Perspectivas para o Diálogo Interreligioso
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
Introdução
Em artigo publicado na revista
Concilium, o teólogo indiano, Felix Wilfred, sublinha que um dos traços mais
belos do Concílio Vaticano II foi o “espírito de liberdade” que inoculou na
vida cristã. No caso específico da Ásia, significou um impulso decisivo na
linha do diálogo intercultural e interreligioso. Ocorreu ali uma leitura
criativa, com passos novidadeiros nessas áreas essenciais: “Uma leitura dos
ensinamentos conciliares, junto com a práxis do diálogo, levou as Igrejas da
Ásia a perceber que o Espírito de Deus está trabalhando ativamente na e através
da experiência, dos símbolos e dos sinais religiosos dos nossos próximos de
outras crenças” (Wilfred, 2012:127).
É esse espírito do concílio que papa
Francisco vem acolhendo de forma generosa nesse primeiro ano de seu
pontificado. Trata-se de alguém que assimilou com alegria esse evento e busca
irradiar seus frutos na ação pastoral. Para Francisco, o concílio “foi uma
releitura do Evangelho à luz da cultura contemporânea. Produziu um movimento de
renovação que vem simplesmente do próprio Evangelho”(Francisco, 2013:25). Essa
renovação ocorreu também no campo da abertura interreligiosa, com alguns sinais
importantes, como o ocorrido em 1986 na Jornada Mundial de Oração pela Paz, na
cidade de Assis (Itália), durante o pontificado de João Paulo II. O
acontecimento de Assis veio interpretado como uma ilustração visível “daquilo
que pressupõe e significa o empenho ecumênico para o diálogo interreligioso
recomendado e promovido pelo Concílio Vaticano II” (PCDI, 1994: 434).
A grande lição de Assis, retomada
agora por papa Francisco é clara: “Ou aprendemos a caminhar juntos em paz e em
harmonia, ou nos desconhecemos mutuamente e nos destruímos a nós mesmos e aos
outros”. O diálogo antecipa no tempo o sonho querido por Deus para o curso da
história da humanidade: “Uma viagem fraterna na qual nos acompanhamos uns aos
outros rumo à meta transcendente que ele estabelece para nós” (PCDI, 1994: 416).
Esta é uma renovação que tem na sua
raiz um fermento evangélico, é o que indica Francisco. Essa referência contínua
à narrativa evangélica é um diferencial do papa Bergoglio. Busca reforçar na
memória o “Jesus recordado”, daí fazer uso constante das parábolas e histórias
do cotidiano vivido pelo profeta de Nazaré. Traz para o tempo a presença
calorosa de um Jesus compassivo e acolhedor, cujo código fundamental é o da
presença, do abraço e da hospitalidade. E o diálogo com os outros surge, assim,
naturalmente de sua reflexão, pois é algo que brota translúcido no relato
evangélico. Francisco revigora, com a dinâmica bíblica, o traço dialogal do
cristianismo, que bebe sua razão de ser na própria vida e prática do Jesus
nazareno.
Em singular reflexão do cardeal
Martini, Conversas noturnas em Jerusalém
(Martini, 2008:20-21), que retomava um diálogo com Georg Sporschill – no outono
de 2007 -, ele tratava do desafio da “vastidão de ser católico”. E ali dizia
que Deus não podia ficar restrito ao mundo católico, uma vez que seu mistério
transborda todos os limites e definições. É bem mais vasto o coração de Deus,
dizia Martini, e não se deixa “dominar ou domesticar”. E assinalava como chave
essencial para preservar esta “imensidão” o caminho contínuo da leitura da
bíblia. Interessante constatar a semelhança de perspectiva assumida por papa
Francisco. Também para Bergoglio Deus é
um mistério mais amplo que não se confina no catolicismo: “Eu creio em Deus.
Não num Deus católico, não existe um Deus católico, existe Deus” (Francisco
& Scalfari, 2013: 68).
Para Francisco, Deus está presente
no tempo, em todas as coisas. Ele está em toda parte, atuando nos processos da
história. Para captá-lo há que cultivar uma “atitude contemplativa”, mas também
muita humildade. Em resposta ao pe. Antonio Spadaro, Francisco foi certeiro:
“Neste procurar e encontrar
Deus em todas as coisas fica sempre uma zona de incertezas. Tem de ser assim.
Se uma pessoa diz que encontrou Deus com certeza total e não aflora uma margem
de incerteza, então não está bem. Para mim, esta é uma chave importante (...).
