sexta-feira, 19 de setembro de 2014

O grito de Gaia

O grito de GAIA: uma luta que é nossa

Faustino Teixeira
PPCIR - UFJF

Acabo de assistir, emocionado, ao lindo Colóquio “Os mil nomes de Gaia”. Não pude estar no Rio para participar, como era o meu desejo, mas pude acompanhar quase integralmente as conferências, mesas e debates que se realizaram na Casa de Rui Barbosa durante toda essa semana. Pude não apenas assistir passivamente, mas pude deixar-me penetrar pelas questões, deixar-me hospedar pelos desafios que foram apresentados. Digo que saio muito enriquecido na reflexão, ainda mais eu que busco trabalhar com alegria o tema do DIÁLOGO. O Colóquio tocou para mim no cerne das grandes questões. Infelizmente, nós aqui no Brasil estamos distante deste debate. Como disse com acerto Viveiros de Castro agora na sessão de encerramento, este é o tipo de evento que não se pode divulgar no Brasil, pois fere interesses da Besta Fera, algo que não ganha acolhida pois estamos mergulhados e afogados numa “colisão de indiferença”. Disse ainda que a intenção original era publicar ao final uma reclamação do Rio, de Botafogo, contra tudo o que vem ocorrendo no mundo, e em particular em nosso país: cada árvore derrubada, cada espécie dizimada, cada indígena calado ou massacrado, cada território penetrado com a gana do “capitaloceno”, que tem uma sede monstruosa: e que quer arrancar de nós a última gota do petróleo, o último minério que ainda resiste em nosso subsolo. Tudo muito triste, mas que não apaga em nós a iracúndia sagrada de uma resistência para fazer brilhar a voz dessa “faixa de Gaia” sobrevivente, que luta com vigor em favor “do que de mundo nós – os humanos – deixamos a ele”. Junto com Eduardo Viveiros de Castro estava também na mesa final, a grande pensadora Isabelle Stengers, que fez a última conferência. Ela estava visivelmente emocionada. E a primeira coisa que ela lembrou foi de uma pergunta feita por uma participante do evento num dos dias, estarrecida: “Será que vocês tem filhos?”. E por que disso. Isto em razão de sermos parceiros e cúmplices dessa violenta “dor do mundo”, “dor do planeta”. Dizia, com base numa reflexão de Débora Danowski, que um dos maiores aprendizados é aquele que nos permite ouvir a voz do longínquo, do distante, do diferente. O colóquio pôde abrir esse espaço: de deixar-se habitar pelo outro, que é um dos pontos nevrálgicos de qualquer DIÁLOGO. Nesse “mundo em suspense”, graças às forças que não conseguimos nomear, temos por sorte essa presença “intrusa” de Gaia, que entra perturbando o berço esplêndido do antropoceno ou do capitaloceno: alguém que responde, “de modo brutalmente implacável à transcendência igualmente indiferente, porque brutalmente irresponsável do Capitalismo”. Essa moça Gaia vem nos convocar, impiedosamente, à resistência, à sobrevivência. Como dizem Déborah e Eduardo, ela traduz “um chamado para que resistamos à barbárie que vem”. Ela nos convoca à uma ação estranha, a um “cuidado” estranho, que é o de “resistir ao Antropoceno, isto é, aprender a viver com ele (e como é difícil isso!!!) mas contra ele, isto é, contra nós mesmos. O inimigo, em suma, somos ´nós`”. Em sua fala final, impactante, Isabelle Stengers se pergunta: “O que nós fizemos? Como vamos responder as questões lançadas por nossos filhos e netos a respeito do que deixamos como herança... essa MALDITA herança. E com aquele olhar vivo e sombrio dizia: “Eu hesito entre a vergonha e o pesadelo”. Como sobreviver e manter aceso um sonho, se é que isto é possível? Será que buscando aliados dentre os monstros, ou habitando o ventre do Monstro para resgatar alguma possível aliança (será que isso é possível?). E o triste nisso tudo, é que nossos companheiros intelectuais, ou os cientistas tecnocratas, acabam se aliando à dinâmica necrófila do Antropoceno. A eles, diz Isabelle, falta a imaginação, uma carência que foi cuidadosamente cultivada e acalentada na academia. A imaginação que se requer dos povos de Gaia é diferente, é uma imaginação que nos convoca à contra-mão, que nos ajude a “deserdar” de tudo isso. Não queremos e não devemos, como eles, dar continuidade à morte do mundo. Eles são “matadores de mundo”, nós não, pelo menos não pretendemos. Eles são intelectuais orgânicos de um saber problemático, pois cultivam “potências de agir estranhas” que acabaram povoando o mundo e recebendo o aplauso trágico de seus semelhantes. Isto sim é triste!!! Nós, que nos aliamos ao grito de Gaia buscamos uma lucidez distinta, que mantenha viva a perspectiva de continuidade de mundo, mas sob outros parâmetros. Para finalizar, digo que saio engrandecido com toda essa reflexão. Uma semana que povou o meu mundo interior e que despertou uma alegria que não é ingênua, pois é também tecida por essa dor do mundo, mas que não se deixa vencer por ela.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Mistério e tempo: esboço de prefácio

