quinta-feira, 28 de abril de 2022

A dor da impermanência: reflexões em torno de um livro de Philip Roth

 A dor da impermanência: reflexões em torno de um livro de Philip Roth

 

Faustino Teixeira

IHU / Paz e Bem

 

 

Uma grande amiga e parceira nos debates do Paz e Bem, com Maulo Lopes, a pesquisadora Dora Incontri, das autoras mais reconhecidas no campo do espiritismo brasileiro, começou um lindo relato sobre sua experiência pessoal com uma doença difícil. Resolver fazer um diário a respeito de sua trajetória em busca da cura. O material vem sendo publicado no seu Facebook e publicizado[1].

 

Ao acabar de ler o diário da mama 2, de Dora Incontri, parei para refletir uma frase que ela colocou em seu texto:

 

" (...) Um dos motivos principais que não queria nada na mama é porque para mim é o maior símbolo do feminino, um lugar sagrado do corpo, impensável extirpá-lo. E ouvi de algumas mulheres: você vai suportar a dor, porque nós mulheres temos um limiar de dor mais alto. Então o sagrado da mulher está além do corpo: está na resiliência, na resistência, na alma feminina (...)"

 

A leitura remeteu-me ao impactante livro de Philip Roth, O animal agonizante, de 2006[2]. Trata-se de um livro que me causou enorme impressão quando o li. Foi um período que tomei contato com diversos outros trabalhos do escritor, que gosto muito. Mas dois em particular tocaram-me particularmente: esse já citado e o outro: Homem comum[3]. Para um conhecimento mais detalhado sobre o autor, aconselho dois livros: Roth libertado, o escritor e seus livros (2015) e Por que escrever? Conversas e ensaios sobre literatura (1960-2013)[4].

 

No "Animal agonizante" temos um monólogo de um professor de literatura, David Kepesh, um conhecido personagem dos leitores de Roth. O inteligente professor, movido por singular obsessão sexual, dirige sua fala a um interlocutor que permanece calado. Para o professor a velhice é um evento trágico: "ser velho significa também que, apesar e além de ter sido, você continua sendo".

 

A passagem me lembrou a velha Anita, personagem de Clarice Lispector no conto "Feliz Aniversário"[5], que comemorava os seus oitenta e nove anos, para quem ela "já era o futuro"[6]. Sua velhice estava estampada na face, cujos músculos "não a interpretavam mais, de modo que ninguém podia saber se ela estava alegre"[7].

 

Retomando o livro de Roth, o professor Kepesh, tinha vivido um bonito relacionamento com uma bela morena, Consuelo, e mantinha com ela amizade. Ele era alguém "muito vulnerável à beleza feminina" e recebeu um telefonema da amiga solicitando sua presença na casa dela. Ele se dá conta de que algo mais sério poderia estar acontecendo, já que na outra linha a amada solicitava a sua presença imediata.

 

Ele vai sem titubear, e ela o recebe com um chapéu "que parecia um barrete turco". Consuelo tinha trinta e dois anos. Partilha com o amigo que já não tem mais cabelos, em razão da quimioterapia. Estava com câncer no seio. O que lhe acontecera vinha da tradição familiar, pois sua tia acabou perdendo um seio por essa razão. Segundo os médicos, ela tinha sessenta por cento de chance de sobreviver e quarenta de morrer.

 

Ela então pede um favor ao amigo David: para que trouxesse sua câmara Laika para fotografá-la antes da cirurgia que sofreria, onde seria retirado mais ou menos um terço de seu belo seio. Ele vai com sua câmara ao apartamento da amiga, fecham a cortina, acendem todas as luzes e escolhem uma música de Shubert para tocar na sala. Consuelo inicia uma "espécie de movimento exótico" e se despe para o amigo. Estava "elegante" e "vulnerável". Ela primeiro tirou a blusa, depois os sapatos e, finalmente, o sutiã[8]

 

Ela, apenas de calcinhas, pede a ele para tocar seus seios e depois fotografá-los de frente, de perfil e por baixo. Foram cerca de trinta fotos. Ela sabia de como ele gostava de seus seios, e disse: "Depois de você, não tive nenhum namorado nem amante que amasse meu corpo tanto quanto você amou". E continuou: "Você conheceu o meu corpo quando ele estava no auge. Por isso quero que você o veja agora, antes de ele ser estragado pelo que os médicos vão fazer"[9].

 

Depois tirou a calcinha, parecendo excitada, e ele então olhou-a, e ela inteiramente nua. Ele perguntou se ela queria transar com ele, e como resposta recebeu: "Não. Não quero transar com você. Mas quero que você me abrace". Foi quando então ela pegou a mão do amigo e a colocou-a na sua axila para que pudesse apalpar o câncer. "Parecia uma pedra", diz o narrador. Ele pensava consigo, referindo-se aos seios de Consuela : "eles são tão bonitos (...). Era tão cruel, tão degradante...eles não podem ser destruídos"[10]

 

Ao final do romance, os dois estão junto diante da TV, assistindo aos fogos comemorativas da passagem de ano em Havana. Na verdade, era a "passagem do tempo". Ao lado do professor, a amiga Consuelo, que sofria "o pior evento de toda a sua vida". Pode então conhecer agora "a ferida da idade"[11]

 

Envelhecer, diz o narrador "é inimaginável para todos, menos os que estão envelhecendo, mas agora para Consuelo era diferente. Ela já não mede o tempo como os jovens, contando para trás a partir do momento em que tudo começou"[12]. Para ela, "o tempo agora é o futuro que ainda lhe resta, mais nada"[13]. David reflete sobre isso, num momento em que se sente bem e que pode ter como horizonte mais de vinte anos, diversamente de Consuelo. 

 

Os dois juntos diante da TV, assistindo aquele espetáculo festivo, de jovens que prolongam sua alegria por noite a dentro, com fogos de artifícios, numa histeria infantil, não se dão conta - pensam os dois - de que a vida é curta. Aqueles jovens se deixam levar pela "ilusão" de um "futuro infinito". Sim, uma "fantasia que os adultos maduros, com seu conhecimento melancólico de que o futuro é muito limitado, não podem nutrir"[14]. E naquela noite enlouquecida, Consuelo era alguém diferente, e ninguém como ela poderia ter um conhecimento mais melancólico na noite.

 

E aqui retomo o conto de Clarice Lispector, quando a vela Anita, "com o punho mudo e severo sobre a mesa", confidencia para a nora infeliz: "É preciso que se saiba. Que a vida é curta. Que a vida é curta"[15].

 



[2]Philip Roth. O animal agonizante. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

[3]Philip Roth. Homem comum. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

[4]Claudia Roth Pierpont. Roth libertado. O escritor e seus livros. São Paulo: Companhia das Letras; Philip Roth & Jorio Dauster. Por que escrever ? Conversas e ensaios sobre literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

[5]Clarice Lispector. Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016, p. 179-192.

[6]Essa expressão está em outro conto de Clarice: A partida do trem. Cf. Clarice Lispector. Todos os contos, p. 461.

[7]Clarice Lispector. Todos os contos, p. 181.

[8]Philip Roth. O animal agonizante, p. 110-111.

[9]Ibidem, p. 109.

[10]Ibidem, p. 111. David achava naqueles peitos de Consuelo os “mais maravilhosos do mundo”: Ibidem, p. 106.

[11]Ibidem, p. 121.

[12]Ibidem, p. 121-122.

[13]Ibidem, p. 122.

[14]Ibidem, p. 122.

[15]Clarice Lispector. Todos os contos, p. 189.

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