Mistério e tempo: esboço de
prefácio
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
A ressurreição já esta sendo urdida,
os tubérculos da alegria
estão inchando úmidos,
vão brotar sinos
(Adélia Prado)
Estamos diante de dois temas
apaixonantes: mística e literatura. Muito rica essa iniciativa de Jimmy Sudario
Cabral e Maria Clara Bingemer de poder abrir espaço para essa reflexão tão
atual e enigmática. É fruto de todo um rico trabalho que vem sendo desenvolvido
na PUC-RJ, com o aporte de pesquisadores de outras universidades cariocas.
Poéticas do Mistério, um título que traduz a riqueza de um
encontro de narrativas que buscam se aproximar, tateando, desse horizonte
sedutor e intraduzível. O recurso que anima essa busca é o que temos
disponível: a linguagem. Mas é um instrumento frágil para expressar a dimensão
oceânica do real. Místicos e poetas sabem muito bem disso. O que fazem é
aludir, acenar para a força que habita a experiência, da presença iluminadora
de algo não natural que os envolve e abrasa. Ou como diz Luiz Felipe Pondé, da
“visita daquilo que não cabe na natureza”. Apesar dessa intransparência,
insistem em dizer “algo” sobre isso, descrevendo “sensações”, num movimento
enigmático de traduzir essa cores vibrantes e sutis do cotidiano. Essa é a
grande beleza da narrativa mística e poética. Mas é também uma linguagem
excessiva, em razão da carência de uma gramática que forneça os requisitos para
dizer esse Mistério. O caminho é o da “desnaturalização da língua”, como indica
Michel de Certeau: “atormentar as palavras” para que possam dizer o que
literalmente não conseguem[1].
Essa “alquimia” da palavra foi magnificamente descrita por Arthur Rimbaud, em
sua obra Uma estadia no inferno:
“Inventei a cor das vogais ! –
A negro, E branco, I rubro, O azul, U verde. Regulei a forma e o movimento de
cada consoante e, com ritmos instintivos, me vangloriava de inventar um verbo
poético acessível, algum dia, a todos os sentidos. Eu me reservava a tradução.
A princípio era apenas um estudo. Escrevia silêncios, noites, anotava o
inexprimível. Fixava vertigens”[2].
É
também uma palavra que se nutre do silêncio, de uma passividade densa,
receptiva ao canto das coisas[3]. E
para ouvir esse canto é necessário sair um pouco da praça, deixar por momentos
as “margens da distração” – tão predominantes em nosso tempo – e captar a
“música calada” ou o “vazio de plenitude”, como fala Lao-Tsé. Esses estados
passivos não indicam inatividade, mas sim uma dinâmica de recolhimento, de
renúncia de tudo aquilo que dificulte o trabalho interior para melhor poder
antenar todas as faculdades na escuta atenta do tempo. Sobre isso fala João da
Cruz, mas também Octavio Paz: “Os estados passivos não são apenas experiências
de silêncio e do vazio, mas também momentos positivos e plenos: do núcleo do
ser salta um jorro de imagens”, provocando a inusitada vontade criadora[4].
A teologia cristã debruçou-se sobre
a importância desse “tempo de quietude”, de quietação, de silêncio. O místico
Thomas Merton fala em “trabalho de cela”, de recolhimento silencioso para não
deixar escapar nenhuma das vozes singulares do mundo; tempo de aprendizado para
o exercício de uma palavra nova, diferente, de paz, misericórdia, acolhida e
generosidade[5]. Jürgen
Moltmann fala desse tempo precioso, que é “deixar-se envolver pelo silêncio”,
de forma a facultar a abertura de todos os sentidos para as belezas circundantes.
Não sem razão – sublinha – a bíblia indicou a observância do sábado, esse
“repouso” essencial do sétimo dia[6].
Às vezes o poeta não precisa dizer
muito, basta algumas palavras para expressar sentimentos que são grandiosos.
Como nos haikais japoneses, que
recorrem aos elementos suficientes para “acender a chispa”. Um verdadeiro
exercício espiritual: “perder-se no cotidiano para encontrar o maravilhoso”[7].
