quinta-feira, 28 de abril de 2022

A dor da impermanência: reflexões em torno de um livro de Philip Roth

 A dor da impermanência: reflexões em torno de um livro de Philip Roth

 

Faustino Teixeira

IHU / Paz e Bem

 

 

Uma grande amiga e parceira nos debates do Paz e Bem, com Maulo Lopes, a pesquisadora Dora Incontri, das autoras mais reconhecidas no campo do espiritismo brasileiro, começou um lindo relato sobre sua experiência pessoal com uma doença difícil. Resolver fazer um diário a respeito de sua trajetória em busca da cura. O material vem sendo publicado no seu Facebook e publicizado[1].

 

Ao acabar de ler o diário da mama 2, de Dora Incontri, parei para refletir uma frase que ela colocou em seu texto:

 

" (...) Um dos motivos principais que não queria nada na mama é porque para mim é o maior símbolo do feminino, um lugar sagrado do corpo, impensável extirpá-lo. E ouvi de algumas mulheres: você vai suportar a dor, porque nós mulheres temos um limiar de dor mais alto. Então o sagrado da mulher está além do corpo: está na resiliência, na resistência, na alma feminina (...)"

 

A leitura remeteu-me ao impactante livro de Philip Roth, O animal agonizante, de 2006[2]. Trata-se de um livro que me causou enorme impressão quando o li. Foi um período que tomei contato com diversos outros trabalhos do escritor, que gosto muito. Mas dois em particular tocaram-me particularmente: esse já citado e o outro: Homem comum[3]. Para um conhecimento mais detalhado sobre o autor, aconselho dois livros: Roth libertado, o escritor e seus livros (2015) e Por que escrever? Conversas e ensaios sobre literatura (1960-2013)[4].

 

No "Animal agonizante" temos um monólogo de um professor de literatura, David Kepesh, um conhecido personagem dos leitores de Roth. O inteligente professor, movido por singular obsessão sexual, dirige sua fala a um interlocutor que permanece calado. Para o professor a velhice é um evento trágico: "ser velho significa também que, apesar e além de ter sido, você continua sendo".

 

A passagem me lembrou a velha Anita, personagem de Clarice Lispector no conto "Feliz Aniversário"[5], que comemorava os seus oitenta e nove anos, para quem ela "já era o futuro"[6]. Sua velhice estava estampada na face, cujos músculos "não a interpretavam mais, de modo que ninguém podia saber se ela estava alegre"[7].

 

Retomando o livro de Roth, o professor Kepesh, tinha vivido um bonito relacionamento com uma bela morena, Consuelo, e mantinha com ela amizade. Ele era alguém "muito vulnerável à beleza feminina" e recebeu um telefonema da amiga solicitando sua presença na casa dela. Ele se dá conta de que algo mais sério poderia estar acontecendo, já que na outra linha a amada solicitava a sua presença imediata.

 

Ele vai sem titubear, e ela o recebe com um chapéu "que parecia um barrete turco". Consuelo tinha trinta e dois anos. Partilha com o amigo que já não tem mais cabelos, em razão da quimioterapia. Estava com câncer no seio. O que lhe acontecera vinha da tradição familiar, pois sua tia acabou perdendo um seio por essa razão. Segundo os médicos, ela tinha sessenta por cento de chance de sobreviver e quarenta de morrer.

 

Ela então pede um favor ao amigo David: para que trouxesse sua câmara Laika para fotografá-la antes da cirurgia que sofreria, onde seria retirado mais ou menos um terço de seu belo seio. Ele vai com sua câmara ao apartamento da amiga, fecham a cortina, acendem todas as luzes e escolhem uma música de Shubert para tocar na sala. Consuelo inicia uma "espécie de movimento exótico" e se despe para o amigo. Estava "elegante" e "vulnerável". Ela primeiro tirou a blusa, depois os sapatos e, finalmente, o sutiã[8]

 

Ela, apenas de calcinhas, pede a ele para tocar seus seios e depois fotografá-los de frente, de perfil e por baixo. Foram cerca de trinta fotos. Ela sabia de como ele gostava de seus seios, e disse: "Depois de você, não tive nenhum namorado nem amante que amasse meu corpo tanto quanto você amou". E continuou: "Você conheceu o meu corpo quando ele estava no auge. Por isso quero que você o veja agora, antes de ele ser estragado pelo que os médicos vão fazer"[9].

 

Depois tirou a calcinha, parecendo excitada, e ele então olhou-a, e ela inteiramente nua. Ele perguntou se ela queria transar com ele, e como resposta recebeu: "Não. Não quero transar com você. Mas quero que você me abrace". Foi quando então ela pegou a mão do amigo e a colocou-a na sua axila para que pudesse apalpar o câncer. "Parecia uma pedra", diz o narrador. Ele pensava consigo, referindo-se aos seios de Consuela : "eles são tão bonitos (...). Era tão cruel, tão degradante...eles não podem ser destruídos"[10]

 

Ao final do romance, os dois estão junto diante da TV, assistindo aos fogos comemorativas da passagem de ano em Havana. Na verdade, era a "passagem do tempo". Ao lado do professor, a amiga Consuelo, que sofria "o pior evento de toda a sua vida". Pode então conhecer agora "a ferida da idade"[11]

 

Envelhecer, diz o narrador "é inimaginável para todos, menos os que estão envelhecendo, mas agora para Consuelo era diferente. Ela já não mede o tempo como os jovens, contando para trás a partir do momento em que tudo começou"[12]. Para ela, "o tempo agora é o futuro que ainda lhe resta, mais nada"[13]. David reflete sobre isso, num momento em que se sente bem e que pode ter como horizonte mais de vinte anos, diversamente de Consuelo. 

