e Cristo, com todos os seus poderes, se faz presente e atuante na comunidade”. 

 

Leonardo aventa também a possibilidade do sacerdócio da mulher, a partir do reconhecimento sensível de seu lugar protagonista nas pequenas comunidades espalhadas pelo interior do Brasil. Argumenta que não há “argumentos teológicos decisivos contra a ordenação da mulher”, mas apenas argumentos “disciplinares”, que podem ser debatidos. 

 

 

 

 

 

 

Mesters e a flor sem defesa

 Mesters e a Flor sem Defesa

 

Faustino Teixeira

 

 

Provocado pelo amigo José Oscar Beozzo, fui visitar novamente um livro que marcou minha primeira formação teológica: a obra fundacional de frei Carlos Mesters: Por trás das palavras: um estudo sobre a porta de entrada no mundo da Bíblia (Editora Vozes, 1974). É outro livro que tem a assinatura de meu pai, Mozart Teixeira, em sua primeira edição.

 

Quando o livro saiu, estava no início do meu curso de filosofia e ciências da religião, que fiz simultaneamente. Mesters já era na ocasião um exemplo de vida para mim. O meu carinho por ele era tamanho, que quando tive o privilégio de assistir uma celebração sua em Angra dos Reis, onde morava, nasceu a ideia de meu casamento com Teita. Suas celebrações são de uma beleza e simplicidade únicas.

 

Esse livro de Mesters foi inaugural na experiência das CEBs no Brasil e, em particular no impulso para a leitura popular da Bíblia, que deu origem ao Centro de Estudos Bíblicos (CEBI).

 

Já somos tomados de fascínio na abertura do livro, quando faz uma citação de João Guimarães Rosa, no Grande Sertão: Veredas:

 

“Sou só um sertanejo, nessas altas ideias navego mal. Sou muito pobre coitado.... Eu quase que nada sei. Mas desconfio de muita coisa. O Senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre. – o senhor solte em minha frente uma ideia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém”.

 

Sim, Carlos Mesters é o nosso Riobaldo na familiaridade com a Bíblia. Como poucos no Brasil, sabe farejar a Palavra de Deus de uma forma inédita e simples, e transmitir sua mensagem com uma sabedoria que encanta. É o nosso grande mestre nesse trabalho singelo de levar a Palavra para os mais simples, com um dom de alegria, simplicidade e gratuidade que a todos encanta.

 

Para ele, vale uma expressão que ouvi um dia nas CEBs: “Para entender a Bíblia, nem precisei sair do Ceará”. Uma forma linda de dizer que a leitura da Bíblia ocorre no chão da vida e sua interpretação está em profunda sintonia com a vida sofrida e corajosa do povo, de suas várias Marias.

 

A proximidade com o povo é o ponto fulcral da compreensão da Bíblia segundo Mesters. Ele já diz no prefácio de seu livro: “A distância que vai entre a janela e os meus olhos determina o que vejo lá fora na rua. Se fico mais perto, a visão se alarga; se fico de longe, a visão se estreita”. 

 

O sábio carmelita sabe muito bem das dificuldades que acompanham a leitura e interpretação da Bíblia; das limitações que envolvem o nosso olhar que interpreta. Mas sabe também que a leitura comunitária traduz um caminho rico para a compreensão dessa Palavra-Mistério: “É trocando as experiências, numa conversa franca e humilde, que nos ajudamos mutuamente a enxergar melhor as coisas que vemos, e romper as barreiras que nos separam sem razão”.

 

Esse jeito bonito de ler a Bíblia em comunidade, é um traço característico de nossa América Latina. Temos também o bonito exemplo de Ernesto Cardenal, numa das ilhas do Arquipélago de Solentiname, na Nicarágua, onde gestou uma encantadora experiência espiritual comunitária. Ali, numa ponta de ilha, Cardenal criou a pequena comunidade de Nossa Senhora de Solentiname. 

 

O livro recolhe os diversos comentários dos camponeses sobre a leitura bíblica realizada nas celebrações de domingo. Para Cardenal, o seu livro mais importante é o que recolhe esses comentários: El Evangelio en Solentiname (1976). 

 

O livro veio publicado em diversos países, e ganhou em tempos recentes uma nova edição, pela Editora Trotta (2006). Trata-se de outro livro que está na gênese da leitura popular da Bíblia. Num de seus diários, Cardenal sublinha que essa obra traz como contribuição os ricos comentários bíblicos de camponeses, que captam a Palavra com ainda maior profundidade que muitos teólogos: são depoimentos de Marcelino, Olivia, Rebeca, Laureano, Felipe, Tomás, Alexandro, Pancho, Oscar e Júlio. Essa comunidade foi arrasada pela repressão de Somoza, e muitos desses personagens morreram ou foram torturados. 

 

O livro de Carlos Mesters vem dividido em quatro partes e dez capítulos, sendo os títulos: Abrindo a porta; A atitude do povo frente à Bíblia; A Bíblia vista e interpretada pela Bíblia; A porta de entrada no mundo da Bíblia.

 

Um dos passos mais preciosos do livro está na parábola da porta, incluída na primeira partedo livro. A parábola fala de um povoado que tinha uma casa do povo, antiga e bem construída. A casa “fazia parte da vida do povo”. Com o tempo chegaram dois estudiosos vindos de fora. Eram doutores especialistas em coisas antigas e pediram permissão para ficar na casa.

 

 A presença dos estudiosos ali favoreceu a compreensão de muitas riquezas presentes naquela casa. A presença deles, porém, foi aos poucos inibindo a presença do povo simples, que ficava constrangido de adentrar na casa pela porta da frente. Aos poucos, a casa foi deixando de ser do povo, que quando ali entrava, ficava agora silencioso e acanhado. Com o tempo, a porta da frente ficou esquecida, e o interior da casa ficou mais escuro, por falta de luz. Todos entravam pela porta do lado.

 

O povo continuava com “o livrinho na mão”, estudando-o em pequenos grupos,  mas agora era diferente: “Já nem mais se lembrava dos tempos de outrora, quando juntos brincavam e dançavam no lugar onde agora estudavam, olhando sério, imitando os doutores, livrinho na mão, repetindo a lição”.

 

A libertação finalmente ocorreu quando um velho mendigo, sem casa, adentrou-se por entre a mata que impedia o acesso à porta da frente da casa e conseguiu acessar a porta por uma fresta existente. E assim foi retornando à casa, convidando seus amigos de pobreza a partilharem com ele o novo abrigo. O recado do mendigo foi sendo divulgado entre os pobres, e o ritmo das presenças acabou por abater o mato e abrir o acesso à casa. Guardavam no coração um segredo: “Aquela casa é nossa”. O fato chegou aos ouvidos dos estudiosos, que reagiram de forma diferente: um manifestou seu desgosto, e o outro ficou calado. 