Mistério e tempo: esboço de prefácio

Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF

A ressurreição já esta sendo urdida,
os tubérculos da alegria
estão inchando úmidos,
vão brotar sinos

(Adélia Prado)

            Estamos diante de dois temas apaixonantes: mística e literatura. Muito rica essa iniciativa de Jimmy Sudario Cabral e Maria Clara Bingemer de poder abrir espaço para essa reflexão tão atual e enigmática. É fruto de todo um rico trabalho que vem sendo desenvolvido na PUC-RJ, com o aporte de pesquisadores de outras universidades cariocas.

Poéticas do Mistério, um título que traduz a riqueza de um encontro de narrativas que buscam se aproximar, tateando, desse horizonte sedutor e intraduzível. O recurso que anima essa busca é o que temos disponível: a linguagem. Mas é um instrumento frágil para expressar a dimensão oceânica do real. Místicos e poetas sabem muito bem disso. O que fazem é aludir, acenar para a força que habita a experiência, da presença iluminadora de algo não natural que os envolve e abrasa. Ou como diz Luiz Felipe Pondé, da “visita daquilo que não cabe na natureza”. Apesar dessa intransparência, insistem em dizer “algo” sobre isso, descrevendo “sensações”, num movimento enigmático de traduzir essa cores vibrantes e sutis do cotidiano. Essa é a grande beleza da narrativa mística e poética. Mas é também uma linguagem excessiva, em razão da carência de uma gramática que forneça os requisitos para dizer esse Mistério. O caminho é o da “desnaturalização da língua”, como indica Michel de Certeau: “atormentar as palavras” para que possam dizer o que literalmente não conseguem[1]. Essa “alquimia” da palavra foi magnificamente descrita por Arthur Rimbaud, em sua obra Uma estadia no inferno:

“Inventei a cor das vogais ! – A negro, E branco, I rubro, O azul, U verde. Regulei a forma e o movimento de cada consoante e, com ritmos instintivos, me vangloriava de inventar um verbo poético acessível, algum dia, a todos os sentidos. Eu me reservava a tradução. A princípio era apenas um estudo. Escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível. Fixava vertigens”[2].

                  É também uma palavra que se nutre do silêncio, de uma passividade densa, receptiva ao canto das coisas[3]. E para ouvir esse canto é necessário sair um pouco da praça, deixar por momentos as “margens da distração” – tão predominantes em nosso tempo – e captar a “música calada” ou o “vazio de plenitude”, como fala Lao-Tsé. Esses estados passivos não indicam inatividade, mas sim uma dinâmica de recolhimento, de renúncia de tudo aquilo que dificulte o trabalho interior para melhor poder antenar todas as faculdades na escuta atenta do tempo. Sobre isso fala João da Cruz, mas também Octavio Paz: “Os estados passivos não são apenas experiências de silêncio e do vazio, mas também momentos positivos e plenos: do núcleo do ser salta um jorro de imagens”, provocando a inusitada vontade criadora[4].