 

Os dois juntos diante da TV, assistindo aquele espetáculo festivo, de jovens que prolongam sua alegria por noite a dentro, com fogos de artifícios, numa histeria infantil, não se dão conta - pensam os dois - de que a vida é curta. Aqueles jovens se deixam levar pela "ilusão" de um "futuro infinito". Sim, uma "fantasia que os adultos maduros, com seu conhecimento melancólico de que o futuro é muito limitado, não podem nutrir"[14]. E naquela noite enlouquecida, Consuelo era alguém diferente, e ninguém como ela poderia ter um conhecimento mais melancólico na noite.

 

E aqui retomo o conto de Clarice Lispector, quando a vela Anita, "com o punho mudo e severo sobre a mesa", confidencia para a nora infeliz: "É preciso que se saiba. Que a vida é curta. Que a vida é curta"[15].

 



[2]Philip Roth. O animal agonizante. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

[3]Philip Roth. Homem comum. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

[4]Claudia Roth Pierpont. Roth libertado. O escritor e seus livros. São Paulo: Companhia das Letras; Philip Roth & Jorio Dauster. Por que escrever ? Conversas e ensaios sobre literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

[5]Clarice Lispector. Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016, p. 179-192.

[6]Essa expressão está em outro conto de Clarice: A partida do trem. Cf. Clarice Lispector. Todos os contos, p. 461.

[7]Clarice Lispector. Todos os contos, p. 181.

[8]Philip Roth. O animal agonizante, p. 110-111.

[9]Ibidem, p. 109.

[10]Ibidem, p. 111. David achava naqueles peitos de Consuelo os “mais maravilhosos do mundo”: Ibidem, p. 106.

[11]Ibidem, p. 121.

[12]Ibidem, p. 121-122.

[13]Ibidem, p. 122.

[14]Ibidem, p. 122.

[15]Clarice Lispector. Todos os contos, p. 189.

A vitória do sincretismo: o desfile da Grande Rio no carnaval carioca de 2022

 A vitória do sincretismo: o desfile da Grande Rio no carnaval carioca de 2022

 

Faustino Teixeira

IHU / Paz e Bem

 

 

A linda vitória da Acadêmicos do Grande Rio é, na verdade, a vitória contra a intolerância religiosa sofrida pelas religiões africanas e de matriz afro-brasileira em nosso país. 

 

Num tempo difícil em que cresce a repressão contra tais tradições, uma vitória assim é motivo de grande alegria: é a vitória do “som Brasil”[1], para expressar uma noção bonita do antropólogo Pierre Sanchis, que sempre celebrou o “toque” do sincretismo e da diversidade brasileira, que continuam fazendo vibrar uma modulação essencial da cultura brasileira. 

 

Vejo também como um grito que pede respeito, desmistificando uma das figuras tão mal vistas por segmentos da população brasileira e em particular de grandes camadas do mundo evangélico e pentecostal, bem como do catolicismo carismático. 

 

O enredo e o samba da Escola empolgaram a avenida e trouxeram as chaves de Exu para abrirem os corações e mentes dos brasileiros preconceituosos, oferecendo uma possibilidade lírica e festiva para quebrar tabus que reafirmam o passo da exclusão do outro. 

 

O orixá vem celebrado e convidado a falar de si para a multidão na Marques de Sapucaí. Foi uma vitória dos carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad, que tiveram essa ousadia de apresentar de forma brincalhona e lúdica essa figura do panteão afro. Em passagem do samba enredo celebramos:

 

“Exu Caveira, Sete Saias, Catacumba

É no toque da macumba, saravá, Alafiá

Seu Zé, malandro da encruzilhada

Padilha da saia rodada, ê Mojubá

 

Sou Capa Preta, Tiriri

Sou Tranca Rua, amei o Sol

Amei a Lua, Marabô, Alafiá

Eu sou do carteado e da quebrada

Sou do fogo e gargalhada, ê Mojubá”

 

Temos por exemplo na Candomblé, o maravilhoso rito onde os participantes cedem seu corpo para a dança dos deuses, como mostrou tão bem Roger Bastide:

 

“Os gestos, porém, adquirem maior beleza, os passos de dança alcançam estranha poesia. Não são mais costureirinhas, cozinheiras, lavadeiras que rodopiam ao som dos tambores nas noites baianas; eis Omolu recoberto de palha, Xangô vestido de vermelho e branco, Iemanjá penteando seus cabelos de algas. Os rostos metamorfosearam-se em máscaras, perderam as rugas do trabalho cotidiano, desaparecidos os estigmas desta vida de todos os dias, feita de preocupações e de miséria; Ogum guerreiro brilha no fogo da cólera, Oxum é toda feita de volúpia carnal. Por um momento, confundiram-se África e Brasil; aboliu-se o oceano, apagou-se o tempo da escravidão”[2].

 

Pierre Verger lembra em texto semelhante que naquele momento do ritual o participante se transforma em rei e rainha, superando ritualmente os embates do cotidiano doloroso. Esse grande estudioso e iniciado no candomblé sublinha: 

 

“O Candomblé é para mim muito interessante por ser uma religião de exaltação à personalidade das pessoas. Onde se pode ser verdadeiramente como se é, e não o que a sociedade pretende que o cidadão seja. Para pessoas que têm algo a expressar através do inconsciente, o transe é a possibilidade do inconsciente se mostrar"[3].

 

 

Nos trabalhos preciosos de Reginaldo Prandi, podemos captar com clareza esse manancial das religiões de matriz afro-brasileira, quando o “eu” se torna sagrado e poderoso, podendo romper grilhões de opressão e revelar segredos desconhecidos[4]. O orixá se desdobra em orixá da pessoa. 

 

Exu exerce um papel fundamental para abrir chaves, abrir trabalhos. Como indica Reginaldo Prandi, os filhos de Exu são gente que traduzem a “ambiguidade” que marca o povo brasileiro: eles são agitados, irônicos, manhosos, como os malandros brasileiros, no seu sentido mais nobre[5].