 

O estudioso mais sensível, “escondeu-se, de noite, num canto da casa. Viu o povo entrar, sem pedir licença, para dançar e brincar, falar e cantar, para sentir-se à vontade e encontrar-se com os outros”. Ele gostou de ver essa alegria popular, e acabou também entrando na dança. Ao entrar agora pela porta da frente, pôde então perceber “a beleza da casa de um ângulo novo que ainda não conhecia”.

 

Teve acesso a uma nova luz, vinda agora “da rua e da alegria do povo”. Foi quando então começou a estudar a Bíblia a partir desse novo olhar, descobrindo coisas novidadeiras. E assim Merton, a partir de uma parábola maravilhosa, narra como nasceu “a história da explicação da Bíblia ao povo”.

 

Ainda na primeira parte do livro, Mesters trata o tema da intenção que está atrás dos olhos de quem lê e estuda a Bíblia. Aborda dois critérios fundamentais que devem orientar o estudo popular da Palavra: “Levar em consideração as exigências da realidade que hoje vivemos” e “as exigências da revelação, expressas na própria Bíblia e na fé da Igreja”. 

 

Revela que seu interesse em escrever o livro foi justamente o de poder mostrar esse lado semente da Palavra de Deus: “A sua flor, o seu sentido, só aparece, quando a palavra for plantada no chão da vida e lá tiver condições de germinar e produzir seu fruto”.

 

Indica os defeitos que os estudiosos devem evitar nesse trabalho de leitura popular da Bíblia: atender pacientemente o tempo de germinação da compreensão, sobretudo o cultivo do silêncio. Há também que reconhecer que tudo deve ser dito “aos poucos” e com carinho e cuidado. Estar atendo ao contexto mais amplo, não se fixando numa única página ou afirmação. Importante também estar atento, à escuta da percepção que vai brotando da comunidade.

 

Na parte dois, o tema abordado é o da atitude do povo frente à Bíblia. Quando confrontado com a Bíblia, o povo “faz perguntas, apresenta dificuldades e toma atitudes”. Há importantes exigências subjetivas que devem ser levadas a sério por quem busca uma correta interpretação da Palavra e o desejo de irradiar o conhecimento aos outros. Há que ter muita humildade, rompendo com toda e qualquer hybris, ou vontade de poder: “Aquele que explica a Bíblia ao povo não é o depositário exclusivo da revelação e da verdade”. É o que sublinha com ênfase Merton.

 

É necessário também reconhecer o ritmo do povo e entender que ele também fala pelo seu silêncio, um silêncio que é eloquente e deve ser objeto de muita atenção. Por mais estranho que possa parecer, diz Mesters, “ao povo nada se ensina, mas a ele se devolve, explicitado e purificado”. Há que se estar atento também para conjugar com criatividade o sentido que o texto tem em si com o significado que ele tem para nós. 

 

A atenção deve voltar-se, primeiramente, para os caminhos de superação das dificuldades que o povo tem com a leitura e interpretação da Bíblia: lidar com as limitações de leitura, de acesso ao conteúdo da Palavra; de perceber conjuntamente as dúvidas que o livro gera, e o desvelo de suas complicações. Há também que superar os preconceitos que estão ainda enraizados para uma compreensão mais aberta e ecumênica. 

 

A dificuldade de percepção de alguns problemas deve-se ao distanciamento do povo: “Se nós não percebermos o problema real, escondido nas perguntas e problemas que o povo levanta em torno da Bíblia, é porque sendo do povo, não convivemos com ele nem participamos da sua luta e vida”. Há em verdade um problema de sintonia de nosso sistema hermenêutico e a vida concreta daqueles que ouvem a explicação.

 

Carlos Mesters faz um breve histórico do mal-estar envolvido nas dificuldades encontradas pelo povo para o acesso ao Livro. Enfatiza muito a importância de buscar um novo foco interpretativo, para além dos resquícios do passado. 

 

Relata em breves passadas os caminhos abertos por importantes exegetas como Bultmann, bem como os avanços ocorridos no campo da catequese. Pôde-se então perceber com clareza as razões do curto-circuito entre exegese e vida. E daí partiu-se para um novo caminho. E uma pergunta importante serviu de leme: “A exegese existe para o povo, ou o povo para a exegese?”.

 

Os primeiros passos da reflexão de Merton serviram para um diagnóstico preciso: há que levar a sério as perguntas do povo e reconhecer em seu âmbito as verdadeiras questões envolvidas, e que na verdade estão relacionadas com a sua vida concreta: “A preocupação absorvente com a vida presente e com o seu crescimento, que se traduz, muitas vezes, em sofrimento e medo diante da realidade que arrasa e oprime; abertura e preocupação com o futuro que atrai e que necessita de esperança”.

 

Na terceira partedo livro, a questão que se apresenta é a da Bíblia vista e interpretada pela Bíblia. O caminho escolhido por Mesters foi de enveredar-se pela memória da Igreja, que é uma “memória perigosa”. Propõe-se a fazer num primeiro momento, uma releitura da Bíblia. Com seu instrumental teórico, o carmelita ajuda o leitor a entender as várias “histórias da salvação” que acompanham a ocular da exegese moderna. 

 

E expõe com clareza as diversas releituras feitas ao longo do tempo: Javista, Eloísta, Deuteronomista, Sacerdotal e outras. Essa releitura não cobre apenas o Primeira Testamento, mas também o Segundo, com todas as interpretações que foram sendo favorecidas. 

 

É todo um exercício de ler o passado através do prisma do presente. Dentre tantas descobertas bonitas, a percepção de que por trás do fenômeno literário da releitura bíblica revela-se uma determinada visão da vida e da história. E também o reconhecimento de que a história do passado favorece um sentido sempre renovador, que nunca se esgota numa interpretação específica.

 

Uma das conclusões tomadas por Mesters nesse capítulo é fundamental: “Não basta transmitir a verdade certa, sem se comprometer com ela. É necessário ser a verdade, ´encarná-la` na vida e na história. Não é a verdade que fala por si, mas é a vida, informada e transformada pela verdade, que fala e se constitui revelação e apelo de Deus”. 

 

A fé e a vida formam uma unidade inseparável: “A expressão da fé é a vida do povo de Deus”. Quando se perde esse vínculo, dificulta-se qualquer acesso ao sentido da fé para a vida. O desafio está em apresentar de tal forma o passado bíblico que ele possa ser luz autêntica para o caminho presente. Com isso, podemos acessar um horizonte novo e enriquecedor, que é a “certeza de fé que Deus está conosco na nossa caminhada”.

