Perplexidades em torno ao mundo pentecostal: dialogando com Leonardo Boff
Faustino Teixeira
IHU / Paz e Bem
Confesso a vocês que fiquei preocupado ao ler o artigo recente de Leonardo Boff publicado no IHU de 19/08/2022. O título do artigo: A importância do fator religioso nas atuais eleições presidenciais. Na linha de posicionamentos tradicionais da igreja católica e de segmentos da sociologia, Boff ficou refém da visão recorrente entre segmentos da esquerda na avaliação das igrejas neopentecostais. Cito aqui uma parte do texto onde ele fala a respeito:
“(...) O grande desafio da campanha da coligação ao redor de Lula/Alckmin, que é também das Igrejas cristãs históricas, principalmente da Católica, é como atrair estas massas, manipuladas e ludibriadas pelas igrejas pentecostais, para os valores do Jesus histórico, muito mais humanitários e espirituais do que aqueles apresentados pelos “pastores e bispos” autoproclamados e verdadeiros lobos em pele de ovelha. Estes usam a lógica do mercado, da propaganda e estilos que contradizem diretamente a mensagem bíblica e de Jesus, pois utilizam-se diretamente da mentira, da calúnia, da fake news.
Vale mostrar a estes seguidores das Igrejas pentecostais como o Jesus dos evangelhos sempre esteve ao lado os pobres, dos cegos, dos coxos, dos hansenianos, das mulheres doentes, e os curava. Era extremamente sensível aos invisíveis e aos mais vulneráveis, homens ou mulheres, enfim, àqueles cujas vidas viviam ameaçadas. Vale muito mais o amor, a solidariedade, a verdade, e acolhida de todos sem discriminação, como os de outra opção sexual, vendo nos negros, quilombolas e indígenas nossos irmãos e irmãs sofredores. Importa se solidarizar com eles e estar junto com eles para fazerem o seu próprio caminho. Esse comportamento vale muito mais que o “evangelho da prosperidade” de bens materiais que não podemos carregar para a eternidade e, no fundo, não preenchem nossos corações e não nos fazem felizes. Ao passo que os outros valores do Jesus histórico vão conosco como expressão de nosso amor ao próximo e a Deus e nos trazem paz no coração e uma felicidade que ninguém nos pode roubar.”
Vejo na passagem alguns riscos bem concretos na avaliação das igrejas pentecostais. Há algum tempo somos provocados por autores específicos a questionar nossa visão tradicional sobre os pentecostais, para além da posição enrijecida de parte da esquerda que não vê nos pentecostais senão alienação. Cito aqui o exemplar livro de Waldo Cesar & Richard Shaull, Pentecostalismo e futuro das igrejas cristãs.
Richard Schaull relata com rigor a difícil estrutura social no Brasil, que provocou um duro enrijecimento das condições de vida dos pobres. Reconhece que foi justamente nessa situação de precariedade social e humana que “muitos passam a conhecer uma rica experiência , que não podemos imaginar, de cura e presença salvadora de Deus”. Mais adiante, continua o autor: “Hoje os pentecostais pregam para os pobres e excluídos, humilhados e oprimidos sob o poder esmagador da opressão. Sua experiência é de impotência e falta de dignidade (...). Em tal situação, os neopentecostais anunciam o amor de um Deus cheio de graça, que deseja que eles tenham, aqui e agora, uma vida plena, bem como a presença do Espírito Santo com poder, para dar vida àqueles a quem ela havia sido negada”.