            A teologia cristã debruçou-se sobre a importância desse “tempo de quietude”, de quietação, de silêncio. O místico Thomas Merton fala em “trabalho de cela”, de recolhimento silencioso para não deixar escapar nenhuma das vozes singulares do mundo; tempo de aprendizado para o exercício de uma palavra nova, diferente, de paz, misericórdia, acolhida e generosidade[5]. Jürgen Moltmann fala desse tempo precioso, que é “deixar-se envolver pelo silêncio”, de forma a facultar a abertura de todos os sentidos para as belezas circundantes. Não sem razão – sublinha – a bíblia indicou a observância do sábado, esse “repouso” essencial do sétimo dia[6].

            Às vezes o poeta não precisa dizer muito, basta algumas palavras para expressar sentimentos que são grandiosos. Como nos haikais japoneses, que recorrem aos elementos suficientes para “acender a chispa”. Um verdadeiro exercício espiritual: “perder-se no cotidiano para encontrar o maravilhoso”[7]. Com suas proposições simples e cotidianas, o haikai vem alojado nesse código de sentimentos nomeado como “emoção poética”, nesse significante difuso e inefável. O que o poeta faz é simplesmente anotar impressões[8], captar com o olhar intuitivo os instantes privilegiados:  

            “Como admirável
                  Aquele que não pensa: ´A vida é efêmera`
                  Ao ver um relâmpago” (Bashô)

                  O poeta e o místico lidam com o “desconhecido”. Não se contentam com o presente apresentado, mas um presente grávido de futuro, que se abre ao encontro do que vem.  É rica a gama de sensações ante o mistério do Outro, de estupefação e alegria. Conjuga-se, simultaneamente, o assombro e a sedução. Num primeiro momento, a tendência de recuar, mas logo temperada pela presença que convida. A repulsa inicial vem “sucedida pelo movimento contrário: não conseguimos tirar os olhos da presença, e nos inclinamos para o fundo do precipício”[9].

            Um leito comum irmana poetas e místicos: a experiência amorosa, o enamoramento das pequenas grandes coisas e a atenção aos sinais do cotidiano. Mas tanto na experiência do amor como na presença do Mistério, o ser humano sente-se despojado de si, arrancado de sua substância. E curiosamente, no mesmo movimento de êxtase que acompanha a saída de si, o sujeito se dá conta que esse Mistério confunde-se com o próprio ser, ou melhor, com a profundidade do ser. Na verdade, como lembrou Ernesto Cardenal, “no centro de nosso ser não somos nós, mas Outro”[10].

            A densidade da experiência amorosa não destaca o místico ou o poeta da realidade, mas suscita um “desaforado amor pelo todo”, uma sede irrefreável de adentrar-se na espessura do tempo, com outra perspectiva e foco. Como diz Alberto Caieiro, no guardador de rebanhos, “o essencial é saber ver”[11]. Vale para o místico o que disse Rimbaud sobre a fome dos poetas: “Só me alimento de ar, de rochas, de carvão, de ferro”[12]. Não há nada além do real, mas nele brilha uma Presença, uma “deslumbrante presença de tudo”. E há que seguir atento esse rastro, esse aroma, essa fragrância. O grande capadócio, Gregório de Nissa, definia bem esse Mistério, em sua homilía sobre o cântico dos cânticos: um “perfume difuso” que se espraia por toda a criação, para além de todos os nomes ou pensamentos.

            O eterno brilha no tempo. Não há outro lugar de sua realização. É no aquém, e não no além, que devemos sondar o seu rosto e sorver o leite de sua generosidade. A tessitura do verso poético e da narrativa mística nascem no tecido mesmo da vida. O outro mundo, impermeável às palavras e distante do olhar superficial, está dentro deste mundo, já o recordou o místico sufi Rûmî. Para acessá-lo há que lavar as mãos e o rosto “nas águas deste lugar”. O fino observador, seja poeta ou místico, sabe que “o outro mundo nos rodeia sempre e não é, de modo algum, o ponto de chegada de nenhuma peregrinação”[13]. É o sempre-já-aí, que se adentra pelas frestas, sem a intervenção de nossa ação. A magnífica textura de sua presença e voz, “seu extraordinário estofo” se fazem sentir mesmo na “escuridão vítrea”, como um lado reverso. A vida inteira, como sinaliza Lila Azam, com base em Nabokov, é um “labirinto de sinais, débeis pontos de luz elaborando esquemas ainda desconhecidos”. Diante desta beleza, as narrativas místicas e poéticas não são senão “textura cintilante”.

