Persp. Teol. 34 (
2002) 155-177
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DIÁLOGO
INTERRELIGIOSO:
O DESAFIO DA
ACOLHIDA DA DIFERENÇA
Faustino Teixeira
“De algo sempre
haveremos de morrer, mas já se perdeu a
conta aos seres
humanos mortos das piores maneiras que
seres humanos foram
capazes de inventar. Uma delas, a mais
criminosa, a mais
absurda, a que mais ofende a simples
razão, é aquela que,
desde o princípio dos tempos e das
civilizações, tem
mandado matar em nome de Deus”
(José Saramago)
Introdução
O diálogo interreligioso
constitui neste início do século XXI um dos desafios mais imprescindíveis para
a humanidade. Tem-se falado inúmeras vezes que a paz entre as religiões constitui condição fundamental
para a paz no mundo. Infelizmente, este horizonte de fraternidade e diálogo
encontra-se ainda bem distanciado. O quadro do tempo atual é revelador de um
espectro de violência e fascínio do mal. Tal cenário revela-se ainda mais
doloroso ao se perceber a presença e o lugar da religião nos embates e
conflitos contemporâneos. Desde as últimas décadas tem-se verificado “um
surpreendente surto de violência condicionada pela religião. Em todos os
continentes surgiram conflitos étnicos, nacionais ou sociais, onde a religião
desempenhou um papel fatídico”1. Trata-se de uma realidade que tem
levado alguns intelectuais a sinalizar a impossibilidade de uma aproximação ou
congraçamento dos seres humanos através das religiões e a proclamar a
vinculação entre religião e violência. Denuncia-se o “fator Deus” ou as
violências que ocorrem “em nome de Deus”, abrindo corações e mentes para as
intolerâncias mais sórdidas2.
_______________________________________________
1 K-J.KUSCHEL & W.BEUKEN, “Editorial
- A violência assusta – como superá-la”, Concilium (Br) n. 272 (1997) 5. Ver
também: F.HOUTART, “O culto da violência em nome da religião”,Concilium (Br) n.
272 (1997) 7-17.
2 J.SARAMAGO, “O fator Deus”, Folha de
São Paulo, 19 de setembro de 2001, p. 8 – Especial Guerra na América;
S.RUSHDIE, “O nome do problema é Deus”, Folha de São Paulo, 17 de março de
2002, p. A 29; U.GALIMBERTI, “Quando gli dei prendono le armi”, La Repubblica,
06 novembre 2001.
O discurso teológico sobre a força ética das religiões
esbarra muitas vezes na dinâmica concreta e histórica das agressões,
fanatismos, ódios e hostilidades inter-religiosas. Em muitos casos, as posturas
de intransigência e exclusão apoiam-se em sentimentos arraigados de
superioridade, arrogância identitária e pretensão exclusiva de verdade, que
impossibilitam qualquer exercício de fraternidade recíproca. Há um traço de
ambiguidade ou enigma que atravessa todas as religiões, implicando a presença
de um dualismo que pode possibilitar tanto a afirmação de humanidade, como o
acirramento da violência3. Em razão de sua inserção histórica, as
religiões podem, contrariando a sua motivação original, exercer uma
“instrumentalização do sagrado” em favor da afirmação de seu poder particular
com respeito aos outros.
O grande, difícil e arriscado desafio do diálogo interreligioso
consiste em apontar e demonstrar a possibilidade de um horizonte de conversação
alternativa; de indicar que a violência religiosa não faz parte da essência da
religião, mas constitui um desvio ou traição do dinamismo mais profundo que
anima a relação do ser humano com o Absoluto. Na verdade, “a relação autêntica
com o Absoluto como tal não é violenta sob nenhum aspecto, antes pelo
contrário. Ela desperta a coragem inabalável para produzir mais humanidade em
todos os setores da vida”4. Um dos imperativos mais essenciais do
diálogo inter-religioso neste momento histórico diz respeito à convocação de
todos em favor da paz, bem como a retomada do genuíno sentimento religioso, o
único capaz de inspirar os valores fundamentais contra a violência e os
conflitos. Como indicou João Paulo II na recente jornada de oração em favor da
paz, realizada em janeiro de 2002 na cidade de Assis, “o genuíno sentimento
religioso conduz de fato a perceber o mistério de Deus, fonte da bondade, e
isto constitui uma fonte de respeito e de harmonia entre os povos”5.
O diálogo inter-religioso baseia-se na consciência viva do valor da alteridade
e da riqueza da diversidade. Sem desconhecer a singularidade das diferenças, o
diálogo aposta na possibilidade da renovação facultada pelo encontro. O grande
perigo que ronda o tempo atual é o da afirmação dogmática de comunidades
humanas que funcionam como “mônadas semânticas, quase sem janelas”,
especializadas em cultivar a arte do solilóquio e da surdez. O risco maior não
está na afirmação e na celebração do plural, como pensam alguns, mas na imagem
sombria de um mundo repleto de pessoas que glorificam os seus heróis ou a si
mesmas e diabolizam os seus inimigos6.
__________________________________
3
C.GEFFRÉ, Profession Théologien: quelle pensée chrétienne pour le XXI siècle? Paris: Albin
Michel, 1999, pp. 33-34 ( tr. it. : Professione teologo: quale pensiero
cristiano per il XXI secolo? Cinisello Balsamo: San Paolo, 2001 ).
4 E.SCHILLEBEECKX, “Religião e
violência”, Concilium (Br) n. 272 (1997) 171.
5 JOÃO PAULO II, “Discorso di Giovanni
Paolo II”, Il Regno-Documentin. 3 (2002) 76.
6 G.GEERTZ, Nova luz sobre a
antropologia, Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 84.
As religiões podem estar envolvidas neste círculo
isolacionista e imobilizadas pela incomunicabilidade dogmática, mas podem
também exercer sua influência em favor de um encontro renovador e enriquecedor,
direcionadas à solidariedade mútua, à paz e o bem da humanidade. É nesta
segunda direção que se encontra a aposta dialogal, e a possibilidade única das
religiões poderem adquirira credibilidade: dialogar para não morrer.
No âmbito da reflexão teológica
católica, a questão do diálogo inter-religioso tem sido objeto de acaloradas
discussões, apresentando-se hoje como um dos grandes desafios para toda a
teologia neste século XXI. Há ainda muitas resistências explícitas ou veladas
no campo católico para a abertura interreligiosa. Os sinais da abertura
conciliar esbarram em iniciativas restauradoras mais temerosas diante do
“risco” da alteridade e vinculadas à afirmação exclusiva da identidade. Esta
fixação nas diferenças confessionais, como bem expressou um dos grandes
teólogos do ecumenismo, decorre mais do medo da perda da identidade do que do
interesse profundo pela verdade7.
Na lógica da defesa da identidade encaixa-se
perfeitamente a distinção estabelecida entre fé teologal e crenças e a negação
do pluralismo religioso de princípio, como aparecem delineados na declaração da
Congregação para a Doutrina da Fé, Dominus Iesus (2000). A hipótese aqui
defendida, e que será abordada ao longo da reflexão, indica a plausibilidade de
um caminho diverso. Segundo esta hipótese, não pode haver real diálogo interreligioso
sem uma consideração de abertura ao pluralismo de princípio, bem como uma
perspectiva de real humildade face aos desígnios gratuitos e misteriosos do
Deus sempre maior.
1.
O Diálogo interreligioso e suas condições
O ser humano é um nó de relações, não podendo ser compreendido
de forma destacada do outro com o qual se comunica. O diálogo constitui, assim,
uma dimensão integral de toda a vida humana. É na relação com o tu, que o
sujeito constrói e aperfeiçoa a sua identidade. Trata-se de uma experiência
humana fundamental e “passagem obrigatória” no caminho da auto-realização do
indivíduo e da comunidade humana8 O que conta no diálogo é a
reciprocidade existencial, o “intercâmbio
de dons”, a dinâmica relacional que envolve a semelhança e a diferença em
processo rico de abertura, escuta e enriquecimento mútuos. É neste contexto
dialogal que a identidade vai ganhando fisionomia e sentido, enquanto expressão
de uma busca que é incessante, árdua e criativa.
Dentre a extensa variedade de
formas de diálogo, situa-se o diálogo inter-religioso com sua peculiaridade
própria. Trata-se do “conjunto das relações inter-religiosas, positivas e
construtivas, com pessoas e comunidades de outras confissões religiosas, para
um mútuo conhecimento e um recíproco enriquecimento”9.
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7
J-M R.TILLARD, Credo nonostante..., Bologna: EDB, 2000, p. 34.
8
M.BUBER, Eu e tu, São Paulo: Cortez & Moraes, 1977, p. 32; FABC,
“Teses sobre o diálogo
inter-religioso”,Sedoc 33 / n. 281
(2000) 51; JOÃO PAULO II, Ut Unum Sint, São Paulo: Paulus, 1995, n. 28.