 

Exu é alguém que se solta, de fala fácil, com a sexualidade à flor da pele. A rua é o seu lugar predileto, a avenida é o seu lugar predileto. Os exus e as pomba giras são ágeis, sedutores: adoram o espaço aberto e a cachaça. Não se caracterizam pela maldade, como certa visão preconceituosa buscou apresentar na opinião pública. Exu é gente matreira, ardilosa, que entende bem de artimanhas, mas não guarda rancor. É gente brincalhona, pautada pela alegria, e amante das comidas e bebidas

 

A vitória de Exu na avenida serviu um pouco para “balançar” nossa casa sofrida e trazer festa para um povo entristecido e abafado. Ele vem sempre para “bagunçar a casa”, quebrar a seriedade bem comportada e apontar dimensões esquecidas que habitam em cada um, e que foram profundamente reprimidas nesse tempo da epidemia, mas tempo que é também do arbítrio político, do fechamento e da “celebração” do fascismo. Viva Exu, viva a raiz popular que ousa mostrar o seu rosto festivo e disruptor.

A história da discriminação religiosa no estado do Rio de Janeiro foi objeto de um estudo cuidadoso de Denise Pini Rosalem da Fonseca e Sonia Maria Giacomini[6]. Em seu artigo sobre intolerância religiosa Sônia divulga dados que já são mais antigos, mas que impressionam: “Das 840 casas que responderam à questão específica sobre discriminação, mais da metade informou ter sido alvo de alguma ação qualificada como ´discriminação ou agressão por motivo religioso`”[7].

 

Um dos grandes estudiosos brasileiro das religiões afro é Reginaldo Prandi. Tive a alegria de contar com um artigo seu no livro que organizei junto com Renata Menezes sobre as religiões e o Censo de 2010[8]. Com base nos dados do Censo de 2010, Prandi indicou que em 2010 as religiões afro-brasileiras contavam com cerca de 0,3% de adeptos declarados. É verdade que nem sempre os dados apresentados são representativos pois escamoteiam a dupla ou tripla pertença religiosa que ocorre no Brasil. Mesmo assim, a declaração de crença é baixa. Os dados do Censo mostram ainda que na ocasião a Umbanda estava em decréscimo, enquanto o Candomblé apresentou leve crescimento. O Censo mostrou que a presença destas tradições no país “reduziu-se a um patamar estagnado abaixo do nível do crescimento vegetativo”[9]

 

Em recente artigo no Jornal O Globo, de 22/04/2022[10], Reginaldo Prandi comenta a presença das tradições afro-brasileiras no carnaval carioca em 2022. Dizia que “os orixás estão em peso na avenida”. De fato, isto ocorreu, para o maravilhamento das pessoas que assistiram o espetáculo, seja ao vivo ou pela televisão. Só no Rio, comenta Prandi, seis das doze escolas de samba do grupo especial honraram a cultura afro-brasileira. 

 

Buscando interpretar esta popularidade, Prandi sublinha que “à medida que aumenta a intolerância religiosa, a fé afro-brasileira é acolhida no campo cultural”[11]. Estou plenamente de acordo com o pesquisador e amigo paulista. O carnaval brasileiro sempre esteve ligado ao universo afro-brasileiro, com suas cores, energia e religiosidade empolgantes. A vitória exemplar da Grande Rio proporcionou visibilidade única ao que vem considerado o núcleo basilar das religiões de matriz afro-brasileira: os Exus. 

 

No livro Mitologia dos Orixas[12], Reginaldo Prandi assinala que Exu é o orixá que sempre está presente, e o culto dos demais orixás sempre “depende de seu papel de mensageiro”. Sem o exu nem os orixás ou os humanos podem se comunicar. É a sua presença que traduz a “porta de entrada” dos rituais, e sem a sua participação não pode acontecer nem movimento, reprodução ou qualquer outra dinâmica de presença criativa nos rituais[13]

 

Infelizmente, guardamos uma imagem negativa de Exu, que é resíduo da identificação feita pelos europeus entre exu e o diabo. Nada mais grosseiro ou falso. Exu é mensageiro, esse é o melhor modo de identifica-lo[14]. É o mensageiro que das terras africanas e povos iorubas, perambulava pelas aldeias em busca de solução para os problemas mais aflitivos dos seres humanos. É o mensageiro e alvissareiro que traz a boa notícia em favor da manutenção da saúde e do bem-viver, sem desconhecer ou abordar igualmente as desventuras que marcam a trajetória dos humanos.

 

 

 

 

...

 



[1]Pierre Sanchis. Religião, cultura e identidade. Petrópolis: Vozes, 2018.

[2]Roger Bastide. O candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 39.

[4]Reginaldo Prandi. Os candomblés de São Paulo. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1991, p. 123.

[5]Ibidem, p. 133-134.

[6]Sônia Maria Giacomini. “Intolerância religiosa”: discriminação e cerceamento do exercício da liberdade religioso. In: Denise P. R. Da Fonseca & Sônia Maria Giacomini. Presença do Axé. Mapeando terreiros no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: PUC-RJ/Pallas, 2013, p. 133-157.

[7]Ibidem, p. 139.

[8]Reginaldo Prandi. As religiões afro-brasileiras em ascensão e declínio. In: Faustino Teixeira & Renata Menezes (Orgs). Petrópolis: Vozes, 2013, p. 203-218.

[9]Ibidem, p. 208-209.

[10]Ruan de Souza Gabriel. Do candomblé para o romance policial. O Globo, 22/04/2022 – Segundo Caderno, p. 6.

[11]Ibidem, p. 6.

[12]Reginaldo Prandi. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

[13]Ibidem, p. 20-21.