 

Na quarta partedo livro, Mesters dedica-se ao tema da porta de entrada no mundo da Bíblia. Dedica-se, em primeiro lugar, a buscar superar o caminho tradicional com que se tratou o sentido literal da Palavra. Mudanças importantes foram ocorrendo ao longo da história nos processos de interpretação da Bíblia. E agora, a partir da América Latina e do mundo dos pobres, capta-se uma ocular distinta que nos ajuda a situar diante do modo vivo e familiar com que o povo simples se coloca diante da Bíblia. 

 

Trata-se do desafio novo de redescobrir a porta de entrada no mundo da Bíblia a partir da sensibilidade dos pequenos. Há que compreender que o mundo da Bíblia é um mundo familiar a nós mesmos, mesmo sabendo da história antiga que propiciou sua tessitura. 

 

Como diz Mesters, quem não encontrar na Bíblia um mundo familiar “que lhe lembre a sua terra e os seus problemas, esse dificilmente criará dentro de si a abertura e a simpatia de que se precisa, para poder apreciar no seu justo valor as coisas boas e más que existem por lá”. Daí ser a tarefa daquele que irradia essa luz saber indicar para os ouvintes “o caminho que leva até à praça, apontar o banco e permitir um encontro com muitos amigos que moram por lá”.

 

Ao final do livro, Mesters retoma a história de Riobaldo em suas artimanhas para acessar o real, e reconhece uma identificação particular com ele. Assim como Riobaldo, Mesters também farejou o tempo em busca de uma “flor sem defesa. Sublinha que foi assim, como o jagunço de Rosa, tentou rastrear o caminho até encontrar a flor que soltou um perfume singular: 

 

“Na medida em que eu ia rastreando o perfume da ideia ligeira pelo fundo dos matos do sertão e da Bíblia, fui me sentindo como o sertanejo, cada vez mais pobre, muito pobre, ´muito pobre coitado`. E quando cheguei no lugar onde mora a flor, tive que dizer a mim mesmo: ´Eu quase que nada sei` , e comecei a ´desconfiar de muita coisa` que sempre me ensinaram”. Foi quando então descobriu o “outro lado” de suas ideias, facultado pela auxílio popular.

 

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Revendo a Teologia Pé-No-Chao de Clodovis Boff

Revendo a Teologia Pé-No-Chão de Clodovis Boff

 

Faustino Teixeira

PPCIR/UFJF / IHU / Paz e Bem

 

 

Há dias falei aqui de um livro que me marcou muito, de Frei Carlos Mesters: Seis dias nos porões da humanidade. Hoje queria lembrar de outro livro muito presente em minha formação teológica, de um amigo querido, que retornou ao Acre e vive lá como pároco junto ao povo que sempre o encantou.

 

Trata-se do livro de Clodovis Boff: Teologia Pé-No-Chão, publicado pela Vozes, em 1984. Quando saiu publicado o livro eu estava em Roma, no doutorado, e foi uma alegria imensa quando recebi o livro de meu irmão querido, Pulika, que mandou a obra de Brasília para mim, e dizia na dedicatória que era para me acompanhar nos “momentos sofridos junto aos rios da Babilônia”.

 

A apresentação do livro é do cardeal Aloísio Lorscheider, grande profeta dos anos 1970-1980. Ele diz no seu texto: “Parece-me que este livro inaugura na literatura teológica, algo de novo. É um novo modo de fazer teologia e colocar problemas cotidianos da vida nem sempre de fácil solução. É também um novo modo de viver a vida cristã, considerando tudo à luz da Palavra iluminadora e orientadora da vida”.

 

Clodovis tinha voltado de seu doutorado em Louvain, na Bélgica, e era meu professor na PUC-RJ. Ele fazia algo de extremamente bonito e ousado na época. Dividia a sua caminhada entre o Acre e o Rio de Janeiro (numa paróquia do Rio Comprido). Foi um grande privilégio na minha vida ter sido aluno de Clodovis Boff, logo depois de seu doutorado, com uma brilhante tese sobre o Método da Teologia da Libertação.

 

Foi sempre um pensador brilhante, além de um homem de fé exemplar. E continua sendo. Junto a ele tive aprendizados únicos, não só com respeito à teologia, mas sobre o modo nobre de ser na vida, sempre pontuado pela alegria, gratuidade e compromisso com os pequenos. 

 

No prefácio de seu livro, diz: “Saiba que nunca me vi mais provocado à teologia que no meio do povo. Muito mais que nas salas de aula e nos congressos teológicos”. 

 

Aliás, algo que recordo com muito emoção é a presença de Clodovis nos Intereclesiais de CEBs, sentado nas arquibancadas de cimento armado, vibrando com cada fala, oração, ritual e expressão viva do povo naqueles ambientes de festa, luta e oração. Era encantador ver a sua expressão de alegria ao estar ali, onde reconhecia ser o seu lugar ideal.

 

Ainda na sua apresentação, Clodovis sublinha a importância da atenção ao que “existe e lateja no coração da vida”. Isso também aprendi com ele. Conclui seu texto inaugural dizendo que o que busca no livro é mostrar o que são as CEBs no seu cotidiano, uma verdadeira Igreja de base. E complementa dizendo que essa “Igreja ´nova` ou ´popular` de que se fala é muito mais tradicional do que se pensa”.

 

E as páginas do livro correm apresentando-nos o cotidiano das pequenas comunidades “perdidas” no mais extremos rincão do país, no interior do Acre, com sua vida e generosidade. 

 

No primeiro capítulo, trata de muitos temas. Um deles, a fé na transfiguração do mundo. Sinaliza que a fé, decididamente, “não é propriamente uma força de transformação das estruturas do mundo. A fé é antes uma luz que transfigura o sentido do mundo”. Indica que o mais importante para o cristão não são os grandes gestos em sua publicidade, mas “a humildade, a fidelidade ao Senhor do Reino na prática cotidiana”. E a política, acrescenta, só tem sua razão de ser, na medida em que é capaz de promover a “conservação da vida”.

 

Fala também da beleza e coragem dos agentes de pastoral, que saem de longe, às vezes de países ricos da Europa ou Estados Unidos, para dedicar-se a uma vida juntos aos pobres nos “porões da humanidade”. Fala da opção deles por uma vida sacrificada, trabalhando com gratuidade em regiões “tão difíceis” e áridas, como no Acre. Não o fazem por mero prazer ou interesse, mas por algo mais nobre, que habita “a ordem do Mistério”. O mesmo Mistério que fascina o monge é aquele que faz caminhar o missionário.

 

Em seu aprendizado descobriu algo fundamental: a importância da pastoral levar muito a sério “os recursos religiosos próprios do povo”, pois “quem ignora o povo é ignorado por ele”.