9 SECRETARIADO Para os Não Crentes, A
Igreja e as outras religiões, São Paulo: Paulinas, 2001, n. 3. Trata-se do
documento conhecido como Diálogo e Missão (DM), publicado originalmente em 1984.
O diálogo interreligioso
instaura uma comunicação e relacionamento entre fiéis de tradições religiosas
diferentes, envolvendo partilha de vida, experiência e conhecimento. Esta
comunicação propicia um clima de abertura, empatia, simpatia e acolhimento,
removendo preconceitos e suscitando compreensão mútua, enriquecimento mútuo,
comprometimento comum e partilha da experiência religiosa. “O diálogo
interreligioso acontece em vários níveis e envolve tanto indivíduos como
comunidade. Movido pelo espírito vindo de aspectos exteriores para aspectos
mais interiores da vida, ele leva a níveis mais profundos de comunhão no
Espírito, sem detrimento da experiência religiosa específica de cada comunidade, mas aprofundando-a”10.
Este relacionamento inter-religioso ocorre entre fiéis que estão enraizados e
compromissados com sua própria fé, mas igualmente disponíveis ao aprendizado
com a diferença.
Uma das condições mais
essenciais para o diálogo interreligioso é a virtude da humildade. No diálogo
experimenta-se a consciência dos limites e a percepção da presença de um
mistério que a todos ultrapassa. O diálogo envolve o discernimento da
contingência e vulnerabilidade, e isto implica uma disposição de escuta do
outro que interpela. O diálogo exige humildade, abertura e respeito ao
diferente. Não basta, porém, abrir-se à diversidade, mas igualmente afirmar a
liberdade e a dignidade do outro, deixar-se interpelar por sua verdade. Daí a
exigência do reconhecimento do “valor da convicção religiosa do outro”, e de
que esta convicção funda-se numa “experiência de revelação”11. Na
ausência de tal reconhecimento, priva-se o diálogo do terreno comum que
possibilita sua realização efetiva. Assim como o diálogo exige como condição a
fidelidade à própria identidade, exige também o respeito à dignidade do outro
em suas convicções. De forma análoga, o outro é alguém animado pelo mesmo tipo
de engajamento absoluto com respeito à sua verdade.12
O diálogo interreligioso
pressupõe convicção religiosa, exigindo de seus interlocutores um empenho de
honestidade e sinceridade, que envolve a integralidade da própria fé. Para ser
autêntico, o diálogo exige reciprocidade: “É evidente que os cristãos não podem
dissimular, na práxis do diálogo interreligioso, a própria fé em Jesus Cristo.
Por sua vez, reconhecem nos seus interlocutores, que não partilham a fé que
eles têm, o direito e o dever inalienáveis de se empenhar no diálogo
preservando suas próprias convicções pessoais – e também as pretensões de
universalidade que podem fazer parte da fé dos mesmos”13. Junto com
a adesão, vem a abertura e o acolhimento do outro. O diálogo requer igualmente
como disposição “a prontidão em se deixar transformar pelo encontro”14.
A afirmação e plausibilidade da convicção religiosa articulam-se com o
imperativo de abertura, e isto exige a não absolutização do que é relativo, um
risco sempre presente em toda fé religiosa.
_____________________________
10 FABC, Teses sobre o diálogo interreligioso,
doc.cit., p.62 e tb. 60-61. Como indica o documento da FABC, “o diálogo é um
processo. Ele começará normalmente com a tolerância e a coexistência pacífica.
Então ele vai se transformando em um diálogo de vida, promovendo a aceitação e
até mesmo a admiração mútuas.”. Como passos seguintes podem ocorrer a
colaboração em projetos comuns e a partilha em profundidade das experiências
espirituais. Ibidem, p. 63.
11P.
TILLICH, Le Christianisme et les religions, Paris: Aubier, 1968, p.133. Este traço
essencial do diálogo refere-se exclusivamente à
“dignidade pessoal das partes, não aos conteúdos doutrinais”:
CONGREGAÇÃO para a Doutrina da Fé, Declaração Dominus Iesus, São Paulo:
Paulinas, 2000, n.22.
12 C. GEFFRÉ, Croire et interpréter,
Pris: Cerf, 2001, p. 102-103 (tr. It.:
Credere e interpretare: la svolta erneneutica dela teologia, Brescia:
Querianiana, 2002).
13 J.DUPUIS,Rumo a uma teologia cristã
do pluralismo religioso, São Paulo: Paulinas, 1999, p. 516.
14 PONTIFÍCIO Conselho para o Diálogo
Interreligioso, Diálogo e anúncio, Petrópolis: Vozes, 1991, n. 47. Este
documento será cifrado como DA.
A abertura à verdade, é outra
disposição fundamental na dinâmica interreligiosa. Para que haja diálogo, é
necessário que os interlocutores estejam dispostos não somente a aprender e
receber os valores positivos presentes nas tradições religiosas dos outros, mas
igualmente disponíveis e abertos à verdade que os envolve e ultrapassa; é
indispensável que esta busca da verdade ocorra sem restrições mentais, em
espírito de acolhida e abertura, pois ninguém pode pretender uma assimilação
plena deste horizonte que está sempre adiante. O diálogo interreligioso
acontece entre interlocutores que estão engajados com uma forma particular de
apropriação da verdade. Na medida em que ocorre o confronto de verdades, que
são distintas, mas não necessariamente contraditórias, processa-se uma
transformação em cada um dos interlocutores, que são provocados a descobrir uma
nova forma de apropriação de sua própria fé. Como desdobramento da dinâmica
dialogal, ocorre necessariamente uma interpretação nova da própria tradição. O
diálogo inter-religioso faculta, assim, a experiência rica e inovadora de
“celebração de uma verdade que é mais elevada e mais profunda que a verdade
parcial” reivindicada pelos interlocutores em questão, ainda que os mesmos
possam estar persuadidos de seu engajamento incondicional com sua verdade
particular15. Como indicou Joseph O’Leary, filósofo e teólogo
irlandês, “a verdade da religião não reside plenamente em nenhuma religião, mas
somente na relação
ecumênica das grandes tradições”16 O diálogo é sempre “uma viagem
fraterna” (DA 79), um “caminhar em conjunto em direção à verdade” (DM 13). Mas
esta verdade está sempre adiante, é surpresa permanente. No encontro com o
outro abre-se a possibilidade de captar dimensões inusitadas desta verdade que
é aletheia: permanente desvelamento. O outro é capaz de favorecer a seu
interlocutor, no diálogo, a captação de certos aspectos ou dimensões do
mistério divino que escapam à sua visada. Para o cristão, em particular, este
desafio de aprendizado é fundamental: “Existem, pois, aspectos ‘verdadeiros’,
‘bons’, ‘belos’ – surpreendentes – nas múltiplas formas (presentes na
humanidade) de pacto e entendimento com Deus, formas que não encontraram nem
encontram lugar na experiência específica do cristianismo”17.
Esta experiência de caminhada
conjunta, de mútuo aprendizado e enriquecimento, é uma experiência
fundamentalmente religiosa e espiritual. Na sua base encontra-se uma
espiritualidade. Há uma vinculação íntima entre o diálogo inter-religioso e a
espiritualidade. Não é sem razão que a partilha das experiências de oração e
contemplação, enquanto expressões da busca do Mistério, vem identificada como o
nível mais profundo do diálogo inter-religioso18.
___________________________
15 C.GEFFRÉ, Croire et interpréter,
op.cit., p. 103.
16 J.O’LEARY, La vérité chrétienne à
l’âge du pluralisme religieux, Paris: Cerf, 1994, p. 46. Em direção semelhante
afirmou Schillebeeckx que “há mais verdade (religiosa) em todas as religiões no
seu conjunto do que numa única religião, o que também vale para o
cristianismo”: E.SCHILLEBEECKX, História humana revelação de Deus, São Paulo:
Paulus, 1994, p. 215.
17 E.SCHILLEBEECKX, História humana
revelação de Deus, op.cit., p. 215; J.DUPUIS,Rumo a uma teologia cristã do
pluralismo religioso, op.cit., p. 521.
18 SECRETARIADO para os Não-Cristãos, A
igreja e as outras religiões, doc.cit., n.35.
Trata-se da dimensão mais íntima
e significativa da comunicação, transbordando o âmbito do conhecimento
conceitual e das formulações da linguagem comum.