Vejam que é outra perspectiva de abordagem, que resgata positivamente traços da experiência neopentecostal. No âmbito das ciências sociais, acompanhamos as reflexões serenas e precisas de Regina Novaes sobre a Assembleia de Deus num município do Nordeste, com nome fictício de Santa Maria. Foi sua tese de mestrado no Museu Nacional. Regina lembrava em seu trabalho, publicado em 1985, a “proposta de vida” que encontrou entre os camponeses da religião em sua experiência pentecostal. De forma revolucionária, Regina foi uma pioneira em reconhecer o trabalho social dos pentecostais, quebrando aquela ideia jargão que são alienados. Mostrou com sua pesquisa, o empenho de núcleos pentecostais na luta pela terra. O elemento novo que ela nos trouxe foi sublinhar “a contaminação da área dos direitos trabalhistas e dos direitos pela posse e uso da terra por categorias religiosas. Os ´salmos` , a ´sagrada escritura` estariam, neste sentido, legitimando e até sacralizando a luta pelos direitos”. Como vemos, o traço da relativização acontece aqui com pertinência, pontuando a complexidade de tirar impressões apressadas sobre os pentecostais. O trabalho de Regina foi pioneiro nesse campo.
A mesma Regina, em outro trabalho importante - publicado no livro "Religião e cultura popular" (2001), volta a relativizar esse paradigma que encerra o pentecostalismo no universo conservador. Vai sublinhar, com muito pertinência, o papel dos pentecostais numa fundamental rede de sociabilidade e de ajuda mútua. Mostra igualmente a presença dos pentecostais em rincões que não foram atingidos pela pastoral católica, ali onde estão os mais pobres dos pobres:
“Várias pesquisas já demonstraram que são os evangélicos os que mais chegam nas margens da sociedade. Chegam a lugares de onde nenhuma outra instituição civil ou religiosa ousa se aproximar. Estudos demonstram também que são apenas eles que – ao fazer nascer novas e independentes denominações – provocam dinâmicas agregadoras locais sem contar com nenhum recurso material e simbólico externo”.
O historiador Marcos Alvito comenta também essa capacidade dos pentecostais avançarem para “dentro da favela”, como dizem eles, ou alcançarem “as vielas mais recôndidas e as áreas mais pobres”. Diz ainda que é nos cultos “que se reconstrói o significado de tantas vidas ameaçadas pelo caos, paralisadas pela perplexidade, mergulhadas na dor e acossadas pela iniquidade, pelo Mal”. Muito rica também a descrição feita pelo autor no livro sobre o carisma de uma liderança pentecostal, que em culto ecumênico realça o papel de um "exército de anjos" que protegem os quatro cantos de Acari. Trata-se de uma descrição de beleza única.
Beleza que também percebi no filme "Santa Cruz", de João Moreira Sales e Marcos Sá Corrêa, abordando o nascimento e desenvolvimento de uma pequena comunidade pentecostal na periferia do Rio de Janeiro. O retrato que ele passa dos pentecostais vem tecido por um enorme respeito, no sentido de uma ressignificação do sujeito empobrecido pela experiência espiritual. Em artigo que publiquei sobre os pentecostais na Revista Concilium em 2014, caminhei nessa direção alternativa e sublinhei a importância desse filme:
“O filme quebra, assim, a imagem de certas representações correntes sobre o pentecostalismo, apontando caminhos novos de interpretação, favorecendo um olhar internalista e compreensivo sobre esse complexo fenômeno. Possibilita, em verdade, um olhar sobre o potencial da igreja em “formar comunidade moral e rede de ajuda mútua”. Como se a experiência comunitária “preenchesse aos poucos um espaço vazio”, de baixo potencial de dignidade. O filme busca retratar os três primeiros meses da comunidade e as mudanças suscitadas pela nova igreja: “A integração promovida pela igreja criou amizade entre os vizinhos, formou rede de apoio e ajuda mútua entre iguais, valorizando e ´preenchendo` de relações positivas o bairro antes ruim, ´terra de ninguém` , vazio civilizatório.”
Retomei depois semelhante reflexão em outro trabalho publicado no IHU-Notícias, em novembro de 2021: Um outro olhar sobre os pentecostais: um desafio para o nosso tempo.