Os grandes guias do povo de Deus, como Moisés, sempre deixaram espaço para a
dúvida. Devemos deixar espaço ao Senhor, não às nossas certezas. É necessário
ser humilde” (Francisco, 2013c: 27-28).
Igualmente
a verdade segundo a fé cristã, sublinha Francisco, não vem entendida como dado
“absoluto”, mas como experiência de amor que se traduz como “um caminho e uma
vida”. É uma verdade que acentua o desafio da relação e que envolve humildade:
não é algo que se possui como garantia e exclusividade, mas um dom que a todos
envolve e abraça (Francisco & Scalfari, 2013: 36 e 42). Como indica
Christian Duquoc,
“o Espírito
abre o caminho da verdade, não outorga sua posse como se busca e história
tivessem sido encerradas com seu dom. A promessa ligada ao Espírito indica o
caráter não acabado de sua ação. Esse inacabamento diz respeito não só à
prática, mas à própria verdade. Assim, nenhum conceito, nenhum dogma, nenhum
grupo, nenhuma Igreja pode totalizá-la; ela escapa ao nosso domínio” (Duquoc, 2008:
154 e também Valli, 2013, 109).
A verdade é uma realidade que nasce do amor, como tão bem
acentua a encíclica Lumen Fidei, não
podendo se impor com violência nem apagar a singularidade dos indivíduos. A
verdade transparece no impulso dialogal e a dinâmica de sua aceitação na fé
acarreta uma “convivência que respeita o outro”. A experiência da fé não leva à
arrogância: “longe de nos endurecer, a segurança da fé põe-nos a caminho e
torna possível o testemunho e o diálogo com todos” (LF 34).
O papa Francisco, em seu diálogo com
Eugenio Scalfari, assinala que sua fé nasceu de um “encontro com Jesus”, um
encontro pessoal que moveu seu coração. E através de Jesus pôde acessar a “via
do amor” que transborda de sua íntima relação com o Deus que ele nomeou carinhosamente
como Abbà. Pelo caminho de Jesus descobriu, com alegria, o traço de infinita
bondade e misericórdia do Deus sempre maior, que é Pai, e que ultrapassa todo
pensamento.
Motivado pelo diálogo, Francisco
busca resgatar o Jesus recordado pelos evangelhos, o que ele disse e fez em sua
travessia histórica. Assinala a importância de um confronto com o Jesus vivido
na “concretude e na rudeza da sua história”, assim como narrada “sobretudo pelo
mais antigo dos evangelhos, o de Marcos” (Francisco & Scalfari, 2013: 38).
Nesse evangelho transparece um Jesus com “extraordinária autoridade”, movido
por singular força interior, e que colocou sua vida em questão para sinalizar o
essencial caminho do amor. O seu traço de Filho de Deus, como apresentado pela
fé cristã, não significa um empecilho ao diálogo, é o que lembra papa
Francisco. Não é algo sublinhado para acentuar uma separação de Jesus com
relação aos outros, mas uma iluminada chamada para que todos possam ser
convocados à filiação e fraternidade (Francisco & Scalfari, 2013: 40).
Em sua viagem ao Brasil, o papa
Francisco enfatizou a importância de “deixar-se surpreender por Deus”. Deus é um mistério que sempre advém, não
podendo ficar circunscrito a uma visão particular. As diversas narrativas são
sempre frágeis e movediças para poder assegurar qualquer posse. Deus não se
apresenta como “coisa toda feita que nós devemos abraçar”, é o que adverte o místico Teilhard de Chardin em sua preciosa
obra O meio divino. Ele é um “centro
móvel” que, como a estrela dos magos,
vai se revelando no processo do caminho. É sobretudo “a eterna descoberta e o
eterno crescimento” (Chardin, 2010: 115). O diálogo verdadeiro busca captar
essa dinamicidade da presença de Deus, os traços de suas surpresas, as riquezas
de sua presença multiforme. E também da ação realizada pelo Espírito em todo
canto. Como dizem os bispos asiáticos, dialogar é trilhar essa “viagem em
companhia do Espírito para descobrir de onde vem e para onde vai a sua graça”
(FABC, 2000: 46).
O diálogo é, porém, antes de tudo, um espírito. E como tal,
deve estar presente em todas as atividades da missão evangelizadora da igreja,
e não apenas nos trabalhos dedicados explicitamente ao encontro com os outros.