Vive-se a
profundidade de uma “comunhão acima do nível das palavras”, uma experiência
autêntica e rica, que não se detém diante das diferenças, e que se encontra
envolvida e abraçada pelo mistério do totalmente Outro19. O diálogo
inter-religioso é um ato religioso, um ato espiritual, pois pressupõe uma
atitude de confiança e entrega a um mistério sempre maior, que é dom e surpresa
permanente. Daí a significativa imagem do diálogo como uma “viagem fraterna” de
uns e outros, em clima de igualdade, em direção a tal mistério. O diálogo
verdadeiro é animado por liberdade total, não podendo ser movido por
oportunismos táticos. Trata-se de uma realidade auto-finalizada, que tem o seu
próprio valor, não podendo ser compreendida em função de uma causa própria ou
particular. O diálogo não pode exigir nada do outro, senão a disposição de
ouvi-lo, compreendê-lo e respeitá-lo. O que ocorre no diálogo é uma “conversão
mútua”, não enquanto mudança de religião, mas enquanto transformação dos
interlocutores em função do mistério da acolhida da diferença, a acolhida do
outro, sem restrições, em sua diferença irrevogável20.
2.
O Diálogo como
adesão e abertura
No livro do profeta Isaías encontra-se uma pista importante
para a compreensão do diálogo interreligioso. O texto apresenta de forma
admirável os dois eixos sobre os quais deve-se apoiar todo diálogo: o empenho
de afirmação da identidade e o desafio da abertura: “Alarga o espaço da tua
tenda, estende as cortinas das tuas moradas (...), alonga as cordas, reforça as
estacas” (Is 54,2). No diálogo apresentam-se fiéis que estão comprometidos com
a sua própria fé, mas igualmente disponíveis e abertos ao apelo que vem do
outro interlocutor e do mistério que os envolve. Não ocorre uma dispersão da
identidade ou fusão da mesma num “sincretismo” vago, mas a afirmação de sua
singularidade. A abertura ao outro acontece sempre “no seio de um compromisso determinado”,
no espaço de uma tradição que é assumida e amada21. Um dos grandes
mestres do diálogo, Dalai Lama, tem sempre enfatizado em suas reflexões que a
afirmação do valor da própria tradição constitui requisito para melhor
reconhecer o valor e a preciosidade das outras tradições religiosas22.
______________________________________
19 O grande místico cristão, Thomas Merton,
expressou e vivenciou de forma admirável esta experiência de comunicação em
profundidade. Para ele, só é capaz de alcançar tal nível de relação aquele que
ultrapassa a prática das tradições exteriores: “deve ser um exemplo vivo da
realização tradicional e interior. Deve estar completamente aberto à vida e à
nova experiência por ter utilizado integralmente sua própria tradição e a ter
ultrapassado. Isto lhe permitirá encontrar a disciplina de um outro, a tradição
aparentemente estranha e remota, e encontrar um terreno comum de entendimento
verbal com ele. O nível ‘pós-verbal’ seria, pelo menos idealmente, aquele em
que ambos se encontram além de suas próprias palavras e de seu próprio
entendimento, no silêncio de uma experiência máxima, suprema, que possivelmente
não poderia ocorrer se eles não se tivessem encontrado e falado...”: T.MERTON,
O diário da Ásia, Belo Horizonte: Editora Vega, 1978, p. 248.
20 J.DUPUIS,Il cristianesimo e le
religioni, op.cit., p. 27; R.PANIKKAR, Entre Dieu et le cosmos, Paris: Albin
Michel, pp. 150 ,167,172.
21 P.RICOEUR, Em torno ao político:
leituras 1, São Paulo: Loyola, 1995, pp. 188-189; J- M.R.TILLARD, Dialogare per
non morire, Bologna: EDB, 2001, pp. 34-35.
22 DALAI LAMA, A bondade do coração:
uma perspectiva budista sobre os ensinamentos de Jesus, Lisboa: Edições Asa,
1997, p. 55;
O diálogo é melhor realizado quando firmado no solo da
tranquilidade e harmonia de uma fé assumida e aprofundada. Em experiência
singular vivida por monges e monjas cristãos do Mar Musa, na Síria, o diálogo é
por eles percebido como exercício amoroso que se encontra ancorado numa firme experiência de adesão de
fé. A profundidade da abertura à religião muçulmana, como eles mesmos
confirmam, ocorre em virtude da tranquilidade da fé em Jesus Cristo, e não de
uma dúvida a seu respeito23.
Importantes autores da antropologia contemporânea têm
sublinhado a dimensão universal do fenômeno do etnocentrismo. A dicotomia “nós
e outros”, a sensação de
centralidade de um universo privado, constituem tendências
de afirmação e reforço da identidade cultural. Há um sentido positivo inscrito
em tal fenômeno, enquanto garantia de fidelidade a um conjunto de valores, mas
há que manter sobre ele um permanente controle. Tal fidelidade pode, por sua
vez, provocar insensibilidade a outros valores e uma crescente
incomunicabilidade: “nós somos nós, eles são eles”24. O desafio do
diálogo consiste em articular e harmonizar o desejo e o valor da distinção que
marca cada identidade singular e a provocação do aprendizado da alteridade: “se
quisermos ser capazes de julgar com largueza, como é óbvio que devemos fazer,
precisamos tornar-nos capazes de enxergar com largueza”25.
Em razão do etnocentrismo, há uma grande dificuldade de se
perceber a diversidade das culturas como um fenômeno natural. Como sublinha
Levi Strauss, tende-se a ver a diversidade como “escândalo” ou “monstruosidade”
e considerar a própria sociedade e o modo particular de vida como centro
referencial: o mais correto e o mais natural. Para ilustrar esta perspectiva,
ele toma o exemplo do viajante sentado à janela de um trem que se move em seus
trilhos próprios, com sua própria velocidade e direção. Os trens que passam em
sentido paralelo, são outros trens, mas vão em direção similar e com
velocidades não muito diferentes. Estes ainda são razoavelmente visíveis,
quando olha dos do compartimento do primeiro trem, e deles pode-se acumular
alguma informação. Mas há também os trens que passam em sentido inverso. Deles
não se pode adquirir senão uma “impressão confusa”, reduzindo-se a “uma
perturbação momentânea do campo visual”. Sua realidade, na prática, provoca
irritação, pois interrompe o curso normal da “plácida contemplação da paisagem”26.
O exemplo apontado por L.Strauss, busca indicar que cada membro de um cultura
encontra-se solidariamente ligado a ela, assim como o viajante ao seu trem.
Desde o nascimento, acumula-se no indivíduo, por diligências diversificadas, um
sistema complexo de referências, traduzido em juízos de valor, motivações e
interesses. Este sistema o acompanha permanentemente, e “as realidades
culturais de fora só são observáveis através das deformações por ele impostas,
quando ele não nos coloca mesmo na impossibilidade de aperceber delas o que
quer que seja”27.
_________________________________
23 M.LUCCHESI, Os olhos do deserto, Rio
de Janeiro: Record, 2000, pp. 56-57.
24 C.GEERTZ, Nova luz sobre a
antropologia, op.cit., pp. 69-73.
25 Ibidem, p. 85.
26 L.STRAUS, “Raça e história”, in Id.
Os pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1980, pp.66-67; C.GEERTZ, Nova luz
sobre a antropologia, op.cit., p. 75.
27 L.STRAUSS, “Raça e história”, in
op.cit., p. 66.
O mundo da diferença vem relegado ou desfocado em razão dos
limites de informação e significação implicados na dinâmica de um lugar cultural
determinado. O alcance daquilo que se pode pensar, apreciar, julgar e amar,
encontra-se “aprisionado nas fronteiras de nossa sociedade”. A abertura ao
diferente exige o exercício da ultrapassagem destas fronteiras, de forma a
poder captar as “lacunas” e “assimetrias” que indicam o caminho de compreensão
da alteridade. Desconhecer ou “obscurecer
essas lacunas e assimetrias, relegando-as ao campo da diferença passível
de ser reprimida ou ignorada, da mera dessemelhança, que é o que o
etnocentrismo faz e está destinado a fazer (...), equivale a nos isolar desse
conhecimento e dessa possibilidade, em termos literais e rigorosos, de mudarmos
de ideia”28.
Este mesmo tipo de reflexão pode ser aplicado ao campo das
religiões e do diálogo inter-religioso, servindo de referência para se poder
compreender a complexidade da questão e suas decorrentes exigências. Um dado
prévio a qualquer reflexão e exercício do diálogo consiste no reconhecimento da
realidade e valor da alteridade. A outra religião vem sempre resguardada por um
mistério de incomensurabilidade e irrevogabilidade. Como indicou o teólogo Paul
Knitter, “quanto mais se tenta penetrar no mundo de uma outra tradição
religiosa, mediante encontros pessoais e o estudo dos textos, tanto mais se
depara com um muro de diferenças que são, no final, incompreensíveis”29.