Menciono também um trabalho premiado nas ciências sociais, de autoria de Maria das Dores Campos Machado, Carismáticos e pentecostais. Adesão religiosa na esfera familiar. A autora, que chegou a escrever na própria Folha Universal, mostrou em seu livro o papel exercido pelas igrejas pentecostais no campo da “autonomização feminina”. Ela mostrou como a prática pentecostal acaba proporcionando aos fiéis experiência importantes de intensificação da qualidade de sujeitos: muitos dos participantes conseguem, via religião, romper com vícios problemáticos (álcool e drogas) e reconstituir o tecido familiar. A autora revela que aqueles que buscam nas igrejas pentecostais uma “vida santificada”, acabam exercendo concretamente em suas igrejas e atuações sociais algo que reforça a dignidade de pessoa de cada um, e que levado às últimas consequências, abala “não só a autoridade masculina, mas a própria instituição que se coloca como responsável pela salvação das almas”. São práticas religiosas que acabam, na verdade, proporcionando uma maior igualdade de gênero e um arrefecimento da violência doméstica. Como também indica o antropólogo Ronaldo de Almeida, numa perspectiva mais sociológica, verifica-se no pentecostalismo o estabelecimento de “vínculos sociais que atenuam a situação de vulnerabilidade sociais das camadas mais pobres”. Algo que vem igualmente partilhado pela análise de Regina Novaes, para quem os evangélicos são “os que mais chegam nas margens da sociedade”, provocando “dinâmicas agregadoras locais sem contar com nenhum recurso material e simbólico externo”.
Mais recentemente, o livro de Juliano Spyer, Povo de Deus. Quem são os evangélicos e porque eles importam, com apresentação de Caetano Veloso(Geração Editorial, 2020). Já no prefácio, com sabedoria, Caetano Veloso, que tem dois filhos ligados à Igreja Universal do Reino de Deus, falou sobre “o clima de honestidade dos fiéis que não podem ser confundidos com descaminhos éticos de certas lideranças”.
Os dados têm-nos revelado que os evangélicos e pentecostais constituem hoje “a religião mais negra do país”, sendo a preferência principal a Assembleia de Deus. O autor mostra que “para muitos negros e pardos que são encarcerados ou se tornam dependente de drogas baratas como o crack, o pentecostalismo constitui hoje um caminho para a reintegração à sociedade”. Adverte também que “para as pessoas dispostas a romper o vínculo com o álcool, as igrejas servem como rede social alternativa aos bares e às amizades formadas em virtude do vício”. O crescimento desse cristianismo evangélico, como indica Spyer, “tem menos a ver com pastores oportunistas e carismáticos, e mais com a influência das igrejas para melhorar as condições de vida dos mais pobres
As igrejas evangélicas, como mostra Spyer, constituem um “espaço que, na localidade em que se instala, cumpre a função de estado de bem-estar social informal”. É contra “estereótipos” comuns em segmentos da esquerda, que Spyer se contrapõe, com base em pesquisas sólidas em torno do mundo evangélico e pentecostal. Dentre os estereótipos mais comuns estão aqueles que “descrevem o evangélico como mercador da fé que se aproveita da superstição de um povo ingênuo e ignorante”.
Nesse livro, que foi admirado por Lula, o autor sublinha que a promessa apresentada pelos pentecostais, diferentemente do que ocorria nessas igrejas da década de 1920, refere-se ao paraíso que deve ser buscado já aqui no tempo. A própria ideia de “teologia da prosperidade” pode ser entendida de forma diversa do que normalmente apresentada. Firma-se uma percepção de que “a Terra é uma dádiva de Deus aos homens para que todos possam prosperar e viver com abundância de bens materiais”. É uma teologia que acaba firmando-se como um “demarcador simbólico”, onde os pobres encontram o estímulo e motivação para iniciativas singulares. A preocupação dos fiéis não é tanto com as grandes abstrações, mas com o que vem acontecendo nas suas famílias e igrejas, e como encontrar soluções de saída para o desamparo social.
O que concretamente sabemos, segundo os dados que vão aparecendo, e que poderão ser confirmados pelo Censo que agora começa, é que os evangélicos no Brasil superarão já na próxima década o número de católicos. Temos como desafio essencial buscar um olhar mais especializado e menos a-priorístico sobre os evangélicos e pentecostais, que possa dar conta da grande complexidade que envolve o tema.