            Em singular trabalho sobre a mística, o teólogo Jürgen Moltmann chama a atenção para a espiritualidade dos sentidos despertos. Sublinha que nós, humanos, não conseguimos alcançar o mistério de Deus, não por razão de sua distância, mas pela sua ardente proximidade. Esse tema foi abordado de forma sublime por Nizami (sec. XIII), na história de um amor impossível. Laila e Majnum. No momento decisivo do encontro, a impossibilidade do abraço. E a trêmula voz de Laila sussurra: “Nem tão longe, mas nem tão perto. Agora sou igual a uma vela ardente; um passo mais perto do fogo e eu serei consumida completamente. A proximidade traz o desastre, pois os amantes só estão seguros separados”[14].

            Mesmo com essa “reserva escatológica”, o ser humano percebe que é no abandonar-se gratuitamente no mundo, com suas belezas e sombras, que o Mistério maior, sem nome, mostra sua face. Mas há que ter sentidos vigilantes para perceber sua presença: olhos aberto, ouvidos atentos e os outros sentidos despertos. Moltmann adverte que a experiência de Deus testemunhada na bíblia, não dissocia o que está dentro ou fora, a religião e a vida. Não há nenhuma reação de hostilidade com o tempo. Em verdade, o que está no centro é a vida, “a única vida que Deus ama na sua totalidade. Quem busca Deus, deve amar a vida”[15].

            Ao leitor é feito o convite para adentrar-se nessas “poéticas do mistério”, seja nas reflexões de corte mais filosófico, literário ou teológico. São caminhos diversificados e complementares para essa rica aproximação às “nervuras do sagrado”. O mais importante, porém, é desvencilhar-se das amarras cognitivas e existenciais para poder se debruçar sobre o mistério da vida e do real. Tanto a literatura como a mística são alimentos preciosos para a vida do espírito. Não há disparidade entre interioridade e transcendência, entre imanência e abertura. Faço o mesmo convite feito por André Comte-Sponville: o de “habitar o universo”, de romper o ensimesmamento e “sair de si, o mais possível” e “abrir-se para a vida, para o real, para tudo”[16].

Publicado em: Jimmy Sudário Cabral & Maria Clara Bingemer (Orgs). Finitude e Mistério. Mística e literatura moderna. Editora PUC-RJ/Mauad, 2014




[1] Michel de Certeau. La fable mystique 1. Paris: Gallimard, 1982, p. 195. Sobre isso diz Octavio Paz: “Um poema que não lutasse contra a natureza das palavras, obrigando-as a ir além de si mesmas e dos seus significados relativos, um poema que não tentasse fazê-las dizer o indizível não passaria de simples manipulação verbal”: O arco e a lira, p. 191.
[2] Arthur Rimbaud. Prosa poética. 2 ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007, p. 161.
[3] O que fundamenta a ciência mística, como diz M. de Certeau, é esta “montanha de silêncio”.
[4] Octavio Paz. O arco e a lira. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 45-46 (a citação é da p. 46).
[5] Thomas Merton. Reflexões de um espectador culpado. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 206-207; Id. Merton na intimidade. Sua vida em seus diários. Rio de Janeiro: Fisus, 290-302. Para Merton, na solidão da cela ou da floresta, não se requer concentação, “apenas estar presente”. Uma grande sabedoria zen.
[6] Jürgen Moltmann. Spiritualità dei sensi vigili. Modena: Fondazione Collegio San Carlo, 2006, p. 18.
[7] Octavio paz. Signos em rotação. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 166.
[8] Roland Barthes. O império dos signos. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 90-95.
[9] Octavio Paz. O arco e a lira, p. 139.
[10] Ernesto Cardenal. Cântico cósmico. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 89.
[11] Fernando Pessoa. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992, p. 217.
[12] Arthur Rimbaud. Prosa poética, p. 171.
[13] Lila Azam Zanganeh. O encantador. Nabokov e a felicidade. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 234.
[14] Nizami. Laila & Majunun. A clássica história de amor da literatura persa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p. 162.
[15] Jürgen Moltmann. Spiritualità dei sensi vigili, p. 6-7.
[16] André Comte-Sponville. O espírito do ateísmo. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 183 e 185.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