Conhecer e avaliar realmente uma outra religião implicaria “romper” com uma
perspectiva determinada e deslocar-se para este outro referencial. Não seria suficiente um mero conhecimento
dos fatos de sua tradição, mas implicaria “entrar na pele do outro, calçar seus
sapatos, ver o mundo, de certo modo, como o outro vê, (...) colocar para si as
questões do outro, penetrar no sentido que o outro tem de ‘ser um hindu, um
muçulmano, um judeu, um budista, ou qualquer outra coisa’”30. Uma
semelhante abertura é extremamente difícil, exigindo uma singular e excepcional
capacidade de compreensão, de empatia e simpatia interior. Mas independente dos esforços
empenhados, haverá sempre a permanência de um enigma e de um mistério que pulsa
no mais íntimo da outra tradição, que garante e preserva um espaço irredutível
às pretensões de um olhar estrangeiro.
A presença e o reconhecimento deste enigma não obstruem,
porém, o desafio do dinamismo dialogal. O outro é “mysterium tremendum”, que
jamais pode ser complementado ou reduzido em seu significado único. Mas é
também “mysterium fascinans”, enquanto convida ao encontro e se disponibiliza
ao aprendizado da diferença. Não se trata, porém, de desconhecer a possibilidade
de aprendizados mútuos e enriquecimentos recíprocos, levados a efeito pela
salutar prática dialogal, mas de resguardar o que há de singular no outro:
enquanto houver história, haverá igualmente uma situação de “contestação
recíproca” e agônica que é salutar.
______________________________________
28 C.GEERTZ, Nova luz sobre a
antropologia, op.cit., p. 76.
29 P.KNITTER, Una terra molte
religioni, Assisi: Cittadella Editrice, 1998, p. 33.
30 In J.DUPUIS, Rumo a uma teologia do
pluralismo religioso, op.cit., p. 517-518.
3.
A acolhida do
pluralismo de princípio
As religiões não são apenas genuinamente diferentes, mas
também autenticamente preciosas. Há que honrar esta alteridade em sua
especificidade peculiar. E honrar a alteridade é ser capaz de reconhecer o
valor e a plausibilidade do pluralismo religioso de direito ou de princípio. A
diversidade religiosa deve ser reconhecida não como expressão da limitação
humana ou fruto de uma realidade conjuntural passageira, mas como traço de
riqueza e valor. A diferença deve suscitar não o temor, mas a alegria, pois
desvela caminhos e horizontes inusitados para a afirmação e crescimento da
identidade. Os outros não são leões que rugem (1 Pd5,8), mas janelas que
possibilitam a oxigenação das identidades particulares. A abertura ao
pluralismo constitui um imperativo humano e religioso. Trata-se de uma das
experiências mais enriquecedoras realizadas pela consciência humana: o
reconhecimento do valor da diversidade como traço e riqueza da experiência
humana31.
Reconhecer o pluralismo religioso de princípio, e não apenas
de fato, significa desocultar o significado positivo das diversas tradições
religiosas na globalidade do único desígnio salvífico de Deus. Esta acolhida
positiva da pluralidade revela uma ampliação do olhar e atesta “a generosidade
superabundante com que Deus se manifestou de muitos modos à humanidade e a
respost a multiforme que os seres humanos deram à auto-revelação divina nas
várias culturas”32. A diversidade não vem percebida como limite, mas
como sinal dos dons ilimitados “escondidos” por Deus na criação e na história; um “patrimônio espiritual”
que revela “todas as riquezas da sabedoria infinita e multiforme de Deus”33.
Antes mesmo que os seres humanos se dispusessem a buscar a Deus, eles já se
encontravam num espaço habitado por sua presença.
O reconhecimento do pluralismo religioso de direito vem
sendo partilhado por significativos teólogos católicos nestes últimos anos,
apesar da resistência encontrada em outros autores ou representantes do magistério
eclesiástico.34
________________________________________
31 R.PANIKKAR, Entre Dieu et le cosmos,
op.cit., p. 166.
32 J.DUPUIS, Rumo a uma teologia cristã
do pluralismo religioso, op.cit., p. 526. Para
Dupuis, o pluralismo religioso encontra
o seu fundamento na “imensidade de um Deus que é amor e comunicação”. A
iniciativa de auto-comunicação deste mistério de amor – muitas vezes e de forma
diversificada - nas tradições religiosas, expressa a natureza mesma de sua
comunicação transbordante à humanidade: uma maneira de “prolongar para fora da
vida divina a comunicação plural intrínseca àquela mesma vida.”: J.DUPUIS, Il
cristianesimo e le religioni, op.cit., pp. 468 469 e 43.
33 SECRETARIADO para os Não-Cristãos. A
Igreja e as outras religiões, doc.cit., ns. 41, 22 e26.
34 Cf. E.SCHILLEBEECKX, História humana
revelação de Deus, op.cit., pp. 212 e 216; J.DUPUIS, Rumo a uma teologia cristã
do pluralismo religioso, op.cit., pp. 526-528; Id.Il cristianesimo e le
religioni,op.cit., pp. 42-43 e 466-470; C.GEFFRÉ, Croire et interpréter,
op.cit., pp. 93-100; M.AMALADOSS, Rinnovare tutte le cose: dialogo, pluralismo
ed evangelizazione in Asia, Roma: Arkeios, 1993, pp. 123-140; R.PANIKKAR, Entre
Dieu et le cosmos, Paris: Albin Michel, 1998, p. 166.
O Concílio Vaticano II (1962-1965) significou um primeiro
passo de reconhecimento do pluralismo religioso de fato, evitando, porém,
abordar a questão da qualificação teológica das outras religiões. Os primeiros
movimentos de abertura nesta direção foram realizados, em âmbito católico,
pelas reflexões produzidas pela Federação das Conferências Episcopais Asiáticas
(FABC), nascida em 197035. Já na Primeira Assembleia Plenária da
FABC, realizada em Taiwan em abril de 1974, os bispos asiáticos sinalizaram a
positividade das outras tradições religiosas no plano divino da salvação,
enquanto portadoras de um “patrimônio de experiências religiosas”36.
Esta tendência de abertura será afirmada nos documentos posteriores desta
Federação e de seus organismos conexos. Destaca-se como preocupação constante
da FABC a abertura ao pluralismo religioso e sua articulação com a história da
salvação. Fala-se em “pluralismo receptivo”, indicando a dinâmica
interrelacional e de complementaridade que vigora entre as religiões no único
plano salvífico. Para o magistério asiático, a variedade das culturas e
religiões é vista como “manifestação da infinita riqueza do Deus de todos os
homens”, que durante toda a história cobriu de atenção e cuidado a caminhada
diversificada dos povos37. Retomando esta mesma sensibilidade, o
breve documento do então Secretariado para os Não-Cristãos sobre a Igreja e as
outras religiões (DM-1984) introduzirá em âmbito mais oficial este
posicionamento de grande abertura à realidade do pluralismo religioso, sinalizando
a visão da imanência universal de Deus no mundo.
O diálogo interreligioso encontra o seu fundamento principal
nesta convicção da universalidade da graça de Deus. Não há possibilidade de um
controle humano sobre a dinâmica da gratuidade do Deus sempre maior, do
mistério do “Deus que se dá”. São caminhos impenetráveis que animam as
tradições religiosas daqueles que devem ser considerados como amigos e não
concorrentes. As diversas religiões não constituem simples obra da dinâmica
humana, mas “respostas ao encontro com o mistério de Deus ou a realidade
última”38. Esta abertura ao plural, como acolhida da diferença,
constitui um traço fundamental do cristianismo39.
_______________________________
As resistências que se opõem à consideração de um pluralismo
de princípio encontram sua razão de ser na condição de incerteza e insegurança
que tal abertura pode provocar nos indivíduos e comunidades. Como antídoto à
possível relativização ou
35 O que já pode ser observado na
Declaração sobre a evangelização da Ásia hoje, resultado da Primeira Assembléia
Plenária da FABC, realizada em Taiwan em abril de 1974. Uma série de outros
documentos importantes desta mesma Federação de Bispos ou das repartições a ela
associadas estarão sintonizados com esta perspectiva de abertura. Cf.
FEDERAZIONE delle Conferenze Episcopali Asiatiche, Documenti della Chiesa in
Asia, Bologna: EMI, 1997.
36 Ibidem, p.62 (n. 70). O documento da
I Assembléia da Federação dos Bispos Asiáticos não se limita, porém, a afirmar
a positividade das outras tradições religiosas. Sinaliza um avanço ao mostrar
que as religiões não significam somente experiências naturais (“debaixo”), mas
expressam a presença de Deus que atrai para si os povos asiáticos. Nesse
sentido, foram acolhidas como “instrumento mediante o qual a iniciativa de Deus
entrar em comunhão com o homem encontrou realização, e continua a encontrá-la
ainda hoje”:M.M.QUATRA, Regno di Dio e missione della Chiesa nel contexto
asiático: uno studio sui documenti della FABC (1970-1995), Roma, 1998, Tese
(Doutorado em Missiologia) – Faculdade
de Missiologia, Pontifícia Universidade Gregoriana, p. 185.
37 M.M.QUATRA, Regno di Dio...,
op.cit., p. 515.