Com suas proposições simples e cotidianas, o haikai vem alojado nesse código de
sentimentos nomeado como “emoção poética”, nesse significante difuso e
inefável. O que o poeta faz é simplesmente anotar impressões[8],
captar com o olhar intuitivo os instantes privilegiados:
“Como
admirável
Aquele
que não pensa: ´A vida é efêmera`
Ao
ver um relâmpago” (Bashô)
O
poeta e o místico lidam com o “desconhecido”. Não se contentam com o presente
apresentado, mas um presente grávido de futuro, que se abre ao encontro do que
vem. É rica a gama de sensações ante o
mistério do Outro, de estupefação e alegria. Conjuga-se, simultaneamente, o
assombro e a sedução. Num primeiro momento, a tendência de recuar, mas logo
temperada pela presença que convida. A repulsa inicial vem “sucedida pelo
movimento contrário: não conseguimos tirar os olhos da presença, e nos
inclinamos para o fundo do precipício”[9].
Um leito comum irmana poetas e
místicos: a experiência amorosa, o enamoramento das pequenas grandes coisas e a
atenção aos sinais do cotidiano. Mas tanto na experiência do amor como na
presença do Mistério, o ser humano sente-se despojado de si, arrancado de sua
substância. E curiosamente, no mesmo movimento de êxtase que acompanha a saída
de si, o sujeito se dá conta que esse Mistério confunde-se com o próprio ser,
ou melhor, com a profundidade do ser. Na verdade, como lembrou Ernesto
Cardenal, “no centro de nosso ser não somos nós, mas Outro”[10].
A densidade da experiência amorosa
não destaca o místico ou o poeta da realidade, mas suscita um “desaforado amor
pelo todo”, uma sede irrefreável de adentrar-se na espessura do tempo, com
outra perspectiva e foco. Como diz Alberto Caieiro, no guardador de rebanhos,
“o essencial é saber ver”[11].
Vale para o místico o que disse Rimbaud sobre a fome dos poetas: “Só me
alimento de ar, de rochas, de carvão, de ferro”[12].
Não há nada além do real, mas nele brilha uma Presença, uma “deslumbrante
presença de tudo”. E há que seguir atento esse rastro, esse aroma, essa
fragrância. O grande capadócio, Gregório de Nissa, definia bem esse Mistério,
em sua homilía sobre o cântico dos cânticos: um “perfume difuso” que se espraia
por toda a criação, para além de todos os nomes ou pensamentos.
O eterno brilha no tempo. Não há
outro lugar de sua realização. É no aquém, e não no além, que devemos sondar o
seu rosto e sorver o leite de sua generosidade. A tessitura do verso poético e
da narrativa mística nascem no tecido mesmo da vida. O outro mundo, impermeável
às palavras e distante do olhar superficial, está dentro deste mundo, já o
recordou o místico sufi Rûmî. Para acessá-lo há que lavar as mãos e o rosto “nas
águas deste lugar”. O fino observador, seja poeta ou místico, sabe que “o outro
mundo nos rodeia sempre e não é, de modo algum, o ponto de chegada de nenhuma
peregrinação”[13].
É o sempre-já-aí, que se adentra pelas frestas, sem a intervenção de nossa ação.
A magnífica textura de sua presença e voz, “seu extraordinário estofo” se fazem
sentir mesmo na “escuridão vítrea”, como um lado reverso. A vida inteira, como
sinaliza Lila Azam, com base em Nabokov, é um “labirinto de sinais, débeis
pontos de luz elaborando esquemas ainda desconhecidos”. Diante desta beleza, as
narrativas místicas e poéticas não são senão “textura cintilante”.