 

Já sublinhava naquele tempo a importância essencial de “estender a Igreja para a mata”, de “descentralizar a vida pastoral” e “´popularizar` as responsabilidades religiosas na forma de ministérios”. Um jeito de ser que pudesse de fato “envolver mais a base”, e respeitar inclusive suas formas simples e inéditas de celebração.

 

No ambiente popular, Clodovis descobriu tanta beleza: a humildade profunda, o senso de honestidade, a coragem imorredoura, e também a hospitalidade. Ele diz: “Aqui a vida é mais vida, o homem mais homem e Deus mais Deus”.

 

Em rico momento de sua reflexão lança uma interrogação que é capital: qual o capital político de um trabalho feito em lugares assim tão distantes e longe da apreciação pública ? E responde: “É só mesmo sub specie aeternitatise não sub specie historiae, que esta realidade se torna compreensível. Ou seja, aqui não é questão de marxismo, mas de cristianismo puro e duro”.  Para tanto, diz, é preciso “ter fé e fé nua, como a dos místicos. Passar por estas florestas é como atravessar a ´noite escura da política`.”

 

No segundo capítuloadentra-se no coração da mata. Vem tocado pela força e profundidade da fé do povo, de sua oração colada no chão da vida. Fala sobretudo da riqueza do olhar dos pobres que se voltam com ternura para as imagens dos santos: “Parecem conversar com uma pessoa viva”. Lembra como que para o povo simples “a religião não é o mundo dos mistérios, mas das evidências”. Daí se escandalizarem quando esbarram em alguém que se diz ateu confesso. E a fé que professam é radicalmente “da ordem visível”. 

 

Pontuando a importância do trabalho dos agentes de pastoral, Clodovis sublinha que “a fé e comunidade não são cogumelos que cresçam de modo mágico. Necessitam de semeação e depois cultivo. O espontaneísmo é a teoria da ignorância”. Trabalhou nesse capítulo o processo lento e fontal de formação das comunidades eclesiais populares.

 

No terceiro capítulo, retoma o tema do trabalho diuturno junto às comunidades no coração da mata. Fala aqui da importância dos momentos de oração, que constituem alimentos essenciais para lidar nesse trabalho difícil. A missão, diz Clodovis, nunca vai “sem oração”. A prática só se revela grande quando informada pela alma interior. É o Espírito, diz, que explica a razão desse compromisso. E ele “que faz a gente andar por essa matas”. Ele “é um vento, um chamado, um interesse, um espírito”.

 

Tudo também vem envolvido pelo calor da Palavra e vigor dessa Presença de Deus. E acrescenta que boa mesma é a Escritura “que produz uma palavra viva e criativa”. A verdadeira leitura da Escritura deve ser espiritual, ou seja, “do espírito ou do sentido anterior, que está na legra, como o coração no corpo”.

 

O novo povo de Deus, diz Clodovis, está simplesmente aí, “nesses analfabetos e desconhecidos, que dão de si pela causa do Evangelho e de seus irmãos, pobres como eles”. O método é simples, e está tatuado no corpo: o confronto iluminador e natural de Evangelho e vida. Porém, para entender isso, tem que ir lá onde o povo está, “pois é lá o lugar privilegiado, o mirante para se entender a vida do povo”.

 

No quarto capítulo, Clodovis trata do tema das CEBs, como a do povo do Apocalipse. Ele vê esse livro como essencial para entender o mundo das CEBs: “É o único livro do Novo Testamento que faz uma leitura política sistemática da história. Por isso mesmo, é um livro excelente para abrir as comunidades às dimensões políticas da fé e da Igreja no mundo”.

 

No trabalho feito pelas CEBs, a conscientização é um eixo modelador. É ela que favorece “o primeiro acesso crítico à realidade social”. A atividade pastoral desabrocha numa vida comprometida com a causa popular.

 

No quinto capítulo, o tema é a comunidade que caminha com suas próprias pernas. Clodovis fala aqui sobre os eixos das comunidades e sua nova forma de ser Igreja, uma Igreja de escuta e participação. Sublinha que ali, no meio dos pobres do Acre, descobriu uma forma nova de fazer eclesiologia, não mais a partir de algo abstrato, mas “com o fenômeno eclesial se processando debaixo dos olhos”.

 

A vida eclesial nasce ali não de cima para baixo, mas a partir da própria perna desse povo simples. É por aí, diz Clodovis, “que o trabalho pode começar, e sempre com eles e a partir deles”. E todo cuidado é pouco para estar atento à sensibilidade popular. Não exigir demais, como no caso das regras para os sacramentos. Não há porque “começar com exigências além das tantas que eles já têm”. O compromisso maior é o de mostrar a eles “que Deus está do lado deles e nós também”.

 

No sexto capítulo, uma reflexão bonita sobre a fidelidade dos longos caminhos. A fidelidade vem aquecida por um fogo singular, que brota do coração. Diz Clodovis: “Não basta esclarecer, é preciso inflamar. Como Deus, que nos dá sua Revelação, mas sobretudo sua Graça”. 

 

Nem sempre isso ocorre na vida das comunidades. Há também momentos de “baixa definição”, de desânimo e mesmo depressão. Tudo isso pertence ao ritmo da vida: “Não precisa que a comunidade seja sempre empolgada, entusiástica, mas que seja sempre fiel. Isso é que é preciso”. A força de uma CEB não está no medo, mas na dinâmica de sua fé e na coragem de lidar com os obstáculos.

 

No sétimo capítulo, vem tratado o tema da diaconia da libertação. São abordados os temas dos ministros dos enfermos ou agentes da saúde, dos ministérios e outros temas. Um tema candente que se descortina na reflexão de Clodovis: a dor de uma comunidade adulta que não pode celebrar por carência de ministros. 

 

Ele insiste: “Como acompanhar as comunidades que estão se tornando adultas sem lhes abrir a possibilidade de terem seus ministros adequados, tal o ´ministro da Ceia`”. Esse é um tema que vem sendo tratado aqui no Brasil cada vez com mais veemência.

 

Clodovis trata também nesse capítulo da qualificação necessária aos agentes de pastoral. E um trabalho que exige que os agentes sejam não apenas “quadros de ação pastoral”, mas também “quadros da vida eclesial”. Daí o cuidado necessário com a formação espiritual dos agentes. A fé, diz Clodovis, “é uma força que impede a própria política de se alienar”. Há que criar condições para uma “educação de fé específica”: de formação e nutrição da mística cristã.