[14]Ibidem, p. 17.

sexta-feira, 22 de abril de 2022

Reflexões para tempos difíceis: compromissos para um novos tônus vital

 Reflexões para tempos difíceis: compromissos para um novo tônus vital

 

Faustino Teixeira

IHU / Paz e Bem

 

 

Em conversa com minha companheira, Teita, no dia 18 de abril de 2022, falava sobre toda essa situação difícil nas redes, nas tensões entre falas, no desentendimentos, controvérsias e contendas problemáticas que apontam para a dificuldade de convivência mútua e respeitosa entre pares. Foi quando ela me passou a dica de um livro que li com muito atenção e alegria. Tratava-se do livro de Ana Claudia Quintana Arantes: A morte é um dia que vale a pena(Sextante, 2019). A mesma autora escreveu outro livro interessante: Histórias lindas de morrer (Sextante, 2020). 

 

O primeiro livro apresenta uma reflexão da autora sobre sofrimento e finitude, sobre os caminhos necessários para lidar de forma realista na relação com a dor e a morte. Como Ana Claudia sublinha, foi um livro que teve grande repercussão, e a colocou em contato com muitas histórias de vida. Serviu também de espaço para a irradiação de dores que habitam as pessoas. Algo que não pode simplesmente ficar estancado no fundo de cada um. Como diz o evangelho apócrifo de Tome, citado pela autora, “se você expressar o que habita em você, isso irá salvá-lo. Mas se você não expressar o que habita em você, isso irá destruí-lo”[1].

 

A autora é médica formada pela USP, tendo se dedicado ao tema dos cuidados paliativos. Como ele prefere dizer, é alguém que cuida de pessoas que morrem. Algo que provoca seja espanto ou pelo menos muita surpresa nas pessoas que ouvem dela esse dado de sua especialização. O certo é que fiz a leitura de seus livros, e estes me remeteram a um autor que ela cita, e que achei bem interessante: Dom Miguel Ruiz, Os quatro compromissos. O livro da filosofia tolteca (Best Seller, 2021, 43ª edição).

 

Dom Ruiz nasceu numa família de curandeiros, sendo criado no México por sua mãe e avô nagual mexicano. Ele se formou em medicina, tendo passado no início da década de 1940 por uma dura experiência, num acidente de carro. Foi algo que o fez se aproximar da sabedoria ancestral dos toltecas, que identificam no nagual alguém que tem como missão a partilha de ensinamentos espirituais. São “homens e mulheres de sabedoria”. E assim seguiu a sua jornada de mestre e pensador. 

 

Em seu livro, Dom Ruiz analisa quatro compromissos vistos como essenciais para uma afirmação pessoal de sentido existencial. São compromissos simples, e ao mesmo tempo difíceis e complexos, que exigem “muita força de vontade” para a sua realização, mas que uma vez assimilados ajudam profundamente para uma vida diferente e nova.

 

Em primeiro lugar, o compromisso de ser impecável no uso da palavra. A palavra vem animada pelo poder de criação, mas também de destruição. Ela pode ser tanto um rico manancial de expressão e enriquecimento, mas igualmente uma lâmina negativa, que destrói e corrompe tudo o que a circunda. Como mostra Ana Cláudia,

 

“quando colocamos nossa voz em algo em que acreditamos, a palavra passa a ter algo de nós mesmos (...). Porém, dependendo de quando dissermos, quem ouviu a crítica poderá concordar com ela ou se irritar profundamente. Se não for possível encontrar a palavra impecável, fique em silêncio”[2].

 

O grande teólogo e pensador, Jacques Dupuis, que foi meu orientador do pós-doutorado em Roma, advertia num de seus livros para o tremendo risco da palavra deletéria que marca muitas vezes nosso discurso sobre as outras religiões. Uma linguagem ferina, violenta, desprovida de qualquer delicadeza ou cortesia. Ele falava do fundamental desafio de “purificação da linguagem”, um aprendizado essencial para qualquer pensador que busque maturidade em sua reflexão e visão do mundo[3].

 

Em segundo lugar, o compromisso de não levar nada para o lado pessoal. Como diz Dom Ruiz, “o que quer que aconteça com você, não tome como pessoal”. Se somos presa dessa armadilha, acabamos partilhando de um veneno que nos aprisiona no “sonho do inferno”[4]. Há que considerar que as maiores altercações começam com as palavras. Tenho dito nesses tempos que muitas violências que ocorrem no campo das religiões, provocando intolerâncias inadmissíveis, nascem nos púlpitos, mediante o uso inadequado das palavras. 

 

Mesmo que digam que você é fantástico ou maravilhoso, evite sempre tomar tais palavras como veredictos. Mantenha acesa a humildade. Na visão de Ruiz, quando alguém diz que você é maravilhoso, não é “por sua causa” que estão dizendo. Em muitos casos, o resultado disso será sofrimento, e por nada. É o que também pondera Ana Cláudia, quando nos deixamos envolver por malhas deterioradas, que suscitam redes de conclusões apressadas: “As pessoas à nossa volta tornam-se simples personagens de histórias malucas que construímos em nossa mente, tantas vezes perversa”[5].

 

Em terceiro lugar, o passo de não tirar conclusões precipitadas. Em verdade, “temos a tendência a tirar conclusões sobre tudo. Presumir. O problema é que acreditamos que elas são verdadeiras. Poderíamos jurar que são reais. Tiramos conclusões sobre o que os outros estão fazendo e pensando – levamos para o lado pessoal -, então os culpamos e reagimos enviando veneno emocional com nossa palavra”[6]

 

O monge vietnamita Tich Nhat Hanh, fala do risco das “formações internas” que acabam povoando o nosso mundo interior, a partir de grilhões ou nós que vão se delineando a partir de recepções mal elaboradas. É o que ocorre, por exemplo, quando somos presa de palavras indelicadas ou indevidas. Se o motivo nos escapa, aquilo vai ganhando corpo dentro de nós e firmando nós que são difíceis de serem desatados. Em sua visão, “se não desfizermos esses nós enquanto eles estão se formando, eles ficarão cada vez mais fortes e apertados”[7].