38 FABC, O que o Espírito diz às
Igrejas, in Sedoc 33 / n. 281 (2000) 45.
39 E.SCHILLEBEECKX, História humana
revelação de Deus, São Paulo: Paulus, 1994, p. 213; J.S.O’LEARY, La vérité
chrétienne à l’âge du pluralisme religieux, Paris: Cerf, 1994, p. 13;
W.ARIARAJAH, La Biblia y las gentes de otras religiones, Santander: Sal Terrae,
1998, p. 64-65.
desubstancialização das identidades, afirma-se o desejo de
estabilidade e fundamentação.40 É o que se pode perceber na reação
crítica apresentada pela Declaração Dominus Iesus, que relaciona a justificação
do pluralismo de direito com as teorias de índole relativista, que tenderiam a
comprometer a aceitação da verdade revelada41.
A afirmação do pluralismo de princípio não significa a
sedimentação de uma perspectiva relativista. Alguns traços importantes podem
ser elencados para dirimir certas dificuldades que acompanham tal reflexão. Em
primeiro lugar, há que sublinhar que esta abertura ao pluralismo não significa
um nivelamento das experiências diversas, mas a consciência de sua diversidade.
Em segundo lugar, há que frisar que esta mesma abertura não abafa o valor do
testemunho particular, exigindo, porém, uma mudança em seu exercício e estilo.
Este testemunho deve acontecer, não como exercício de arrogância, mas imbuído
de amor, auto-doação e humildade. A riqueza de uma comunidade plural é tecida
pela inter-relação de testemunhos autênticos42. Em terceiro lugar, a
consciência do pluralismo não significa a exclusão do discernimento crítico com
respeito às religiões específicas. Como indica o documento Diálogo e Anúncio,
“afirmar que as outras tradições religiosas contêm elementos da graça não
significa, por outro lado, que tudo, nelas, seja fruto da graça”43.
Em quarto lugar, a afirmação do pluralismo não pode restringir-se a uma
resposta passiva ao fato da pluralidade religiosa, mas deve manter acesa a “responsabilidade
para desenvolver critérios de valoração que permitam esclarecer a validez
relativa de cada posição ou proposta”44.
4.
A questão da verdade
Um dos grandes embaraços que dificultam o exercício e a reflexão
sobre o diálogo interreligioso relaciona-se à questão da verdade. O
esclarecimento desta questão aparece hoje como um dos importantes desafios para
todos os que se empenham nesta causa. Trata-se de um tema urgente e inevitável.
Como indica Hans Küng, “nenhum problema produziu na história das Igrejas e das
religiões tantas controvérsias, tantos conflitos sangrentos e até tantas
‘guerras de religião’ como o problema da verdade”45.
___________________________________________________
40 A atual dinâmica presente no mundo
das Igrejas de afirmação da identidade, e radicalizada nos movimentos
fundamentalistas, expressa “uma forma de auto-afirmação e, frequentemente, uma
expressão do temor de perder a si mesmo”. As dificuldades de abertura ao
ecumenismo (e ao diálogo inter-religioso) traduzem, na prática, o temor da
abolição da “identidade confessional” : W.KASPERS,“Situazione e visione del
movimento ecumenico”, Il Regno-Attualità (It) n. 4 (2002) 136.
41 CONGREGAÇÃO para a Doutrina da Fé,
Declaração Dominus Iesus, doc.cit., n. 4.
42 W.ARIARAJAH, La Biblia y las gentes
de otras religiones, op.cit., p. 115 e 119.
43 PONTIFÍCIO Conselho para o Diálogo
Inter-religioso, Diálogo e anúncio, doc.cit. n. 31.
44 D.TRACY, Pluralidad y ambigüedad:
hermenéutica, religión, esperanza, Madrid: Trotta,
1997, p. 139.
45 H.KÜNG, Teologia a caminho:
fundamentação para o diálogo ecumênico, São Paulo:
Paulinas, 1999, p. 262.
A forma como o cristianismo ao longo da história interpretou
sua verdade e singularidade nem sempre possibilitou uma salutar abertura ao
horizonte da alteridade. A ênfase recaiu sobre a pretensão de domínio e posse
absoluta da verdade, garantida pela observância de uma ortodoxia muitas vezes
impiedosa46. Talvez um dos obstáculos mais decisivos ao diálogo
inter-religioso é o sentimento de auto-suficiência e arrogância identitária.
São sentimentos que acabam provocando atitudes defensivas ou agressivas. O
teólogo dominicano, Christian Duquoc, em trabalho recente levantou uma hipótese
que relaciona a pretensão assumida pela Igreja católica ao longo dos séculos de
deter a verdade com certeza absoluta e o exercício da violência institucional.
Esta cumplicidade que vincula a convicção de possuir a verdade e a violência,
como indica o autor, constitui um fenômeno recorrente na história da Igreja.
Para Duquoc, os conflitos provocados pela Igreja, muitas vezes seguidos de
violência, não decorrem de suas “deficiências humanas” ou “imperfeições”, mas
de uma firme persuasão sobre seu privilégio supremo: testemunhar a verdade na
história47.
Mudanças importantes aconteceram a partir do Concílio
Vaticano II, com a afirmação progressiva mas cautelosa de um espírito mais
ecumênico, mas sempre contrabalançada por reações de resistência abertas ou
sutis. A questão central permanece, porém, viva e acesa. Uma pista importante
foi apontada por Hans Küngem seu ensaio em favor de uma criteriologia
interreligiosa. A pergunta que busca responder é precisa: “existe, de fato, um
caminho teológico responsável que permita aos cristãos recolher a verdade das
outras religiões, sem perder a verdade da própria religião e, com isso, a
própria identidade?”48 Em sua tese, Küng defende que a verdade não
constitui monopólio de nenhuma religião, o que não significa que as religiões
não tenham critérios específicos de verdade. Estes critérios, válidos e
fundamentais, encontram sua relevância e obrigatoriedade no âmbito interno de
cada confissão religiosa, não podendo, porém, estender-se objetivamente às
outras confissões49.
Com base na criteriologia de Küng, há que situar
corretamente certas assertivas comuns na tradição cristã e católica, tanto no
âmbito da cristologia como da eclesiologia. Com respeito à cristologia, podem
ser mencionadas algumas, tomadas do testemunho do Novo Testamento: “Não há sob
o céu, outro nome dado aos homens pelo qual devemos ser salvos” (At 4,12); “Eu
sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vem ao Pai a não ser por mim” (Jo
14,6); “Eu te estabeleci como luz das nações, para levares a salvação até aos
confins da terra” (At 13,47). Tais assertivas, entre outras, inserem-se na
categoria de “afirmações de fé”. Expressam uma linguagem de “confissão de fé” e
traduzem uma “verdade existencial” plausível para a comunidade dos fiéis que
seguem o Novo Testamento. Esta linguagem confessional situa-se numa experiência
pessoal ou
____________________________________
46 E.SCHILLEBEECKX, História humana
revelação de Deus, op.cit., p. 211.
47 C.DUQUOC, “Credo la Chiesa”:
precarietà istituzionale e Regno di Dio, Brescia: Queriniana, 2001, p. 26. Como
sublinha Duquoc, a inquisição não nasceu do laxismo, mas doexercício zeloso
pela fé e a verdade: Ibidem, p. 135.
48 H.KÜNG, Teologia a caminho, op.cit.,
p. 262.
49 Não creio ser pertinente a crítica
implícita tecida pelo Documento da Comissão Teológica Internacional à
criteriologia de Küng, ao sublinhar que tal perspectiva acaba por “diminuir ou
privatizar” o problema da verdade das religiões. O que ocorre, de fato, é que
esta complexa questão não pode ser trabalhada de forma discriminante para com
as outras religiões. Já Schillebeeckx sustentou que esta questão deve esta
situada num “círculo hermenêutico” e sua resposta definitiva somente em chave
escatológica. Cf. E.SCHILLEBEECKX, História humana revelação de Deus, op.cit.,
p. 210-211.
coletiva, comunicando uma profundidade que marca a convicção
cristã. Tais assertivas, porém, não podem ser entendidas como “linguagem
objetivante ou constatante”, ou seja, verificáveis de forma plausível fora da
própria fé. Pode-se afirmar como verdadeira a confissão de fé professada pelos
fiéis cristãos no caráter revelador decisivo de Jesus Cristo. Para estes fiéis,
o absoluto ganha em Jesus uma fisionomia viva, revelando-se para eles como a
Palavra e o Caminho. Trata-se de uma “verdade existencial” experimentada na
própria religião, mas que não pode ser objetivada como válida para todas as
religiões50. E esta confissão de fé, que reforça nos cristãos a
consciência da significação salvífica do acontecimento Cristo para toda a
humanidade, não pode ser usada como “base para negar outras confissões de fé”51.