Enquanto “espírito”, envolve atitudes essenciais como o respeito e a amizade. É
o que sublinhou o clássico documento Diálogo
e Anúncio (1991), do Pontifício Conselho para o Diálogo Interreligioso (DA
9). O papa Francisco segue essa intuição fundamental. Os outros vêm sempre
nomeados como amigos, e fala em “diálogo de amigos”, “cultura do encontro”.
3. A aposta no diálogo
O diálogo ganha na ocular de Francisco um lugar essencial,
sendo bem diversificado o espaço de sua incidência. Em seu discurso proferido
no Teatro Municipal, no Rio de Janeiro, voltado para as lideranças de vários
segmentos políticos e artísticos, concedeu especial destaque ao tema. Assinalou
que sua resposta aos líderes de diferentes setores que demandam um conselho vai
sempre nessa linha:
“diálogo,
diálogo, diálogo. O único modo para que uma pessoa, uma família, uma sociedade,
cresça; a única maneira para que a vida dos povos avance é a cultura do
encontro, uma cultura na qual todo mundo tem algo bom com que contribuir, e todos
podem receber algo bom em troca. O outro sempre tem algo que me dar quando
sabemos nos aproximar dele com atitude aberta e disponível, sem preconceitos.
Essa atitude aberta, disponível e sem preconceitos, eu a definiria como
humildade social, que é a que favorece o diálogo” (Francisco, 2013b: 82-83).
Com respeito ao diálogo ecumênico, retoma a mesmo
disposição assumida pelo Concílio Vaticano II, entendendo esse empenho como
algo “irreversível” na vida da igreja. No início de seu pontificado, em
discurso proferido na Sala Clementina para os representantes das igrejas,
comunidades eclesiais e outras religiões (20/03/2013), Francisco assume esse
desejo de “assegurar a vontade firme de prosseguir no caminho do diálogo
ecumênico”.
Enquanto bispo de Roma, Francisco manifesta também o desejo
de uma maior aproximação com as igrejas orientais. Junto ao patriarca ecumênico
de Constantinopla, Bartolomeu I, com quem se encontrou em março de 2013, e a
quem nomeou como “fratello Andrea” –
retomando uma tradição que identifica André como irmão de Pedro e fundador da
Igreja de Bizâncio -, Francisco manifesta seu desejo de uma peregrinação comum
a Jerusalém dos dois sucessores, em janeiro de 2014. Reconhece também Francisco
a importância dos irmãos ortodoxos para a abertura de novos caminhos de
sinodalidade na igreja católica, de forma harmonizada com o serviço do primado.
Com eles pode-se abrir um importante aprendizado “sobre o sentido da
colegialidade episcopal” (Francisco, 2013c: 24).
O empenho de abertura estende-se também para as outras
religiões, com as quais augura um verdadeiro diálogo de amigos. Assim se
expressa com respeito aos judeus, aos quais dedica um carinho muito especial. Francisco
assinala que a igreja católica encontra-se unida ao povo judeu por “vínculo
espiritual muito particular”. É ali que se encontra “a raiz santa a partir da
qual germinou Jesus”, que nasceu, viveu e morreu judeu. O papa João Paulo II,
em visita realizada na sinagoga de Roma, em abril de 1986, havia identificado
os judeus como “irmãos prediletos”, muito queridos por Deus, e convocados a uma
“vocação irrevogável” (PCDI, 1994: 394-395). O papa Francisco retoma esse traço
essencial de reconhecimento da aliança feita por Deus com Israel, marcada por
uma fidelidade divina que nunca falhou, bem como por uma correspondência de fé
por parte dos judeus, apesar de todas as provações por que passaram ao longo
dos séculos. Assinala ainda que essa perseverança judaica na fé do Deus da
aliança acorda também nos cristãos o fundamental compasso de espera, enquanto
peregrinos, ao ansiado retorno do Senhor (Francisco, 2013c: 41).