 

Estamos todos envolvidos num jogo de interpretações dos outros que são às vezes de extrema complexidade. É tão comum nos enganarmos em nossas interpretações do outro, por exemplo no campo dos relacionamentos. Nós “frequentemente presumimos que nossos parceiros sabem o que pensamos e que não temos necessidade de expressar nossos desejos. Presumimos que eles irão fazer o que queremos porque nos conhecem muito bem”[8].  

 

O outro com o qual nos relacionamos, está sempre resguardado por um grau de “solidão” e incomunicabilidade, que exclui qualquer possibilidade de arremate nosso. O poeta Rainer Maria Rilke nos adverte contra esse risco, sublinhando que o amor não pode estar livre de uma “solidão” necessária[9]. E esse inacabamento é passo fundamental para o amadurecimento no amor. Respeitar esse “silêncio intransponível” que habita o mundo do outro.

 

Retomando esse terceiro compromisso, Ana Claudia nos fala sobre o risco da baixa auto-estima. Os outros estão simplesmente traçando o ritmo de sua vida, mas a pessoa 

 

“imagina que só se ocupam de pensar que ela não é importante. A baixa auto-estima é um jeito torto de ser egocêntrico. Não somos tão especiais a ponto de todos pensarem que não somos bom o suficiente. O mundo não está girando em torno do nosso umbigo, ou apesar dele. O contrário também é verdadeiro: receber elogios não deve ser levado para o lado pessoal. Se alguém nos acha importantes e interessantes, isso não necessariamente tem a ver conosco. Tem a ver com aquela chave que temos e que abre a porta de bem-estar da pessoa que elogia ”[10].

 

Em quarto lugar, o compromisso da dar o melhor de si. É este compromisso que possibilita o bom enraizamento dos outros três. Estar sempre atento para dar aquilo que de mais precioso existe em nós, o que não significa que este “melhor” aconteça da mesma forma em todos os nossos momentos. Estamos num mundo em movimento: “tudo está vivo e mudando o tempo todo”, e nesse sentido, “fazer o melhor algumas vezes pode produzir alta qualidade e outras vezes não será tão bom”[11]

 

Dar o melhor de si é buscar o equilíbrio necessário, evitando tanto o exagero como a timidez na dinâmica do dar. Com o exagero, topamos no esgotamento de si; com a timidez, podemos produzir frustrações. O horizonte é buscar integramente o viver intensamente a vida, com alegria e generosidade. Estamos no tempo para assumir riscos e ter coragem, e isso significa manter sempre aceso o apreço pela vida, dizendo não quando for o caso e sim, quando tiver que dizer sim.

 

Como pontua Ana Claudia, 

 

“às vezes nosso melhor é estar de mau humor, não sair de casa ou ficarmos zangados. Com meus filhos, com meus amigos, com meu amor, se tenho um dia difícil chego em casa e aviso: hoje não estou bem. Misteriosamente, a louça surge lavada, meu café fica pronto, aparece um chá, alguém põe a minha música favorita para tocar. Ganho sorrisos e carinhos. É mágico perceber como estamos e avisar ao outro (...). Quando estamos muito mal, melhor não fazer, se calar, ou avisar que não estamos bem”[12]

 

E uma dica preciosa que a autora nos dá, sobretudo para esses tempos difíceis: “Talvez o jeito mais fácil de viver bem seria incorporar no nosso dia cinco nuances da existência: demonstrar afeto, permitir-se estar com os amigos, fazer-se feliz, fazer as próprias escolhas, trabalhar com algo que faça sentido no seu tempo de vida, e não só do tempo de trabalhar. Sem arrependimentos”[13].

 

 

 

 

 

 

 



[1]Ana Claudia Quintana Arantes. A morte é um dia que vale a pena. Rio de Janeiro: Sextante, 2019, p. 9.

[2]Ibidem, p. 151.

[3]Jacques Dupuis. O cristianismo e as religiões. Do desencontro ao encontro. São Paulo: Loyola, 2001, p. 321.

[4]Don Miguel Ruiz. Os quatro compromissos. O livro da filosofia Tolteca. 43 ed. Rio de Janeiro: Best Seller, 2021, p. 49-50.

[5]Ana Claudia Quintana Arantes. A morte..., p. 151.

[6]Don Miguel Ruiz. Os quatro compromissos, p. 59.

[7]Tich Nhat Hanh. Paz a cada passo. Como manter a mente desperta em seu dia-a-dia. 3 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1996, p. 87-88.

[8]Don Miguel Ruiz. Os quatro compromissos, p. 61.

[9]Rainer Maria Rilke. Cartas a um jovem poeta. 4 ed. São Paulo: Globo, 2013, p. 55.

[10]Ana Claudia Quintana Arantes. A morte..., p. 152.

[11]Don Miguel Ruiz. Os quatro compromissos, p. 67.

[12]Ana Claudia Quintana Arantes. A morte..., p. 152.

[13]Ibidem, p. 153

quinta-feira, 21 de abril de 2022

Os contrastes luminosos em Clarice Lispector


Os contrastes luminosos em Clarice Lispector 

Faustino Teixeira

IHU/Paz e Bem


No curso de Nádia Battela Gotlib, que está sendo oferecido no portal da Escrevedeira, estamos refletindo sobre algumas cartas, crônicas, contos e romances de Clarice Lispector. A forma como a professora da USP aborda o tema é muito rica, pautada em três décadas de experiência intensa de leituras, reflexões e ensino sobre essa grande escritora brasileira. Dela temos uma das mais ricas biografias de Clarice: Clarice, uma vida que se conta(7 ed - Edusp, 2013), bem como o belo livro: Clarice fotobiografia ( 3 ed - Edusp, 2014).