 

O trabalho pastoral no campo social tem que ser inteligente e munir-se de artimanhas bem específicas. Saber trabalhar “na barriga do monstro”. É necessário ter uma teoria correta e uma visão correta. Sublinha Clodovis: “Importa entender que o espaço oficial não é monolítico. Está cheio de contradições e brechas”. É nelas que se deve atuar, com jeito, paciência e eficiência. No espaço oficial “existem fendas que podem ser ocupadas pelos oprimidos e que podem se alargar”. Essa é a sabedoria.

 

No oitavo capítulo, entra-se em cheio no tema da espiritualidade encarnada. Essa espiritualidade visada é uma espiritualidade comunitária, e também encarnada, incardinada no povo. Essa espiritualidade vem inspirada e atuada pela utopia de Jesus, que e a utopia do Reino de Deus. Mais do que nunca, diz Clodovis, se faz necessário retomar o kerygma originário. 

 

Sem o recurso do Reino, e sua envergadura teológica, “fica sempre o perigo de se reduzir a fé a uma de suas dimensões”. Não se trata de uma espiritualidade qualquer, mas sim de uma espiritualidade “aberta ao povo”, comprometida, mas envolvida numa “relação pessoal profunda com o Mistério, que é também pessoal”. O desafio esta em “liberar mais humanidade”. Se não houver cuidado com essa fonte, o risco é da própria pastoral ir “secando até desaparecer”.

 

No nono capítulo, Clodovis avança na reflexão da Ceia do Senhor. Começa falando da força das mulheres animadoras das comunidades: de sua raça e espiritualidade funda. Nada mais do que “mulheres fortes de um povo forte”. O autor busca resgatar a imagem da Ceia vivida nos primeiros tempos da comunidade cristã, e que serve de modelo para as CEBs. 

 

Diz ao final que as CEBs poderiam exercer “várias modalidades de celebração da “Ceia do Senhor, desde a missa com o povo de Deus, que é a fórmula tradicional e hoje praticamente única, até à ´fração do pão` tal como se celebrava nas primeiras comunidades cristãs”. Sugere um caminho novo, ousado e bonito: de uma “Eucaristia popular” numa “Igreja popular”.

 

No décimo capítulo, o tema da luta em favor da justiça vivida nas comunidades. Trata-se de uma luta empenhativa, tomada por um clamor evangélico primordial. Há todo um desafio em aberto, no sentido de um trabalho humilde de “semeação”. Um trabalho que busca vencer obstáculos difíceis como o da distância entre as comunidades, das precárias condições materiais e sociais, bem como a dispersão. 

 

No décimo primeiro capítulo, o objeto é a Igreja em construção. Clodovis relata aqui alguns dos trabalhos em que ele se viu envolvido ao longo de sua atuação no Acre. Fala da vitalidade que encontrou em tantas comunidades dispersas pela floresta, da alegria do povo em poder se dedicar com alma a “algo maior do que a vida”. E nos lembra que “o sentido da vida é a vida do sentido”. Fala ainda no capítulo da beleza em ver que esse povo simples começa a narrar sua história. Os pobres começam “a falar e escrever por própria conta, com sua boca e mão próprias, sem intermediários, representantes ou defensores”. Aparecem, finalmente como “criadores de uma Palavra que se impõe por sua força intrínseca”.

 

Descreve também no capítulo a linda trajetórias de animadores populares, como seu Raimundinho, místico popular e de tantos outros ministros leigos. E conclui o livro dizendo que sempre considerou exemplar a pastoral popular, movido por uma “qualidade excepcional”, na linha de um caminho libertador singular e criativo. Suas últimas palavras: “Já sinto pena em ter que deixar toda essa gente em cujo coração se enraizou essa afeição tão bonita. Não se ama para ser feliz; ama-se, então se é feliz. A felicidade não é de justiça; é de graça”.

 

 

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

O outro lado da montanha

 O outro lado da Montanha

 

Faustino Teixeira

UFJF / IHU / Paz e Bem

 

Para mudar a paisagem,

Basta mudar o que sentes”

 

(Rûmî)

 

Lendo hoje cedo um pequeno trecho de Davi Kopenawa extraído de seu livro, A queda do Céu, veio-me a inspiração para falar um pouco do Movimento das Montanhas, da vida que habita nas Montanhas. Elas não são simplesmente objetos geográficos, mas vida pulsante, que transforma vidas, como no caso da famosa montanha de Arunachula, que abrigou tantos gurus. Essa montanha mesma foi o guru de Henri le Saux, em sua experiência asiática. 

 

Thomas Merton dizia em seu Diário da Ásia (livro póstumo) que se tivesse que ser um eremita na Índia, gostaria de viver algo semelhante ao que viveu Le Saux (Swami Abhishiktananda). A vida contemplativa para Merton era essa “atenção” voltada para o Aberto, um radical “espaço de liberdade”. A contemplação é a experiência de um “temps vierge”, entendido não “como um vazio a preencher ou um espaço intocado a conquistar e violar, mas um espaço onde se possa usufruir das próprias potencialidades e anseios e da presença de si-mesmo. O tempo da pessoa”.

 

Na Ásia Merton encontrou a medula de si mesmo. Ele mesmo reconhece, quando esteve em Polonnaruwa, diante daquele enorme Buda reclinado, todo de pedra, que ali experimentou algo de novo, que nunca tinha sentido antes em sua vida: “tal senso de beleza e de força espiritual fluindo juntas em uma iluminação estética”. Reconheceu que ali, diante de Buda, conseguiu ver “aquilo que obscuramente procurava”.

 

Isso me faz lembrar Lévi-Strauss em Tristes Trópicos, quando diz já ao final do livro que aquilo que ele mais aprendeu com os mestres que escutou ao longo da vida não são senão “fragmentos de lições que, unidos uns aos outros, reconstituem a meditação do Sábio a pé da árvore”. É uma experiência única, a “única presença durável”, que faz ruir “a distinção entre o sentido e a ausência de sentido”.

 

Nos estudos que venho fazendo com antropólogos queridos, como Anna Tsing, Philippe Descola e Tim Ingold, capto uma bela retomada do animismo, compreendido em seu mais alto significado. Como diz tão bem Tim Ingold, para quem a retomada do animismo indígena significa a “reanimação” da chamada “tradição ocidental do pensamento”, “onde quer que haja vida há movimento”. Tudo está vivo ao nosso redor: o sol, as árvores, o vento. Diria que também as montanhas. Num de seus livros fantásticos do Shôbôgenzô, Dôgen sublinha que aqueles que não são capazes de ver o movimento das montanhas, são igualmente incapazes de compreender o movimento de si mesmo (Sansuikyô – Montanhas e Rios como Sutras – no Shôbôgenzô).