Com respeito à eclesiologia, encontram-se também algumas
assertivas tomadas dos documentos do Concílio Vaticano II que podem ser
entendidas no âmbito da comunidade particular: “Cremos que esta única religião
verdadeira se encontra na Igreja católica e apostólica, à qual o Senhor Jesus
confiou o encargo de levá-la a todos os homens (...)” (DH 1); “Só pela Igreja
católica de Cristo, que é o instrumento geral da salvação, pode ser atingida
toda a plenitude dos meios de salvação” (UR 3); “Esta Igreja, peregrina na
terra, é necessária para a salvação”(LG 14); “Os que ainda não receberam o
Evangelho se ordenam por diversos modos ao Povo de Deus” (LG 16)52.
Conforme a visão dos fiéis católicos, o cristianismo apresenta-se como uma
mensagem e um caminho de salvação. Para eles, a Igreja é única e seu papel
insubstituível: tornar visível para os seres humanos a mensagem de Jesus Cristo
e a realidade do Reino, visível e operante na história. É a experiência que
vivenciam a partir de dentro de sua perspectiva devocional. A mensagem
profética do cristianismo provoca uma seriedade existencial que se traduz em
envolvimento pessoal radical e seguimento.
Seguindo a linha do critério religioso específico, o
cristianismo será experimentado como verdadeira religião para os seus fiéis.
Esta percepção cristã não poderá, porém, significar exclusão da verdade
presente nas outras religiões. A partir do núcleo mesmo da mensagem evangélica,
os cristãos de verão perceber que o mistério de Deus é provocação permanente,
também para a Igreja, no sentido de sua abertura ao Reino e à verdade presente
no mistério da criação e da história. Daí a imagem importante da Igreja
peregrina, a caminho, sempre aberta às surpresas de Deus. Há que reconhecer a
singularidade cristã e católica, sem porém confundir “a universalidade de
direito do Cristo como Verbo encarnado e a universalidade do cristianismo como
religião histórica. É preciso não fazer do cristianismo uma religião absoluta,
que incluiria tudo o
____________________________
50 H.KÜNG, Teologia a caminho, op.cit.,
p p. 284 e 286; E.SCHILLEBEECKX, História humana revelação de Deus, op.cit., p.
190.
51 W.ARIARAJAH, La Biblia y las gentes
de otras religiones, op.cit, p. 114 e 95. Na visão do teólogo Andrés Torres
Queiruga, “o diálogo das religiões obriga a revisar com absoluta seriedade o
‘cristocentrismo’”. Para ele, certas frases do repertório cristão, que podem
ter sentido numa linguagem imediatamente confessante, deveriam “ser eliminadas,
não só por serem psicologicamente ofensivas para os demais, mas por serem
objetivamente falsas, pois implicam a negação de toda verdade nas demais
religiões, incluído o Antigo Testamento”.Este autor sinaliza a importância da
convicção cristológica vivenciada pelos cristãos, mas para ele, tal convicção não
pode acontecer como uma imposição, mas deve ser postulada no respeito para com
aqueles que professam uma convicção distinta. Sinaliza igualmente que esta
mesma convicção “deve ser apresentada como proposta aberta ao diálogo, ao
contraste e à verificação”: A.T.QUEIRUGA, Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus,
São Paulo: Paulinas, 2001, pp. 344-345 e 347-348.
52 ENCHIRIDION Vaticanum 1 – Documenti
ufficiali del Concilio Vaticano II, Bologna: EDB, 1996. As siglas citadas
correspondem: DH: Declaração Dignitatis Humanae (sobre a liberdade religiosa);
UR: Decreto Unitatis Redintegratio (sobre o ecumenismo); LG: Constituição
Dogmática Lumen Gentium (sobre a Igreja).
que há de bom nas outras religiões. Nem o cristianismo
histórico, nem a Igreja vista pelos homens são absolutos”53.
Levando-se em conta o desafio do diálogo inter-religioso, a
teologia cristã é convocada ao exercício hermenêutico de interpretar a mensagem
cristã no novo contexto do pluralismo religioso. A mensagem cristã não
possibilita uma única interpretação, mas está permanentemente aberta a
múltiplas recepções. Estas, por sua vez, não podem pretender-se definitivas. A
hermenêutica teológica não se aplica exclusivamente aos textos fundadores do
cristianismo, mas envolve igualmente os textos da tradição cristã. O teólogo
Claude Geffré propõe uma hermenêutica conciliar. Para ele, “as definições
conciliares devem ser interpretadas à luz da dinâmica de correlação crítica
entre a experiência cristã fundamental e as novas e atuais experiências
humanas”54. Seguindo as regras da hermenêutica teológica,
determinadas formulações assumidas pelo magistério da Igreja em certo momento
histórico, podem ser transformadas em outro momento em razão da mudança de seu
alcance semântico e de sua significação. O recurso à reformulação de certos
enunciados pode ser, no novo momento histórico, a garantia de fidelidade à
própria afirmação de fé.55
Algumas expressões eclesiológicas definidas no Concílio
Vaticano II, e retomadas em documentos mais recentes do magistério católico,
apresentam um conteúdo semântico problemático ou discutível para o momento
atual, caracterizado pelo pluralismo religioso. É o que ocorre quando se afirma
que só a Igreja “possui a plenitude dos meios de salvação”56, que
ela é “necessária para a salvação” (LG 14)57, e que os fiéis das
outras tradições estão “ordenados” à Igreja (LG 16)58. A utilização
da expressão “plenitude”, aplicada à Igreja, é ambígua, como mostrou
recentemente Claude Geffré. Para este autor, “afirmar que a plenitude da
verdade encontra-se no cristianismo, não é afirmar que ela encontra-se só na
Igreja católica, na medida em que ela não é senão uma
_____________________________
53 C.GEFFRÉ, “A fé na era do pluralismo
religioso”, in F.TEIXEIRA (Org.), Diálogo de pássaros, São Paulo: Paulinas,
1993, p. 67.
54 C.GEFFRÉ, Croire et interpréter,
op.cit., p. 46.
55 Ibidem, p. 49. Em linha semelhante
de reflexão, o teólogo Juan Luis Segundo indicou com precisão que “nenhuma
fórmula é, indefinidamente, plena e perfeita na expressão da verdade. Assim,
deve ser complementada cada vez que novas experiências de fé ou novos
conhecimentos humanos exigem resolver questões, ou descartar erros que a antiga
fórmula não podia prever”. Para este autor, “as fórmulas têm que ser reformadas
para que a verdade que veiculam seja e permaneça viva” : J.L.SEGUNDO, O dogma
que liberta, São Paulo: Paulinas, 1991, pp. 388 e 389.
56 JOÃO PAULO II, Sobre a validade
permanente do mandato missionário – Carta encíclica Redemptoris Missio,
Petrópolis: Vozes, 1991, n. 55 (siglada aqui como RM). A compreensão mais
profunda do diálogo fica praticamente abafada na forma como esta encíclica o
apresenta: “O diálogo deve ser conduzido e realizado com a convicção de que a
Igreja é o caminho normal de salvação e que só ela possui a plenitude dos meios
de salvação” (RM 55). Daí não se estranhar a reação que causou em teólogos como
J.Hick, que sobre este mesmo número afirmou: “fica claro que a intenção por
trás disso não é a de cancelar o ímpeto de converter toda a raça humana a uma fé
cristã explícita”. J.HICK, A metáfora do Deus encarnado, Petrópolis: Vozes,
2000, p. 121.
57 O teólogo Otto Hermann Pesch
sublinhou que esta tese “de que a Igreja é ‘necessária’ para a salvação’ já não
se entende, de algum tempo para cá – e sob correção de anteriores concepções
rigoristas – como necessidade insubstituível duma pertinência jurídica à Igreja
católica romana”: O.H.PESCH, “A obra da graça divina como justificação e
santificação do homem”, Mysterium Salutis IV/8, Petrópolis: Vozes, 1978, p. 89.
58 Uma ideia correlata com esta de
ordinantur, tomada de São Tomás de Aquino, é a de eclesialização da graça,
segundo a qual a Igreja seria a expressão mais perfeita da ação do Espírito, e
esta ação tenderia a levar todos os s eres humanos à comunidade onde ela
pudesse melhor se expressar, ou seja, à Igreja. Est a ideia que encontrou forte
resistência entre os Reformadores, continua ainda presente no campo católico.
das figuras históricas do cristianismo. E o cristianismo
mesmo, na sua tradição histórica, é somente uma das expressões da plenitude do
mistério de Deus como se manifesta no Novo Testamento”59.
Infelizmente, o recurso a tais expressões vem sendo utilizado de forma
discriminatória com respeito às outras tradições religiosas. Na Declaração Dominus
Iesus, faz-se recurso ao conceito de “plenitude dos meios de salvação” para
diferenciar os membros da Igreja com respeito aos adeptos das outras religiões,
que segundo a Declaração, estariam em “situação gravemente deficitária”60.