A Meditação Zen e a Recuperação da Memória: breves anotações

A Meditação Zen e a Recuperação da Memória: breves anotações

Faustino Teixeira


Numa de suas obras mais importantes, Bendowa (O caminho religioso), Mestre Dogen enfatiza a importância do Zazen, visto por ele como um “ponto central e irrenunciável” do ensinamento de Sakyamuni (Buda). A tarefa primordial dos Patriarcas Zen foi a de buscar transmitir corretamente, de mestre para discípulo, a prática do Zazen, mantendo vivo o seu ensinamento.

Há que buscar refletir hoje sobre o significado da meditação Zen Budista, com o recurso de textos de Dogen, mas também da límpida e didática reflexão sobre o tema tecida por José Carlos Michelazzo, que a meu ver é um dos mais competentes e generosos autores nacionais que tratam desse tema.

O texto em questão é: “Desapego e entrega: atitudes centrais da meditação Zen Budista e suas ressonâncias nos pensamentos de Eckhart e de Heidegger”. Esse texto foi apresentado no V Colóquio sobre o Pensamento Japonês (São Paulo, novembro de 2010 – e publicado na Revista REVER da PUC-SP, Ano 11, n. 2, jul/dez 2011). Não quero abordar todo o texto, mas um aspecto que considero fundamental apresentado ali.

Michelazzo, de forma divertida, começa sua introdução comentando algumas falas corriqueiras sobre a meditação Zen apresentadas na internet. Numa delas alguém fala da importância da meditação no tempo atual: “Para quem anda atribulado e assoberbado, a meditação pode ser aquela pausa vinda para ´zerar` o cérebro e conseguir, ainda que por instantes, suprimir os pensamentos angustiantes”. Michelazzo se pergunta o que um mestre Zen diria de opiniões como estas. E para nossa surpresa e “desapontamento”, ele provavelmente diria: “Mas isso é verdade!”.

De fato, a meditação provoca tudo isso. Não são observações falsas, diria o mestre, mas “secundárias” diante do que a meditação traz como essencial. Na prática Zen Budista o que a meditação envolve é algo de muita profundidade, que supera a visão da “dualidade ilusória” e aponta para a “não dualidade salvífica”, que é libertadora.

Mas para entender isso é necessário recuperar um dos mais importantes pressupostos do budismo, que está expresso no Sermão das Quatro Verdades, ou seja, a “originação dependente” (pratityasamutpada) ou “originação reciprocamente condicionada”. Esse pressuposto é ESSENCIAL e indica algo que é singular: todos nós estamos envolvidos numa “teia de interdependência” da qual ninguém pode escapar. O que ocorre, infelizmente, é que nos esquecemos disso.

O Zen Budismo propõe ousadamente a busca de recuperação desta perspectiva, num empenho decidido em favor da ultrapassagem desse modo secundário ou ilusório de compreender o real na linha de um modo mais ORIGINÁRIO.

O pensamento ocidental, mesmo aquele mais arrojado de um Martin Heidegger, não conseguiu superar resquícios de antropocentrismo que não dão conta de captar essa não-dualidade. Talvez tenha sido o cerne da crítica feita a Heidegger por alguns pensadores da Escola de Kioto. Entender a “originação dependente” no âmbito do Zen Budismo é buscar captar o significado mais profundo daquilo que Dogen chamou de “prática contínua”.

Numa de suas obras, Gyoji (do Shobogenzo), Dogen sinaliza que “a partir da perspectiva da ´originação dependente (pratityasamutpadativa da , Dogen sinaliza que "o que Dogen chamou de "r a " secundli. Michelazzo, de forma divertida, começa s` (pratityasamutpada), há simplesmente prática contínua”. O que isso significa? Para que haja prática contínua é necessário quebrar o lastro antropocêntrico que mantém aceso o resquício de dualidade e de auto-centralidade.