 

Na segunda aula do curso, dedicada às crônicas, elas nos apresentou e comparou duas crônicas de Clarice que são muito especiais: Espanha (28/11/1970) e Desmaterialização da catedral (20/01/1973). Na primeira crônica, temos o lado vital de Clarice, que através da imagem de uma dança flamenca, aborda o “fôlego humano”, a vontade radical de vida, que mediante modulações sanquíneas expressa gritos e gemidos, num canto impaciente. Ali temos concentrada uma “história de viver, amar e morrer”. O sapateado tumultua o nosso mundo interior e nos faz participar da dança e captar o grito ali implícito. Temos sobretudo vitalidade, mas também uma “rivalidade” singular entre o homem e a mulher. Trata-se, segundo Clarice, de uma dança tão especial “que mal se compreende que a vida continue depois dela”. O que ali importa “é o triunfo mortal de viver”.

 

Na outra crônica, Clarice passa-nos uma imagem de Berna, cidade onde viveu entre 1946 a 1949, um dos períodos mais duros e depressivos de sua vida, mas que igualmente provocou nela uma de suas criações estéticas mais sublimes. Ali escreveu um romance que particularmente gosto muito: Cidade sitiada, bem como viu nasceu seu primeiro filho, Pedro. Na crônica, Clarice fala da catedral de Berna, que ficava próxima de sua casa. Aquela casa de oração “gótica, dura, pura”, onde “o que era pedra rugosa se transformava em lúcido desenho de luz”. Naquele espaço grandioso, a presença de uma força de transparência que amenizava o vazio dos domingos silenciosos. Em Berna, Clarice aguardava com todas as suas energias a vinda da primavera, a libertação da neve dissolvedora da alegria. É como se Clarice, como diz numa crônica, colasse quieta seu ouvido na terra para pressentir o verão, e aguardar com calma “que a neve parasse e os gerânios vermelhos de novo se refletissem na água”. 

 

Lendo com meus aluno Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres(1969), revemos Clarice falar desse contraste do quente da Espanha com o frio da Suiça em Berna. No romance, Clarice repete o nome de Berna algumas vezes, dos “fantasmas da noite de Berna”. Naquela cidade onde os suicidas se jogam da ponte de Kirchenfeld, também próxima da casa de Clarice, pode-se também experimentar, duramente, uma vida “na orla da morte e das estrelas”, numa tensa vibração que anseia pela “luz da aurora”. 

 

No livro Uma aprendizagem, Clarice vai fazer a comparação dos dois climas espirituais contrastantes: o da Espanha e de Berna. Ela, através de Lóri: “É tão vasta a noite da montanha. Tão despovoada. A noite espanhola tem o perfume e o eco duro do sapateado da dança, a italiana tem o mar cálido mesmo se ausente. Mas a noite de Berna tem o silêncio” (p. 33). Diante do silêncio, diz Clarice, não há como esquivar-se: “O coração tem que se apresentar diante do Nada sozinho e sozinho bater em silêncio de uma taquicardia nas trevas”. Para enfrentar esse duro silêncio é necessária a coragem: “Se não há coragem, que não se entre”, diz a narradora. Ao silêncio segue-se a espera, a longa espera que antecede a aguardada “luz da aurora”. 

 

Lembrei-me da aula de uma comparação que fiz com essa passagem de Clarice no livro Uma aprendizagem(p. 35), com a passagem do pacto na encruzilhada, feita por Riobaldo em Grande Sertão Veredas. O jagunço também experimentou a dor do silêncio e do vazio. Tinha saído sozinho para o mistério da noite. Dizia que a aguinha das grotas tem que “gruguejar sozinha”. Riobaldo viver a dor do friúme da noite, até então, depois, poder experimentar o orvalhar, que transformou o seu ser e favoreceu a ele topar com “outra razão” e conseguir, finalmente, atravessar o Liso do Sussuarão. Comentei com meus alunos, que assim que li a passagem de Clarice sobre o silêncio, o que me veio à mente, claramente, foi o trecho do Grande Sertão que aborda a mudança em Riobaldo.

segunda-feira, 18 de abril de 2022

O risco das polarizações excludentes

 O risco das polarizações excludentes

 

Faustino Teixeira

IHU/Paz e Bem

 

 

Gostaria de pontuar uma questão que me irritou profundamente na página de um grupo que eu participo há cerca de 50 anos, e que acabei saindo para evitar maiores dissabores. Alguém postou ali um vídeo antigo de Luiz Felipe Pondé, fazendo críticas à esquerda na Universidade, num estilo que também a mim me irrita, em razão de generalizações que não condizem com a realidade. O que não significa que algumas coisas que ele disse ali podem servir para a nossa reflexão. Mas o que não gostei não foi isso, mas os posicionamentos que se seguiram à postagem, do tipo: que “nojo” esse Pondé; “Não tenho em meu horizonte nenhuma pessoa da direita”. E a mais grave, expressa por alguém que tem presença pública importante na sociedade, que disse: Na verdade, Pondé nunca foi uma pessoa erudita, mas não passa de alguém “raso”. 

 

Digo a vocês que fiquei bastante preocupado com esse tipo de reflexão. Temos todo o direito de não gostar de alguém, mas temos que falar com um “mínimo” de informação sobre aquele que criticamos. Eu, pessoalmente, tenho um carinho pelo Pondé, numa amizade que se teceu ao longo de décadas, o que não significa que perca meu senso crítico com respeito a ele, quando leio artigos seus ou comentários que acho excessivos ou sem pertinência, segundo minha ocular. Artigos que são irradiados sobretudo na Folha de São Paulo, ou posições que ele levanta nas lives ou jornais televisivos. 