Semelhante centralização eclesiocêntrica, encontra-se presente no documento da Comissão Teológica
Internacional sobre o cristianismo e as religiões. Segundo o documento,
“somente na Igreja, que está em continuidade histórica com Jesus, pode-se viver
plenamente seu mistério”61; é a Igreja “o lugar privilegiado da ação
do Espírito”62. Em função do acento dado à necessidade da Igreja
para a salvação e da “ordenação” à Igreja dos não-cristãos, o documento citado
titubeia quando busca tratar a questão da função salvífica d as outras
religiões. O máximo que consegue afirmar, e de forma ainda insegura, é a
possibilidade de uma “certa função salvífica”, mas logo em seguida reitera que
tal função não pode ser equiparada “à função que a Igreja realiza para a
salvação dos cristãos e dos que não o são”63.
Ao examinar a obra de diversos teólogos que trabalham o tema
do diálogo interreligioso, verifica-se
que a maior dificuldade de avanço
na reflexão relaciona-se
_________________________
59
C.GEFFRÉ, Profession Théologien: quelle pensée chrétienne pour le XXI siècle? Paris: Albin
Michel, 1999, p. 257. Em crítica à concepção de um “ecumenismo de retorno”,
vigente até o Vaticano II, Walter Kaspers busca sinalizar a correta
interpretação cristocêntrica do ecumenismo conciliar, que interdita qualquer
“pretensão arrogante” da Igreja católica, no sentido de um monopólio da
salvação. Retoma a bela imagem da Igreja peregrina, de uma“ ecclesia semper
purificanda”, que não busca simplesmente a “anexação das outras Igrejas”, mas
que, no respeito à sua alteridade específica, v isa a realização de uma
comunhão mais profunda: W.KASPERS, “ L’única Chiesa di Cristo”, Il
Regno-Attualità (It) n. 4 (2001) 129-130.
60 CONGREGAÇÃO para a Doutrina da Fé,
Declaração Dominus Iesus, doc.cit., n. 22. Restabelecendo o campo da
apologética católica, esta Declaração provocou um grande mal estar entre os
teólogos e organismos comprometidos com a causa do ecumenismo e do diálogo
interreligioso, levando muitos a duvidar do empenho ecumênico da Igreja
católica. De todas as partes ocorreram reações. O cardeal Walter Kaspers, atual
presidente do Pontifício conselho para a unidade dos cristãos, reagiu
explicitamente ao afirmar que a Declaração, ofendeu e feriu não só vários de
seus amigos, mas a ele mesmo: W.KASPERS, “L’única Chiesa di Cristo: situazione
e futuro dell’ecumenismo”, Il Regno-Attualitá (It) n. 4 (2001) 128. Avaliando
alguns recentes documentos da Igreja católica, entre os quais a Dominus Iesus,
o teólogo Michael Amaladoss afirmou que os mesmos, desafortunadamente, oferecem
“razões suficientes para suspeitar de seus motivos”. Na sua visão, que
compartilho, a pretensão de superioridade presente em atitudes da Igreja
católica, que advoga a plena posse dos dons a oferecer, “é uma atitude que não
ajuda ao diálogo”: M.AMALADOSS, “Dificultades del dialogo com las religiones
orientales”, Iglesia viva (Es) n.208 (2001) 1-2
61
COMISSÃO Teológica Internacional, O cristianismo e as religiões, São
Paulo: Loyola, 1997, n. 49c.
62 Ibidem, ns. 56 e 61.
63 Ibidem, ns. 84 e 86.
com o “embaraço” eclesiológico. As expressões cunha das pela
tradição são de tal forma decisivas e vinculantes para os mesmos, que o
trabalho hermenêutico fica dificultado.64 Torna-se, porém, mais do
que urgente o exercício de um “salto qualitativo” na eclesiologia, que
concretize um enunciado mais aberto da mesma doutrina no contexto do crescente
pluralismo religioso.
5.
Uma eclesiologia dialógica
Importantes reflexões realizadas sobre os desafios de uma
eclesiologia dialogal tem espocado nos últimos anos, sobretudo a partir das
experiências inovadoras realizadas na Ásia. Não mais fazem sentido as teses que
reiteram a ideia de uma única religião verdadeira. Hoje em dia, a relação entre
o cristianismo e as outras religiões deve ser concebida num quadro mais
orgânico da realidade universal, em termos de “interdependência relacional”, ou
de “diferentes modalidades de encontro da existência humana com o Mistério
divino”65. Nest e quadro dinâmico, o modelo eclesiológico que se
impõe é o “extroverso” ou “dialógico”, ou seja, de uma Igreja que se afirma na
relação, cuja identidade não se traduz como produto cristalizado e imutável,
mas se realiza como “realidade vivente” (living Church). Esta eclesiologia viva
pode ser captada nos diversos documentos produzidos pela Federação das
Conferências Episcopais Asiáticas (FABC). Acionada pelo desafio plural, a
Igreja não eclipsa sua identidade essencial, mas redimensiona o exercício de
sua sacramentalidade na história. A perspectiva que se abre é de uma Igreja “com
os outros e para os outros”, voltada e orientada para o horizonte mais amplo do
Reino de Deus66. E este
horizonte mais amplo, é igualmente animado por uma simbologia inter-religiosa,
pois o Reino de Deus é um “mistério que provoca uma profunda relação entre
todas as religiões sem ligar-se de maneira exclusiva a nenhuma delas”67.
Esta afirmação de uma sacramental idade relacional da Igreja, indica que o diálogo entre Deus e a
humanidade acontece mediante a
Igreja e outras formas de mediação simbólica do Reino68. A ________________________
64 Em artigo publicado em 1994 na
revista Perspectiva Teológica e anexado em livro posterior, o teólogo Mário de
França Miranda defende uma tese que será literalmente seguida no documento da
Comissão Teológica Internacional, da qual este teólogo faz parte. Trata-se da
questão da legitimidade salvífica das outras tradições religiosas. Para França,
torna-se problemático afirmar de forma global e apriorística que as religiões
são caminhos legítimos de salvação. Em sua opinião, carece de sustentação “a
passagem sutil de um dado de fato (cada um se salva necessariamente dentro de
um contexto cultural-religioso) para uma afirmação teológica que faz, sem mais,
das religiões caminhos salvíficos legítimos”: M.F.MIRANDA, O cristianismo e as
religiões, São Paulo: Loyola, 1998, pp. 17-18. Ver ainda: J.MOINGT, Rencontre
des religions, Études (Fr) n. 366/1 (1987) 105. Mesmo em autores mais abertos,
como Jacques Dupuis, verifica-se uma dificuldade de avançar neste campo
eclesiológico: cf. J.DUPUIS, Il cristianesimo e le altre religioni, op.cit.,
pp. 386-387, 395, 473-474.
65 J,DUPUIS, Il cristianesimo e le
religioni, op.cit., p. 181.
66 Mas como sublinha Duquoc, a Igreja
viverá sempre nesta “situação obscura, entre a opacidade da história e a luz do
Reino”. Este Reino, para o qual tende a Igreja desde a sua origem, é também o
“seu tormento”, na medida em que “relativiza o instituído, que é sempre
necessário, e o dinamiza, incitando-o à reforma”: C.DUQUOC,“Credo la Chiesa”:
precarietà istitucionale e Regno di Dio, op. cit., pp. 316 e 24-25.
67 M.M.QUATRA, Regno di Dio e missione
della Chiesa nel contesto asiatico, op.cit., p. 325.
68 Como indica J.Dupuis, “o fato de a
Igreja ser o sacramento do Reino de Deus universalmente presente na história
não implica necessariamente que ela exerça uma atividade de mediação universal
da graça em favor dos membros das outras tradições religiosas que entraram no
Reino de Deus respondendo ao convite de Deus pela fé e pelo amor”: J.DUPUIS,
Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, op.cit., p. 485.
sacramentalidade da Igreja não vem entendida como “exclusiva
ou exaustiva”, mas relacional69. A realidade do pluralismo religioso
vem, assim, integrada na própria inteligibilidade da Igreja70.
Esta nova perspectiva eclesial repercute necessariamente na
compreensão da missão. Na perspectiva do pluralismo de princípio, vigora a
chave hermenêutica da presença universal do Mistério em toda a criação e
história. A missão eclesial não perde o seu lugar, mas vem redefinida em chave
reinocêntrica71. O testemunho permanece como essencial, mas sempre
entendido na dinâmica do “intercâmbio de dons”. Os cristãos não têm porque
omitir para os outros a sua experiência de encontro com o Senhor, a alegria
deste “mistério de amor”. Este desejo de compartilhá-lo com os outros deve,
porém, ser motivado por este mesmo amor72.O testemunho autêntico
ocorre não em razão de uma obrigação ou “mandato”. Um testemunho realizado sob
tais bases provoca, antes, a
crise e o descrédito da própria Igreja.73 E o fundamental não é a
provocação em favor da mudança de religião, mas da mudança de perspectiva de
vida: de uma vida auto-centrada para uma vida centrada no mistério dos outros e
no mistério de Deus. Daí ser a conversão mais profunda a que direciona todos
para o mistério de Deus.