Quando se supera isso, segundo Dogen, abre-se um novo campo de percepção e penetração do real: abre-se a possibilidade “de experienciar as polaridades do real em sua completa interpenetração”. Gyogi significa exatamente isso: fazer a prática e se manter nela. E isso não é só possibilidade para humanos, mas para todos os seres, daí talvez a dificuldade antropocêntrica de Heidegger. Para Dogen, diferentemente, “a prática contínua pertence a todos os seres do universo”.

Diz Dogen: “Devido à prática contínua há o sol, a lua, as estrelas, a grande terra e a vastidão do espaço (...). Ver uma flor se abrindo ou uma folha caindo no presente momento é ver plenamente o que a prática contínua é. Não há nenhum polimento de espelho ou quebra de espelho que não seja prática contínua”. É uma prática que traduz essa “teia de interdependência que faz com que todas as existências de todos os seres sejam regidas por uma trama global, total, cósmica”.

 Tudo o que está aí, tudo o que é, diz Dogen, está regido por esse exercício contínuo da teia cósmica. Tudo está ligado a uma “prática da coexistência”. Isso é de uma riqueza única... Para ilustrar essa trama, Michelazzo recorre ao exemplo do peixe dado por Dogen: “O peixe nada na água; a água para o peixe é vida (... por isso) se um peixe deixa a água ele, imediatamente, perece” (Dogen).

O que confere significado pleno à vida do peixe é essa

“completa interpenetração com a água. Não há caminhos objetivamente pré-estabelecidos na água para o peixe nadar porque ele não os estuda antecipadamente. Os caminhos surgem para o peixe ao praticar o nado; peixe e água formam uma unidade não-dualística que é costurada pela prática da natação. E quando essa unidade é quebrada, a essência do peixe, sua piscidade, desaparece” (Michelazzo).

Isso é fantástico, e nos ajuda a entender, e como, tudo o que Viveiros de Castro busca traçar sobre o perspectivismo. Mas voltemos ao Zen. Michelazzo assinala que nós, humanos não damos conta de entender “como o peixe se exercita nessa teia cósmica”, e talvez nunca conseguiremos saber: qual “a postura correta adotada pelo peixe para a sua prática contínua”. E aqui Michelazzo encontra uma chave preciosa para entender a situação de nós, modernos, enredados num antropocentrismo desatento. Ele diz:

“Há nessa constatação paradoxal um aceno da condição humana que pode ser aprendida, talvez, pelas seguintes questões: será que a exclusividade do homem não estaria, então, relacionada ao exercício de uma prática especificamente humana, pelo fato dele ser, dentre todos os seres, o ÚNICO QUE SE ESQUECEU DA TEIA CÓSMICA, que perdeu a memória de sua originação dependente, de sua não dualidade? E por esse esquecimento e perda lhe é exigido um ESFORÇO DIFÍCIL E CONTÍNUO para se entregar ao que originariamente ele é, e, assim, fazer o caminho de volta à sua própria casa?” (Michelazzo).

A meditação Zen é, portanto, esse esforço para voltar à casa, exigindo duas atitudes essenciais: desapego e entrega. E o estado meditativo, diferentemente do estado de vigília ou daquele estado de “final de expediente”, fadado ao sono, é marcado por um ritmo distinto: de imobilidade e relaxamento, mas de atenção desperta. Trata-se de um estado de concentração singular, que os budistas nomeiam como samadhi, em que a mente vem mantida “com foco sem foco”, sem apegos a pensamentos.

 Não há mais objeto ou coisa sobre a qual a atenção se debruça, a atenção é agora distinta, plena, e seu ritmo é aquecido pelo vazio, pelo “sem porque”. E nessa sensação de calma e tranquilidade o ser humano tem melhores condições de perceber sua dimensão absolutamente contingente e também a contingência dos fenômenos; e também da insubstancialidade de todas as coisas.