 

Mas dizer peremptoriamente, de forma absoluta, que ele seja uma pessoa “rasa” ou “nojenta” é no mínimo carência de bom senso ou inteligência. Quem se deu ao trabalho de ler as obras filosóficas de Pondé, sobretudo as primeiras na sua produção acadêmica, não pode deixar de reconhecer a sua erudição e profundidade. Mesmo nos seus livros mais recentes, que gosto menos, há alguns que trazem reflexões maravilhosas, como nos livros: “Os dez mandamentos (+ 1)” ou “A filosofia e o mundo contemporâneo”. Clássicos e profundos são seus livros: “O homem insuficiente: comentários de antropologia pascalina”; “O pensamento do deserto: ensaios de filosofia, teologia e literatura”; “Crítica e profecia. A filosofia da religião em Dostoiévscki”.

 

Gostaria de saber, realmente, em que medida esses críticos a-priorísticos de Pondé se deram o trabalho de ler uma ou outras dessas obras que citei. Garanto que não. Toda a visão que norteia o pensamento dessa gente é fundada nas posições do Pondé, seja na FSP, nas Lives ou na sua participação dos jornais da Cultura. Mas com ele não conviveram ou estiveram contato com o seu pensamento em outras situações, como no meu caso, que participei com ele, por 12 anos nos Seminários de Mística Comparada aqui em Juiz de Fora, que formaram uma geração. As conferências de Pondé, no campo da mística, literatura, filosofia e cinema sempre foram brilhantes. Não me esqueço de alguns comentários que ele fez sobre cinema que são simplesmente maravilhosos e de profundidade única. E as pessoas desconhecem isso. 

 

Citaria ainda o seu trabalho de orientação acadêmica por largos anos nas Ciências da Religião da PUC-SP, com orientandos que hoje brilham no espaço acadêmico. Pude participar de teses que ele orientou, como acompanhar de perto o pensamento de seus orientandos, entre os quais cito nomes fantásticos como Maria Jose Caldeira do Amaral, Cecy Baptista, Rodrigo Petrônio e tantos outros que vêm atuando de forma maravilhosa no âmbito da teologia e das ciências da religião. Talvez Pondé tenha sido um dos mais brilhantes e generosos orientadores que atuaram na Academia, e que nunca menosprezaram ou humilharam seu orientandos como vemos com certa frequência no Brasil. E poucos sabemos que ele foi demitido da pós-graduação onde atuava (PUC-SP), por motivos que tem traços ideológicos envolvidos... Ao contrário do que se imagina, foi um incentivador singular dos alunos, com uma disposição maravilhosa para ajudar seus orientandos a crescer, não só intelectualmente mas em vida sadia e honesta. Isso nem todos sabem. Sobre o seu pensamento místico escrevi um artigo no livro: Mística e Literatura (2015): Luiz Felipe Pondé – Luzes do Sinai no subsolo. Ali pude expressar com sinceridade o meu carinho à sua reflexão maravilhosa sobre a mística. É talvez hoje no Brasil um dos maiores especialistas em mística medieval e mística judaica, em particular no Hassidismo (em particular A.Heschel). Também um profundo conhecedor de Pascal, Berdiaeff , Bernanos e Franz Rosenssweig. Tudo isso esquecemos...

 

É muito fácil despejar gratuitamente pedras nos outros, enquadrando-os apressadamente dentro de chavões preconceituosos, não se dando ao trabalho de buscar compreender o pensamento do autor na sua integralidade. O que não significa que devamos perder o nosso discernimento crítico com respeito a nossos interlocutores intelectuais. Lembro-me de quantas críticas sofreu Leandro Konder por dar um curso sobre o Marxismo Ocidental com base em José Guilherme Merquior. Como pensador honesto, ele sabia distinguir com clareza os valores que esse autor também possuía, sem perder os toques de sua reflexão crítica a respeito dele. Lembro-me também, com tristeza, como as amarras ideológicas impediram a muitos de nossos intelectuais brilhantes reconhecerem o devido valor a pensadores como Henrique Cláudio de Lima Vaz ou Marcelo Azevedo – e também Clodovis Boff - que em determinado período sofreram injustas críticas em razão das reflexões livres ou novidadeiras que estavam lançando no tempo. 

 

Vendo uma conferência fabulosa de Antonio Riserio na ABL, pude me dar conta desse risco identitário ou das polarizações que ganham espaço em nossas redes de relações na internet. Risério fala da “pauta do binarismo maniqueísta”, que reifica posições de um grupo particular excluindo o desafio do nós. Diz Risério que se quisermos realmente levar a sério o Brasil, interpretando-o em profundidade teremos “que reaprender a dizer nós”. Há que distinguir, diz ele entre “polarizações conviviais” e “polarizações excludentes”. Esse é um desafio essencial.

 

Desculpem o desabafo, mas acho que manter aceso o discernimento e a abertura à diversidade é algo extremamente salutar. E estamos entrando aqui no Brasil num ano que será extremamente difícil, e poderemos cair, como em tempos recentes, a posicionamentos de hostilidades e ódios que são ferinos para uma reflexão mais sadia e honesta sobre a nossa realidade.

quinta-feira, 14 de abril de 2022

Tocados pelo ritmo da imanência

 Tocados pelo ritmo da imanência

 

Faustino Teixeira

IHU/Paz e Bem

 

 

Há uma profunda semelhança entre Clarice Lispector e Hilda Hilst, e das duas com a tradição Zen. Elas focam suas reflexões numa "mística" da imanência. O tempo presente, o instante, a corporalidade do agora, a desconfiança de uma teleologia do além. Estão concentradas, com todas suas energias, no aquém.