Em discurso proferido no encontro com o corpo diplomático
acreditado na Santa Sé, em 22/03/2013, o papa Francisco lembrou aos presentes
que Pontífice é “aquele que constrói pontes”, e nesse sentido, uma de suas
fundamentais tarefas é erigir pontes entre todos os segmentos humanos, de modo
que “cada um possa encontrar no outro, não um inimigo nem um concorrente, mas
um irmão que se deve acolher e abraçar”. Recordou que o diálogo é um sentimento
que o acompanha em toda a sua
trajetória, desde sua origem familiar. E o diálogo com as religiões ganha para
ele um significado singular pois, a seu ver, não se pode ignorar os outros na
verdadeira experiência de Deus. Fala em intensificar a interlocução com as
religiões, mas em especial com o Islã. O tema vem retomado por ocasião da
celebração de ´Id al-Fitr, a festa da conclusão do Ramadã, em 10/07/2013. O
papa decide assinar pessoalmente a mensagem de saudação aos muçulmanos,
tratados como “amigos estimados”. Assinala que o diálogo entre cristãos e
muçulmanos deve ser pontuado por “respeito mútuo”, que implica uma “atitude de
amabilidade” para com aqueles que se nutre consideração e estima. Os cristão
são assim “chamados a respeitar a religião do próximo, seus ensinamentos,
símbolos e valores”. Também em sua homilia em Lampeduza (Itália) em 8/07/2013,
na missa pelas vítimas dos naufrágios, Francisco lembra dos emigrantes
muçulmanos, objeto do descaso reinante no mundo da “globalização da
indiferença”. Sinaliza que a igreja coloca-se ao lado deles, “na busca de uma
vida mais digna”. Em vários momentos de suas pregações, mensagens ou homilias,
Francisco chama a atenção para o traço de responsabilidade global envolvida no
diálogo interreligioso, em favor da salvaguarda do humano, do mundo e de toda a
criação, que devem ser objeto do mais nobre amor.
A abertura dialogal não fica restrita às religiões, mas
estende-se também a “todos aqueles
homens e mulheres que, embora não se reconhecendo filiados a nenhuma tradição
religiosa, todavia andam à procura da verdade, da bondade e da beleza”. São
reconhecidos pelo papa como “preciosos aliados nos esforços por defender a
dignidade do homem, na construção de uma convivência pacífica entre os povos e
na guarda cuidadosa da criação”. Assim se expressou Francisco em discurso na
Sala Clementina para os representantes de igrejas e outras religiões, em
20/03/2013.
Esse tema do diálogo com os não crentes veio aprofundado no
debate entre o papa Francisco e Eugenio Scalfari, fundador do jornal italiano, La Repubblica. Respondendo às indagações
de Sacalfari, o papa reitera sua posição em defesa desse diálogo, motivado por
duas razões. Em primeiro lugar, como meio de superar uma incomunicabilidade
entre igreja e cultura que veio se firmando na modernidade de corte iluminista.
O Vaticano II significou um primeiro passo na abertura dessa estação dialogal.
Em segundo lugar, por considerar que um tal diálogo não significa algo
acessório ou secundário, mas uma “expressão íntima e necessária” para todo
cristão, e isso em decorrência de uma fidelidade ao projeto de Jesus e ao seu
seguimento (Francisco & Scalfari, 2013: 36).
A questão de Jesus esteve no centro desse debate entre
Scalfari e Francisco. Mesmo não sendo um religioso, Scalfari manifestou a
Francisco o seu interesse e fascínio por Jesus de Nazaré, o judeu da estirpe de
David, filho de Maria e José. E nas indagações levantadas por ele ao papa,
situou a delicada questão da concentração cristã na filiação divina de Jesus e
as possibilidades dialogais do cristianismo, animado por tal convicção, com
outras tradições religiosas. E citou o exemplo das experiências de fé tanto no
judaísmo como no islamismo, que mesmo na ausência de uma crença no unigênito
encarnado, participam de uma rica experiência de fé. Em suas indagações e no
desdobramento do debate, Scalfari acentua o valor fundamental do amor ao
próximo como eixo essencial para qualquer diálogo, e que transborda da pregação
de Jesus, como o modo indicado para o verdadeiro amor a Deus.
Em suas respostas, Francisco partilha da convicção em favor
da retomada de uma perspectiva narrativa sobre Jesus de Nazaré, sobre o que ele
disse e fez. E concorda com Scalfari na percepção da centralidade do amor na
prática do Nazareno: Jesus, como “o Filho de Deus que veio dar sua vida para
abrir a todos o caminho do amor”. Francisco assinala que o evento da
“encarnação do Filho de Deus” ganha de fato uma centralidade no cristianismo,
mas “a filiação de Jesus, como apresentada pela fé cristã – sublinha – não é
revelada para marcar uma separação insuperável entre Jesus e todos os outros:
mas para dizer-nos que, Nele, todos somos chamados a sermos filhos de um único
Pai e irmãos entre nós” (Francisco & Scalfari, 2013: 40). Esse sentimento
de irmandade está assim para Francisco no cerne da dinâmica de inserção do
Filho de Deus no tempo. Nesse sentido, o ágape, o amor aos outros, constitui “o
único modo indicado por Jesus para encontrar a via da salvação e das bem
aventuranças” (Francisco & Scalfari, 2013: 56).