Em singular trabalho sobre a
mística, o teólogo Jürgen Moltmann chama a atenção para a espiritualidade dos
sentidos despertos. Sublinha que nós, humanos, não conseguimos alcançar o
mistério de Deus, não por razão de sua distância, mas pela sua ardente
proximidade. Esse tema foi abordado de forma sublime por Nizami (sec. XIII), na
história de um amor impossível. Laila e Majnum. No momento decisivo do
encontro, a impossibilidade do abraço. E a trêmula voz de Laila sussurra: “Nem
tão longe, mas nem tão perto. Agora sou igual a uma vela ardente; um passo mais
perto do fogo e eu serei consumida completamente. A proximidade traz o desastre,
pois os amantes só estão seguros separados”[14].
Mesmo com essa “reserva
escatológica”, o ser humano percebe que é no abandonar-se gratuitamente no
mundo, com suas belezas e sombras, que o Mistério maior, sem nome, mostra sua
face. Mas há que ter sentidos vigilantes para perceber sua presença: olhos
aberto, ouvidos atentos e os outros sentidos despertos. Moltmann adverte que a
experiência de Deus testemunhada na bíblia, não dissocia o que está dentro ou
fora, a religião e a vida. Não há nenhuma reação de hostilidade com o tempo. Em
verdade, o que está no centro é a vida, “a única vida que Deus ama na sua
totalidade. Quem busca Deus, deve amar a vida”[15].
Ao leitor é feito o convite para
adentrar-se nessas “poéticas do mistério”, seja nas reflexões de corte mais
filosófico, literário ou teológico. São caminhos diversificados e
complementares para essa rica aproximação às “nervuras do sagrado”. O mais
importante, porém, é desvencilhar-se das amarras cognitivas e existenciais para
poder se debruçar sobre o mistério da vida e do real. Tanto a literatura como a
mística são alimentos preciosos para a vida do espírito. Não há disparidade
entre interioridade e transcendência, entre imanência e abertura. Faço o mesmo
convite feito por André Comte-Sponville: o de “habitar o universo”, de romper o
ensimesmamento e “sair de si, o mais possível” e “abrir-se para a vida, para o
real, para tudo”[16].
Publicado
em: Jimmy Sudário Cabral & Maria Clara Bingemer (Orgs). Finitude e Mistério.
Mística e literatura moderna. Editora PUC-RJ/Mauad, 2014
[1] Michel de Certeau. La fable mystique 1. Paris: Gallimard, 1982, p. 195. Sobre isso diz
Octavio Paz: “Um poema que não lutasse contra a natureza das palavras,
obrigando-as a ir além de si mesmas e dos seus significados relativos, um poema
que não tentasse fazê-las dizer o indizível não passaria de simples manipulação
verbal”: O arco e a lira, p. 191.
[2] Arthur Rimbaud. Prosa
poética. 2 ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007, p. 161.
[3] O que fundamenta a ciência mística, como diz M. de
Certeau, é esta “montanha de silêncio”.
[4] Octavio Paz. O
arco e a lira. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 45-46 (a citação é da p.
46).
[5] Thomas Merton. Reflexões
de um espectador culpado. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 206-207; Id. Merton na intimidade. Sua vida em seus
diários. Rio de Janeiro: Fisus, 290-302. Para Merton, na solidão da cela ou da
floresta, não se requer concentação, “apenas estar presente”. Uma grande
sabedoria zen.
[6] Jürgen
Moltmann. Spiritualità dei sensi vigili.
Modena: Fondazione Collegio San Carlo, 2006, p. 18.
[7] Octavio paz. Signos
em rotação. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 166.
[8] Roland Barthes. O
império dos signos. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 90-95.
[9] Octavio Paz. O
arco e a lira, p. 139.
[10] Ernesto Cardenal. Cântico
cósmico. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 89.
[11] Fernando Pessoa. Obra
poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992, p. 217.
[12] Arthur Rimbaud. Prosa
poética, p. 171.
[13] Lila Azam Zanganeh. O encantador. Nabokov e a felicidade. Rio de Janeiro: Objetiva,
2013, p. 234.
[14] Nizami. Laila
& Majunun. A clássica história de amor da literatura persa. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p. 162.
[16] André Comte-Sponville. O espírito do ateísmo. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 183 e
185.
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