 

No romance Perto do Coração Selvagem, Clarice identifica-se com a personagem Joana, para quem a vida era o que "corria em seu corpo", sem maiores desejos ou esperanças.[1]Também em Água viva, Clarice insiste na centralidade do instante. Dizia ali que o instante era o seu "tema da vida". Reiterava: "Só me comprometo com vida que nasça com o tempo e nele cresça: só no tempo há espaço para mim"[2].

 

Igualmente Hilda Hilst, em lindo poema do livro: Poemas malditos, gozosos e devotos:

 

“É neste mundo que te quero sentir

É o único que sei. O que me resta.

Dizer que vou te conhecer a fundo

Sem as bênçãos da carne, no depois,

Me parece a mim magra promessa”.[3]

 

Esse é um tema muito singular, e que tem provocado minha atenção viva nos últimos tempos, e que tem também um toque zen budista fundamental. A questão foi trabalhada por Byung-Chul Han no livro: Filosofia do zen budismo[4]

 

Em certo momento, o autor cita o mestre zen Dung-Chan, que teria querido "estraçalhar ´Deus` ´até a morte`com seu ´sabre`"[5]. Aquela imagem recorrente: "Se encontrares Buda, mate-o". O mestre Dôgen debruça-se sobre esse pensamento do mestre Nangaku Daie (677-744) em seu clássico Zazenshin[6]

 

Matar o Buda significa “cancelar a concepção de Buda”, e deixar aberto o caminho. Não pode ocorrer realização, mas sempre processo. Numa antiga história zen da China antiga, que trata do boi e do pastor, o comentário da figura 8 – que mostra o círculo vazio -, indica-se que devemos passar rapidamente pelo lugar onde vive Buda, visando o lugar onde não vive nenhum Buda[7].

 

Temos assim uma concepção desprovida de transcendência, e nada de sagrado. Toda a perspectiva se volta para a imanência e para o espírito do cotidiano. O “coração do cotidiano é o caminho”, diz a clássica passagem de Wou-men-kouan[8]. É uma radical virada para a imanência, para o aqui, para o meu corpo, convidado a fazer o repertório do despojamento radical. Os grandes patriarcas do zen viviam simplesmente a realidade cotidiana, “comendo arroz e bebendo chá”. Nada de extraordinário ou transcendente. Uma vez perguntado pelo imperador Wu, a respeito do santo ensinamento do budismo, Budidharma respondeu com simplicidade: “Uma imensa vacuidade, e nada o que fazer com a santidade”[9].

 

Para o zen budista, "o centro está em toda parte", "o inteiro universo floresce em uma única flor de ameixa". Não pode haver fuga de mundo, pois "não há nenhum outro mundo". A eternidade é aqui. 

 

E se pensarmos de forma ainda mais radical, há uma rotunda ruptura com a tradição cartesiana, pois no zen se diz: "Nem penso, nem existo". Nada existe além do mundo fenomênico, concentrado ali naquela pequena flor nazuna à beira da velha sebe ao longo da estrada campesina, como indicou Basho[10]. Em cada pétala da flor, vislumbramos "o mais profundo mistério da vida ou do ser" (Suzuki). Segundo Dôgen, “limitar-se ao fato imediato que está diante dos olhos e não buscar mais a fundo nas coisas não constitui o estudo do budismo”[11]. E necessário estar ali presente, com atenção plena, e avançar no mundo do ver.

 

A centralidade visada é a do "não pensamento". Como sublinha Byung-Chul Han, há uma suspensão da pergunta pelo fundamento. O foco é no presente, sem nostalgia... É o que também diz Pessoa, no heterônomo Alberto Caeiro: "O meu misticismo é não querer saber. É viver e não pensar nisso"[12].

 

É a tônica do "viver simplesmente", sublinhada pelo grande mestre Lin Chi[13]. O caminho que se abre, tem terrenal, é o caminho do ver em profundidade: "A montanha é simplesmente montanha e o rio é simplesmente rio", sem qualquer simbolização. É a radical nudez da coisa em si, da bambuidade do bambu. Ou como diz Pessoa: "As estrelas não são senão estrelas, nem as flores senão flores"[14].

 



[1]Clarice Lispector. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 2019, p. 73.

[2]Clarice Lispector. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 2019, p. 28.

[3]Hilda Hilst. Poemas malditos, gozosos e devotos. 2 ed. São Paulo: Editora Globo, 2005, p. 31

[4]Byung-Chul Han. Filosofia do zen budismo. Petrópolis: Vozes, 2019.

[5]Ibidem, p. 21.

[6]Aldo Tollini. Pratica e illuminazione nello Shôbôgenzô. Roma: Ubaldini, 2001, p. 69.

[7]Vittorio Tamaro (a cura di). Vuoto/pieno. Il bue e il suo pastore: una storia zen dall´antica Cina. Roma-Bari, Laterza, 2013, p. 18.

[8]Passe sans porte. Wou-men-kouan. Paris: 1968, p. 79 (regra 19).

[9]Francis Dojun Cook. Come allevare un bue. La pratica dello Zen como è insegnata nello Shôbôgenzô del Maestro Dôgen. Roma: Ubaldini, 1981, p. 59.

[10]D.T. Suzuki; Erich From; Richard de Martino. Zen budismo e psicanálise. São Paulo: Cultrix, 1970, p. 10 (Conferências sobre Zen Budismo, Suzuki).

[11]Aldo Tollini. Pratica e illuminazione nello Shôbôgenzô, p. 66 (Zazenshin).

[12]Fernando Pessoa. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1990, p. 220 (Alberto Caeiro - Ficções do interlúdio).

[13]Toshihiko Izutsu. Hacia una filosofía del budismo zen. Madrid: Trotta, 2009, p. 17.

[14]Fernando Pessoa. Obra poética, p. 217-218.