Essa “via do amor” emerge como canal essencial para
entender o diálogo entre cristãos e não crentes. Em favor desse colóquio,
Francisco rechaça qualquer perspectiva proselitista, vista por ele como “solene
tolice”. O diálogo requer conhecimento mútuo, escuta e sabedoria para o
aprendizado com o mundo circunstante. É fundamental “conhecer-se, ouvir,
ampliar o horizonte do pensamento. O mundo é feito de estradas que nos
aproximam e distanciam, mas o importante é que nos levem para o Bem”. Essa
preciosa convicção de Francisco, em profunda sintonia com o Vaticano II –
confere um particular destaque à dignidade da consciência. Em resposta a
Scalfari, sobre a possibilidade ou não do perdão de Deus àqueles que não
condividem a fé em Jesus, Francisco sublinha o dom da misericórdia de Deus, que
é sem limites. E com uma coragem singular, destacada pelo interlocutor como uma
das mais ousadas ditas por um papa, Francisco realça a obediência à
consciência, na sinceridade do coração, como o caminho singular para aqueles
que não crêem (Franciso & Scalfari, 2013: 41-42).
No desdobramento do debate, Scalfari conclui sobre a
importância do exercício do amor aos outros, que veio sendo enfraquecido ao
longo dos séculos, em favor do amor a si mesmo. E sugere que esse tema seja o
objeto da continuidade do diálogo estabelecido com Francisco. A seu ver, esse é o verdadeiro ápice do
cristianismo, ou seja, a convocação ao amor fraterno e à realização da justiça,
no aqui e no agora. E isso vale tanto para aqueles que professam a fé em Jesus,
no Deus mosaico ou em Allah; assim como aos indivíduos de boa vontade.
Na publicação italiana que recolheu o debate entre
Francisco e Scalfari, algumas contribuições podem ser destacadas, ilustrando a
agudeza das reflexões suscitadas. O filósofo Massimo Cacciari, professor
emérito da Universidade São Rafael (Milão), sinaliza algo que é fundamental:
“Jesus pede essencialmente não para ser acreditado como o Filho (“o que crêem
que eu seja?”), mas para ser seguido naquilo que faz. E aquilo que faz exige um
amor perfeito como aquele do Pai celeste”. Em semelhante linha de reflexão, o
teólogo Vito Mancuso, ex professor na Universidade dos Estudos de Pádova
(Itália), assinala que a confissão na divindade de Jesus, certamente
importante, não se coloca como decisiva no debate entre crentes e não crentes;
assim como a crença na centralidade da igreja. O decisivo não é nem Cristo, nem
a igreja, mas a “natureza do homem: se orientada ontologicamente ao bem ou não;
se criada à imagem do Sumo Bem ou não; se proveniente da luz ou não”. O que
ganha centralidade é a conduta humana, sua orientação para o bem. O que se
coloca agora na ordem do dia é a potencialização divina do humano, de forma a
fazer crescer no tempo o amor aos outros. Os cristãos acreditam, como Mancuso,
que a perspectiva da fé em Deus, “que liga a origem do homem à luz do Bem” é
capaz de orientar a consciência no caminho da justiça e da solidariedade; mas
também essa orientação positiva pode ocorrer, com grande riqueza, como desdobramento
da qualidade moral do ser humano, na obediência de sua consciência, mesmo fora
de uma vinculação explícita a uma tradição religiosa (Francisco & Scalfari,
2013, 79-81 e 144).
Nesse primeiro ano de pontificado, o papa Francisco
mostrou-se sensível e aberto ao tema do diálogo nas suas várias expressões de
realização. Assumiu o espírito franciscano de Assis, de acolhida, de respeito e
amizade pelos outros, sejam religiosos ou não. Colocou sobretudo em destaque as
qualidades do espírito humano que potenciam todos os indivíduos, como a
cortesia, a hospitalidade, a delicadeza, a alegria, a esperança, a compaixão, a
misericórdia e a afirmação da vida. São essas as qualidades essenciais que
indicam, no cristianismo, a resposta positiva ao chamado do Deus sempre maior
(Mt 25,31-46). O diálogo, tão incentivado por Francisco, coloca em ação os
esforços conjuntos em favor da defesa da dignidade humana, da afirmação de uma
convivência harmoniosa entre os povos e da salvaguarda da criação.
Referências
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(Publicado
no livro: José Maria da SILVA (Org).
Papa Francisco: perspectivas e expectativas de um papado. Petrópolis: Vozes,
2014)