 

Daí Merton ter se encantado com as Montanhas em sua “despedida” da vida na Índia, que foi, na verdade, a última etapa de seu itinerário espiritual, e talvez a decisiva. Ao se ver diante da linda Montanha de Kanchenjunga, reconheceu que existe ali um “outro lado” que escapa à ocular dos turistas e fotógrafos. Existe, diz ele, “o outro lado que nunca foi fotografado e transformado em cartão postal. É o único que vale a pena ver”. Diz Merton que uma câmera “não pode reconciliar uma pessoa com coisa alguma. Nem pode ver uma verdadeira montanha”.

 

E finalizo com a maravilhosa frase de Davi Kopenawa, que inspirou esse meu post:

 

“Gostaria que os brancos parassem de pensar que nossa floresta é morta e que ela foi posta lá à toa”.

 

O grande Rûmî, dizia em poema, que há um mundo para além das palavras, um mundo impermeável às palavras. Um mundo onde "nem a vida teme a morte, nem a primavera dá lugar ao outono". Um mundo que é transfigurado. O caminho místico é aquele em que o buscador lava suas mãos e rosto nas águas deste lugar.

 

 

A centralidade do despojamento e da gratuidade

 A centralidade do despojamento e da gratuidade


Faustino Teixeira

PPCIR-UFJF / IHU / Paz e Bem

 
Esse pequeno texto insere-se num rico debate que se dá num grupo de ZAP criado para trabalhar o tema das Teias Místicas. Trata-se de um grupo de 6 pessoas envolvidas no debate da Mística e Filosofia. O que segue está na dinâmica de um debate do grupo:

Ainda sob o profundo impacto da parte final da fala do Drawin em torno de Heidegger. Esse amigo mineiro foi de uma clareza única ao abordar a reflexão de Heidegger sobre o fim da filosofia, e o começo do filosofar. Estamos diante de uma “nova filosofia”, não há dúvida, ou, como diz Drawin com pertinência, diante do “novo começo do pensamanto”. Um pensamento que agora se dá NA experiência, em profunda consonância com a experiência. E para essa linda abertura, Heidegger recorreu à poesia e mística. E aqui a referência ao clássico dístico de Silésius: “A rosa não tem porque: floresce porque floresce” (PQ, Livro I, 289). Shizuteru Ueda, filósofo da Escola de Kioto ainda vai mais além, tentando transcender o porque (no porque ainda tem muita filosofia). Ele diz: a rosa floresce “como” floresce. De certa forma ele aqui recupera esse elemento tratado por Heidegger e recuperado por Drawin, quando fala do “há” em vez do “é”.
 
Em seu livro, “O Zen e a Filosofia”, Shizuteru Ueda comenta a passagem do evangelho que fala dos pássaros no céu e dos lírios no campo. Ele contesta a tendência cristã de querer explicar as coisas (o “é” em vez do “há”). Não basta dizer, tem que explicar. É isso que o Zen contesta. Para o Zen, o fundamental é ser tocado pela experiência: a “experiência imediata” que decorre do ser tocado e golpeado pelas coisas, pelo "canto das coisas", como gosta de dizer Rilke. O mestre Zen, diante da passagem evangélica, diria apenas: “Olhai os lírios no campo e os pássaros no céu”... e basta! Sem ulteriores explicações. No mesmo livro, reagindo a Silesius, Ueda diz preferir o “como” ao “porque”: “As flores florescem como florescem”.
 
Ao final de sua fala, Drawin entra então no tema do cuidado, e de forma exemplar, respondendo também à Márcia. Gostei muito da ideia de cuidado como “acolhimento do dom do ser”. Como na reflexão de Ueda sobre a tradição Zen, que fala simplesmente em “olhar” o lírio no campo. Heidegger aqui fala em simplesmente viver a serenidade de quem acolhe o dom do ser, ou simplesmente deixa ser.
 
Aí entra a questão do Gelassenheit, que alguns traduziram no português por “livramento”, como também “desapego”. Veja Eckhart e também Suso. Trata-se daquele bonito silêncio que acompanha a interioridade desde sua profundidade. Merton fala sobre Gelassenheit no seu diário, em 13 de novembro de 1966. E ele o define assim: "deixar rolar e largar-se". E continua: "não ser estorvado por sistemas, palavras, projetos. E no entanto ser livre nos sistemas, projetos. Não tentar se afastar de toda ação, toda fala, mas manter-se solto, gelassen, se, se estorvar nessa ou naquela ação". Diz Merton, o erro dos contemplativos foi justamente querer buscar essa "consciência" de si mesmos, que no fundo ainda traduz aprisionamento. Há que largar-se, deixar-se tocar pelo estupor do dom de simplesmente estar aqui.

Trata-se daquela serenidade de que fala Heidegger no Caminho do campo, a serenidade que se recebe do caminho do campo. Trata-se de uma serenidade “que sabe” e que é “porta para o eterno”. Com essas explicações dadas pelo mestre Drawin, conseguimos alcançar a radicalidade do que significa pastorear o ser. O homem, diz Heidegger na Carta sobre o Humanismo, não é o “amo” e “senhor” do ente, mas o “pastor do Ser”.
 
Todo esse debate me remeteu ao diário íntimo de Merton, sobretudo o tempo em que ele esteve em seu eremitério, nos últimos anos de sua vida. Um tempo que coincide também com a sua descoberta do amor erótico.
 
Naquele período, por volta de 1964-1965, Merton se deu conta da importância essencial de auto-revisão e crescimento. É quando ele diz que suas ideias estão em contínuo movimento. Ele vive ali uma experiência de profunda alegria, agora livre dos apegos do convento. Ali ele se dá conta que o “universo é sua casa”, e que se isto não ocorre, ele não é nada. É o período onde descobre sua verdadeira vocação, “desde dentro”. No eremitério ele consegue, finalmente, viver uma vida de “baixa definição”, sem a rapidacción do dia-a-dia. Ele diz que ali em seu eremitério ele apenas vive. Ele diz: “O que eu faço é viver”. Indica que se casou “com o silêncio da floresta”, sempre atento agora ao “ponto virgem” que se desvela no início de cada manhã, aquele pontinho de nada que é a razão do próprio ser. 

Ele percebe claramente isto em seu “trabalho de cela”, que se realiza como dinâmica para deixar-se envolver pela plenitude do todo: uma forma de evitar que os “sons” do Mistério escapem por alguma brecha. Em seu eremitério ele capta o verdadeiro significado da contemplação que é, simplesmente, “estar presente”.
 
Curioso é que ele leva para sua vida eremítica os livros de Eckhart e as Elegias de Duíno. Para ele, Rilke significava a sua própria vida, seu ser e destino. E com Eckhart conseguir encontrar o que havia de melhor para “restaurar” sua continuidade.
 