6.
A teologia interpelada: à quisa de conclusão
Os teólogos da libertação mostraram com grande propriedade
que a teologia é sempre ato segundo. O momento prévio e primeiro é sempre
pontuado pelo compromisso vivo. Sem esta pré-condição a teologia não pode
firmar-se em solo profundo e produtivo. Aplicando ao campo aqui discutido, há
que sublinhar que a experiência do diálogo inter-religioso precede igualmente a
reflexão teológica, como ato primeiro. A teologia das religiões nasceu do solo
irrigado pela prática dialogal e é deste solo que continua a haurir suas
inspirações e hipóteses mais profundas. A teologia das religiões constitui uma
resposta, prolongamento e reapropriação teórica do diálogo interreligioso e
seus desafios74.
Não só a teologia das religiões vem provocada pelo diálogo
inter-religioso, mas toda a teologia. Com base na realidade do pluralismo
religioso e na práxis do diálogo, toda a reflexão teológica vem acionada a
buscar uma nova interpretação da realidade religiosa pluriforme envolvente. No
campo do cristianismo este desafio se faz fundamental. Infelizmente, tanto
a mentalidade comum
dos cristãos como
a reflexão teológica,
_______________________
69 M.M.QUATRA, Regno di Dio e missione
della Chiesa nel contesto asiatico, op.cit., pp. 521 e 326-327.
70 Ibidem, p. 520.
71 Ibidem, p. 448s.
72
PONTIFÍCIO Conselho para Diálogo Inter-religioso, Diálogo e anúncio,
doc.cit., n. 83. Em reflexão recente, João Paulo II sublinhou que “o diálogo
não pode ser fundado sobre a indiferença religiosa”, sendo que sua realização
implica o dom de um testemunho de esperança e alegria. Este dom que se anuncia,
acontece no respeito à liberdade de cada um. Mas se o diálogo envolve a
“reciprocidade de dons”, ele implica igualmente a disposição da escuta. A
Igreja, sublinha o papa, “jamais cessará de indagar”, e os sinais da presença
do Espírito estarão sempre a ajudar os cristãos, mediante o diálogo com a
experiência humana universal, “a compreender mais profundamente a mensagem de
que são portadores”: JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte,
São Paulo: Paulus/Loyola, 2001, ns. 55-56.
73 W.ARIARAJAH, La Biblia y las gentes
de otras religiones, op.cit., pp. 89-100.
74 J-C.BASSET, Le dialogue
interreligieux: histoire et avenir, Paris: Cerf: 1996, p. 412.
“continuam trabalhando inconscientemente com grande parte
dos pressupostos anteriores”75. Verifica-se ainda a presença, sutil
ou velada, de um axioma que moldou toda a tradição cristã: “extra ecclesiam
nulla sallus”. Este axioma constitui a expressão ideológica da pretensão que
tem movido a Igreja católica de ser a única religião verdadeira. A terminologia
teológica que anima ainda hoje muitos pregadores cristãos e também teólogos,
como indica Dupuis, está ainda eivada de um “vocabulário deletério com respeito
aos ‘outros’”. Vigora ainda a presença negativa de termos como “pagãos”,
“infiéis”, “não-cristãos” etc. Faz-se necessário e urgente não apenas
uma“purificação da memória”, mas igualmente uma “purificação da linguagem
teológica”76.
A abertura teológica que acompanhou o Concílio Vaticano II
(1962-1965) já significou um primeiro passo de sensibilização para as outras
tradições religiosas. Permanece, porém, como um desafio imprescindível um
“salto qualitativo da teologia cristã”, em todos os seus tratados, no sentido
de uma maior valorização e fundamentação teológica da experiência religiosa dos
outros. Trata-se de condição essencial para a manutenção da credibilidade da
mensagem cristã no mundo multi-cultural e multi-religioso da atualidade.77
Abre-se aqui um espaço fundamental para a dimensão hermenêutica da teologia,
enquanto possibilidade real de “alargamento do horizonte do discurso
teológico”. Uma teologia hermenêutica busca correlacionar de forma criativa a
experiência contextual presente e o
testemunho da experiência fundante confiada à memória da tradição eclesial. O
pensamento teológico é convidado a inserir-se numa dinâmica ou movimento criativo
que articula de forma viva o passado e o presente, expondo-se, assim, ao risco
de uma interpretação nova do cristianismo para o tempo presente78.
Em texto alvissareiro da década de 60, o grande teólogo
alemão Karl Rahner lançou as bases de questionamento da assim chamada “teoria
do acabamento”, que definia as outras religiões como “religiões naturais”,
enquanto expressão do movimento do ser humano para Deus. Segundo esta visão, só
o cristianismo seria uma religião sobrenatural, sendo que todas as outras
tradições e encontrariam nele o seu acabamento e realização79. Para
Rahner, as outras religiões não apresentam unicamente “elementos de uma natural
crença em Deus”, mas igualmente “substanciais traços sobrenaturais da graça,
concedida por Deus ao homem em razão de Cristo”80. Esta tese de Rahner
reaparecerá no decreto Ad gentes (n.9), do Concílio Vaticano II: “O que de
verdade ( veritatis) e graça ( gratiae) há no coração e no espírito dos homens
ou nos ritos e culturas próprias dos povos, não só não se perde, mas é
purificado, elevado e consumado para a
glória de Deus(...)”81. O espírito
que preside este número da Ad
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75 A.T.QUEIRUGA, Do terror de Isaac ao
Abbá de Jesus, op.cit., p. 318; J.L.SEGUNDO, O dogma que liberta, op.cit., p.
403.
76 J,DUPUIS, Il cristianesimo e le
religioni, op.cit., p. 24.
77 Ibidem, p. 476.
78 C.GEFFRÉ, Le christianisme au risque
de l’interpretation, Paris: Cerf, 1983; Id. Un nouvel age de la théologie,
Paris: Cerf, 1987; W.JEANROND, Introduction à l’herméneutique théologique : développement
et signification, Paris: Cerf, 1995; J-P.JOSSUA & N-J.SED (Ed.),
Interpréter : hommage amical à Claude Geffré, Paris: Cerf, 1992.
79 Há que reconhecer que esta visão
permanece ainda hoje vigente no magistério eclesiástico católico ( Redemptoris
Missio n. 45) e em outros importantes documentos teológicos (Comissão Teológica
Internacional, O cristianismo e as religiões, n. 103).
80
K.RAHNER, “cristianesimo e religioni non cristiane”,in Id. Saggi di
antropologia soprannaturali,
Roma: Paoline, 1965, p. 545.
81 Enchiridion Vaticanum 1, Op.cit., p.
1081. A propósito cf. tb. J.DUPUIS, Il cristianesimo e le religioni, op.cit.,
pp. 29-30.
Gentes encontrará ressonância em documentos mais recentes do
magistério como Diálogo e Missão (1984) e Diálogo e Anúncio (1991) e o seu
alcance é revelador, como indica o teólogo Andrés Torres Queiruga:
Reconhecer que
há ‘verdade e santidade’ nas demais religiões significa, direta e
imediatamente, que os homens e
mulheres que as praticam se salvam nelas e por elas; e não a simples título
individual, nem muito menos à margem ou apesar delas. O que, por sua vez, supõe
uma guinada de cento e oitenta graus na perspectiva, pois isso equivale a dizer
que Deus está se revelando e exercendo a sua salvação em todas e cada uma das
religiões, sem que jamais algum homem ou mulher tenham sido privados da oferta
de sua presença amorosa82
.
A preservação deste fundamental espírito de abertura
constitui a grande tarefa teológica para este novo milênio que se inicia. Uma
abertura que possa suscitar o encorajamento teológico necessário para ampliar a
compreensão dos desígnios misteriosos de Deus e dos caminhos que os realizam.
(Publicado na revista Perspectiva Teológica v. 34, n. 93, p. 155-177, 2002)
Faustino Teixeira é doutor em Teologia pela Pontífica Universidade
Gregoriana ( Roma). Professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). É autor de
vários livros entre os quais: Diálogo de pássaros: nos caminhos do diálogo
interreligioso, São Paulo: Paulinas, 1993; Teologia das Religiões: Uma visão
panorâmica, São Paulo: Paulinas 1995; Os Encontros inter-eclesiais de CEBs no
Brasil. São Paulo: Paulinas, 1996; e ultimamente a organização da obra: A(s) ciência(s)
da religião no Brasil: afirmação de uma área acadêmica. São Paulo: Paulinas,
2001.
Endereço: Rua Antônio Carlos Pereira, 328
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de Fora - MG