E de forma magnífica, e aberta, Merton reconhece que seu ser vem animado por um nada magnífico: o mesmo nada que assolou Paulo depois da queda no caminho de Damasco. Paulo, depois que se levanta, não vê senão o nada. Merton se entendia como uma “colcha de retalhos”, um monge pontuado por perguntas, dúvida e obsessões; um monge que se redescobre gravitando em tono do silêncio da floresta.

A apófase do desejo

 A apófase do desejo

 

Faustino Teixeira

PPCIR / IHU / Paz e Bem

 

 

Criamos no ZAP um pequeno grupo de seis pessoas para tratar temas ligados à Filosofia e Mística. O grupo se chama: Teias Místicas. Dele fazem parte amigas e amigos queridos: Eduardo Losso, Marcus Reis, Marcia Rivas, Maria José Caldeira do Amaral, Carlos Drawin e eu. Os debates são sempre muito ricos e diversificados. Partilho com vocês a postagem que fiz hoje, 17/02/2023, nesse início de amanhecer:

 

Em primeiro lugar, queridas e queridos, adorei todas as últimas reflexões postadas, tanto do Eduardo Losso – que elogiou minha experiência-cume rs rs – como as distintas postagens do Marcus Reis, inclusive aquelas comentando a defesa que ele participou. Adorei mesmo.

 

Na última postagem do Marcos, ali pelo minuto 2:07, ele fala que nunca viu um texto monástico que falasse contra o desejo, ou seja, um movimento contra o desejo. Eu cheguei a trabalhar essa questão não propriamente entre os textos de monges, mas de místicos como Porete e Eckhart. 

 

Porete, antes de Eckhart – e certamente ela exerceu influxo sobre ele – falava sobre a “apófase do desejo”. Vou partilhar aqui com vocês um trecho do meu prefácio à tradução brasileira do livro de Porete, sobre as almas aniquiladas, traduzido por minha ex-orientanda, Silvia Swartz. Eu digo:

 

“No caminho gradual de sua libertação, a Alma deve passar por três mortes: a morte do pecado, da natureza e do espírito. 

 

Nesse itinerarium, a Alma deve percorrer sete estados fundamentais. 

 

No primeiro, que corresponde à morte do pecado, a Alma vem tocada pela graça de Deus e busca observar seus mandamentos, sobretudo o amor a Deus e ao próximo. Mas ainda vive segundo o imperativo da Razão (M118:10-16). 

 

No segundo, que corresponde à morte da natureza, a Alma vive na dinâmica de imitação de Cristo e na observância dos conselhos evangélicos e das virtudes, visando uma vida espiritual de despojamento (M118:30-40). 

 

No terceiro estado, a Alma vem aquecida no seu desejo de puro amor. Para tanto, faz-se necessário romper com a centralidade da vontade e radicalizar o despojamento do eu: “É necessário pulverizar-se, rompendo-se e suprimindo-se, para alargar o lugar onde Amor gostaria de estar, e aprisionar-se em vários estados, para liberar-se de si mesmo e alcançar o seu estado” (M118;65-68). 

 

No quarto estado, a Alma vive um momento de delicadeza especial, atenta aos toques do Amor dileto. Concentra-se agora no exercício da meditação e contemplação. É um momento de embriaguez espiritual, quando a visão vem embaralhada pela claridade do Amor (M118:70-90). 

 

No  quinto estado se dá a mudança mais essencial, que corresponde à terceira morte. É sobre ele que mais fala o Miroir.  A Alma vem agora “raptada” pela luz divina e toma consciência de que Deus é e que ela não é. Trata-se de uma experiência de “centelha” divina, que se abre e fecha, acenando para a Alma os mistérios do sexto estado. 

 

A obra da centelha “não é senão a demonstração da glória da Alma. Isso não permanece por muito tempo em nenhuma criatura, exceto somente no espaço de seu movimento” (M58:32-34). 

 

A Alma alcança o mistério da profundidade e da humildade: “Agora essa Alma é nada, pois vê seu nada por meio da compreensão divina, que a faz nada e a coloca no nada” (M118:136-138). 

 

É o momento em que a Alma “descansa nas profundezas, onde não há mais fundo, e por isso é profundo. Essa profundeza lhe faz ver muito claramente o verdadeiro Sol da altíssima bondade, pois ela não tem nada que lhe impeça essa visão” (M118:153-156). 

 

O sexto estado marca um momento de perfeição espiritual, quando a Alma deixa de ver a si mesma, mas é Deus mesmo “que se vê nela por sua majestade divina” (M118:184-185). 

 

Tudo o que existe passa a ser percebido como diafania de Deus.

 

A Alma está agora “liberada de todas as coisas”, não consegue ver nada que não seja Deus mesmo: “Aquele que é, no qual todas as coisas são” (M118:186-187). Mas essa alma “liberada” não é ainda a alma ´glorificada`. A alma só vive sua glorificação no sétimo estado, que acontece na glória eterna.”

 

Lembro-me bem que tratei com calma todo esse movimento da alma num curso aqui no nosso programa de pós-graduação (PPCIR) em que o livro de Porete foi o objeto central. Um curso de um semestre. Fomos debatendo parte por parte a tradução feita com Sílvia da única obra escrita por Porete, que foi objeto de sua condenação à fogueira.

 

Numa passagem clássica do livro de Porete, ela diz os rios perdem o nome quando chegam no mar: Como "um corpo de água que flui para o mar (...). Quando essa água ou rio retorna ao mar, perde seu curso e o nome com o qual flui em muitos países realizando sua tarefa. Agora ele está no mar onde repousa".

 

Em outro curso sobre Eckhart, abordei os sermões alemães, que são simplesmente magníficos para entender esse processo. 

 

Cito aqui dois sermões que me marcaram muito. O primeiro é super conhecido, e aborda a questão da pobreza (Sermão Alemão 52 – SA 52). O outro é o Sermão 83. Eckhart está tratando aqui no Sermão 52 da bem-aventurança dos pobres. Ele diz que o homem pobre é aquele “que nada quer, que nada sabe e que nada tem”. Assinala que se o humano quer de fato alcançar a pobreza verdadeira deve “estar vazio de sua vontade criada como ele era quando ainda não era”. 

 

Eckhart diz que a bem aventurança não está no conhecer, nem mesmo no amar, mas situa-se em algo que já ocorre antes: “Algo na alma do qual efluem conhecer e amar”. Complementa dizendo que “quem aprende a conhecer esse ´algo` sabe onde está a bem-aventurança”.

 

Quando Eckhart fala do pobre que nada tem, tocamos, finalmente a questão da vontade e do desejo, ou melhor, da apófase do desejo. O homem pobre é aquele que nada tem (nem mesmo mais o desejo). Ele é assim tão pobre que não quer mais sequer “a vontade de Deus”. Essa é a “pobreza mais extrema”. Diz Eckhart no sermão 52, e convoca os leitores a prestarem bem atenção,  que “o homem deve ser tão vazio de todas as coisas e todas as obras, tanto interiores como exteriores, a ponto de ser um lugar próprio onde Deus possa atuar (...). Se Deus ainda encontrar no homem vazio de todas as criaturas, de Deus e de si mesmo, um lugar para atuar, enquanto isso ainda acontecer, o homem ainda não é pobre na extrema pobreza”. 

 

Sempre achei magnífica essa passagem e super exigente... quase impossível de ser vivida: seria a expressão máxima do despojamento: livrar-se do lugar mesmo de presença de Deus dentro de si. Se você ainda tem um lugar de Deus dentro de si, você ainda não encontrou a libertação. E vamos dormir com um barulho desses. São coisas assim fantásticas da mística. 

 

Digo a vocês, amigas e amigos queridos, que foi Merton o que primeiro me ajudou a entender essa passagem magnífica de Eckhart. Isto no seu livro precioso: Zen e as aves de rapina. Na edição que tenho, da editora Civilização Brasileira (1972), está na página 14. Ele está tratando ali da questão do “esvaziamento”. Cita também Cassiano, quando fala em “pureza de coração”, ou “virgindade espiritual”. 


Quando destaca em sua reflexão a presença de Eckhart, reconhece que a verdadeira pobreza requer a superação mesma de um “lugar” para Deus dentro de si, onde ele pudesse atuar. O verdadeiro despojamento, nos liberta de Deus: “Deus, livra-me de Deus”. Para Eckhart, “onde o homem ainda contém em si lugar, ali ainda conserva diferenciação. Por isso peço a Deus que me esvazie de Deus; pois meu ser essencial é acima de Deus”.

 

Nessa perspectiva, amigas e amigos, de todos nós desse grupo o mais místico é o Eduardo, que sempre esteve despojado desse “lugar” para Deus dentro de si. Por isso Eckhart foi questionado como o grande provocador do ateísmo mais puro. Diz ainda Eckhart, que também me faz lembrar Rilke: “Se eu, porém não fosse, também ´Deus` não seria” (quem sabe uma defesa mística do antropocentrismo rs rs).

 

Mas quero ainda dizer duas coisas: uma sobre Angelus Silesius, sobre o qual também escrevi a pedido de Marco Lucchesi, e depois mais um trecho de outro sermão de Eckhart. Primeiro Silésius, tomado de meu texto:

 

“Entre os passos essenciais sublinhados por Silesius no caminho da busca espiritual está o desapego e o despojamento. 

 

É um tema recorrente no Peregrino Querubínico. A noção de Abegescheidenheit, entendida como desprendimento, vem também indicada por Silesius como condição para a liberdade e a fruição do mistério. 

 

Trata-se de um “recolhimento” de si para lidar com as coisas de forma mais livre e serena. O acento nesta perspectiva indica como Silesius foi dentre os místicos modernos aquele que melhor compreendeu as intuições eckhartianas.

 

            “Os santos tanto mais se embriagam pela divindade de Deus

            Quanto mais neles se perdem e se afundam” (PQ I, 210)

 

Para esse mergulho em Deus é necessário vencer a barreira do eu. 

 

Quando se rompe o egocentrismo o mundo pode ser admirado com os olhos de Deus. Mas há que lutar contra esse inimigo mais duro, e “que mais lentamente se vence” (PQ III,233). Mas quando se supera essa barreira, o coração “recebe Deus” e diante dele “se abre como a rosa” (PQ III, 87).

 

Outro obstáculo no caminho espiritual é o apego e a fixação nas mediações. São tais vínculos que dificultam o acesso ao “trono de Deus” (PQ I, 143). O místico silesiano ousa mais alto: 

 

            “Fora com as mediações! Se devo olhar a minha luz,

            Nenhum muro deve se levantar diante do meu olhar” (PQ II, 43)

 

O desapego é também para Silesius o modo de ´capturar` Deus (PQ II, 92), mas isso requer uma dinâmica espiritual de ´alargamento do coração (PQ II, 106). 

 

Mediante esse destacamento de si, o sujeito pode operar passivamente em Deus, ou como indica Silesius, com uma expressão típica da sua mística, “sofrer Deus” (Gott Leiden) e “nele repousar” (PQ V, 207; PQ IV, 197). 

 

O destino do humano, sublinha Silesius, é naufragar no Mar da Divindade (PQ IV, 139). Para ele, um bem-aventurado naufrágio. 

 

Para os que trabalham o tema da mística nas distintas tradições religiosas, o Mar ganha uma simbolização peculiar, enquanto sinal fundamental da Divindade. O tema da união da alma com Deus, como a gota no Mar, vem retomado com frequência na obra de Silesius. Ele fala em “submergir” o eu na Divindade (PQ I,6) , em morrer “antes de morrer” (PQ IV, 77), em “morte mais ditosa” (PQ 1, 28). 

 

Tudo para expressar esse desapego essencial. Enquanto o anjo contempla a Deus “com olhos serenos”, aquele que vive o despojamento pode ainda mais, abandonando-se inteiramente a Ele (PQ I, 164). Esse abandono em Deus faz parte do anseio mais sagrado do humano, pois traduz o encontro com sua razão de ser: 

 

            “Deus é meu espírito, meu sangue, carne e ossos:

            Como então posso não ser todo nele transformado?” (PQ I, 216).

 

Para finalizar, retomo aqui outro sermão alemão de Eckhart, o de número 83, que aborda uma passagem da carta aos Efésios (Ef 4,23). Comentando um clássico, mestre pagão, Eckhart sublinha que tudo o que dizemos sobre as causas primeiras traduzem não o que elas são, mas o que somos nós mesmos. Por isso, tudo aquilo que dizemos sobre Deus, não revela o que Deus é. Daí ser problemático dizer: “Deus é bom” ou que “Deus é um ser”. Tudo isso é equivocado segundo Eckhart. O que Deus é na verdade, diz ele, é uma “nadidade sobreessencial”. E se remete a Agostinho para confirmar sua tese. Agostinho diz que “o mais belo que o homem pode dizer sobre Deus consiste em poder calar-se em virtude da sabedoria da riqueza interior”. Na verdade, quanto “tagarelamos” sobre Deus estamos mentindo e pecando.

 

 



[1]Reiner SCHÜRMANN. Maître Eckhart ou la joie errante. Paris: Payot & Rivages, 1972, p. 139-40 (nota 1).