A teologia da libertação
pluralista para além do inclusivismo
Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF
Introdução
Em 1995, o teólogo Paul Knitter
lançou um importante livro tratando o tema do diálogo interreligioso e a
responsabilidade global
.
Indica ali que a “dor do mundo” constitui o grande desafio interreligioso e o
ponto comum que convoca a consciência ética de todos em favor de uma
responsabilidade global. Propõem em sua obra um “diálogo correlacional e
globalmente responsável” entre as religiões do mundo, entendido como o caminho
necessário para um diálogo pluralista e libertador. Para esse trabalho,
identifica uma rica proximidade entre as propostas defendidas pela teologia do
pluralismo religioso e a teologia da libertação. São teologia que se
complementam: uma se debruça sobre o “outro religioso” e a outra sobre o “outro
sofredor”. Sinaliza que o desafio dialogal pressupõe a inclusão desses dois
“outros”. E indica ainda que essa categoria “outro sofredor” envolve não apenas
os seres humanos, mas igualmente todos os habitantes da terra, e a Terra mesma.
Daí se falar em “libertação eco-humana”.
Essa perspectiva teológico-dialogal
veio enriquecida pelo amplo projeto da Comissão Teológica Latino-Americana da
ASETT/EATWOT, intitulado: “Pelos muitos caminhos de Deus”. O projeto, iniciado
em 2003, envolveu a produção de cinco livros: “Desafios do pluralismo religioso
à teologia da libertação” (2003); “Rumo a uma teologia cristã latino-americana
do pluralismo religioso” (2004); “Teologia latino-americana pluralista da
libertação” (2005); “Teologia pluralista libertadora intercontinental” (2006);
“Por uma teologia planetária” (2010). Como sublinhou José Maria Vigil, o grande
idealizador do projeto, a intenção motivadora desse trabalho, desde o início,
foi a de “tentar cruzar a teologia da libertação com a teologia do pluralismo
religioso”. No início do trabalho, como lembra Vigil, essas duas teologia
encontravam-se distanciadas uma da outra, voltadas para o seu âmbito
específico. Ao final do projeto, elas deixam de ser “duas desconhecidas” e
iniciam um intercâmbio criativo, propiciando horizontes desafiantes e
novidadeiros para a reflexão comum.
Já se pode falar hoje em dia de um
projeto de “teologia latino-americana pluralista da libertação”, envolvendo
vários autores do continente, com abordagens singulares e provocadoras. Nesse
breve ensaio, visa-se trabalhar a delicada questão do desafio “correlacional”
da teologia da libertação, em seu projeto de acolhida do pluralismo religioso e
de percepção da “dignidade da diferença”. Como sublinha Knitter,
“um diálogo ´correlacional` das
religiões afirma a pluralidade de religiões, não porque a pluralidade é boa em
si mesma, mas porque é uma realidade de vida e a matéria do relacionamento. O
modelo correlacional busca promover relações de diálogo autênticas e
verdadeiramente mútuas entre as comunidades religiosas do mundo, análogas ao
tipo de relações que buscamos alimentar entre os nossos amigos e colegas”.
Como
foco da reflexão, as dificuldades ainda presentes no âmbito da teologia da
libertação no sentido da afirmação de uma perspectiva de acolhimento do
pluralismo religioso de princípio, que é base fundamental para o exercício de
uma autêntica correlacionalidade interreligiosa.
A
força do referencial inclusivista
Não há dúvida sobre a vigência
substantiva do paradigma inclusivista na reflexão teológica contemporânea. É um
traço que permanece aceso, embora já se perceba nuances diferenciadas na
concepção inclusivista, envolvendo modelos diversificados de abordagem das
religiões no plano da salvação. Tendo em
vista a tradição cristã, constata-se uma nova sensibilidade para com a
diversidade religiosa, mas com a firme convicção da centralidade crística. Isso
ocorre no protestantismo, dado o influxo exercido pela teologia barthiana, que
opera uma nítida oposição entre revelação e religião
. Em
sua Dogmática, Karl Barth assinala que “
extra
Christum nulla salus”. A ênfase vem dada à salvação operada por Cristo, ou
seja à pertença crística, reconhecida e confessada pela igreja
.
Trata-se de uma perspectiva que, em geral, foi seguida pelas grandes Dogmáticas
protestantes. Também no catolicismo, manteve-se essa centralidade crística,
acrescida da ideia da necessidade da igreja para a salvação.
O olhar atento para a teologia
católica nos anos que precedem o Concílio Vaticano II (1962-1965), faculta uma
clara percepção de um cristocentrismo eclesiocentrado. A atmosfera teológica do
período vinha pontuada pelo influxo da encíclica
Mystici Corporis, de Pio XII (1943), que identificava a igreja
católica com o corpo místico de Cristo (DzH 3802)
.
Na visão de Pio XII, a igreja católica “é na terra como outro Cristo” (DzH
3813). Ela vem habitada pelo “Espírito de Cristo”, sendo ele o princípio de sua
ação vital. Este Espírito que atua na igreja, “recusa habitar com a graça
santificante nos membros totalmente cortados do corpo” (DzH 3808)
.
Segundo a encíclica, aqueles que não pertencem ao “conjunto visível” da igreja
católica “não podem estar seguros de sua eterna salvação”, mas encontram-se,
por desejo e voto inconsciente, “ordenados ao Corpo místico do Redentor” (DzH 3821)
.
A visão eclesiológica inclusivista
firma-se no período com a clássica obra de Henri de Lubac,
Catholicisme, les aspects sociaux du dogme
, cujo sétimo capítulo foi dedicado ao
tema da “salvação pela Igreja”. Com base no pensamento dos padres da Igreja, De
Lubac opta por uma “fórmula mais positiva” e menos severa para o tradicional
axioma católico: “
extra Ecclesiam nulla
salus”. Fala-se agora em “salvação pela Igreja”. Retoma-se o tema da
universalidade da graça do Cristo, com base em Tomás de Aquino, admitindo-se
sua presença nas “almas de boa vontade”. Mesmo com esta “positividade”
mantém-se firme a posição tradicional de que “só” pela igreja ocorre o processo
salvífico
.
Admite o teólogo que fora do cristianismo pode ocorrer, por exceção,
experiências de elevação espiritual, mas que permanecem limitadas, necessitando
da fecundação propiciada pelo cristianismo
.
O teólogo francês reforça a importância do trabalho missionário da igreja, no
sentido da convocação de uma pertença explícita. Reagindo aos que defendem a
ideia da suficiência de um “cristianismo implícito”, reitera a importância do
reconhecimento expresso desse sobrenatural anônimo na profissão de fé cristã
.
No esquema sobre a Igreja,
apresentado aos padres conciliares na sessão de abertura do Vaticano II, em
1962, aparecia a identificação entre a igreja católica romana e o Corpo místico
de Cristo, como expresso por Pio XII na Mystici
Corporis (1943) e na Humani Generis
(1950). Esse esquema, apresentado pela comissão preparatória, foi contestado
pelos padres conciliares, passando por importante revisão ao longo das sessões
conciliares. O resultado a que se chegou no concílio sobre esse controvertido
tema está expresso na Constituição Dogmática Lumen Gentium 8:
“Esta Igreja (de Cristo),
constituída e organizada neste mundo como sociedade, subsiste na Igreja
católica, governada pelo sucessor de Pedro e pelos bispos em comunhão com ele,
embora fora de sua estrutura se encontrem numerosos elementos de santificação e
de verdade, os quais, por serem dons pertencentes à Igreja de Cristo, impelem
para a unidade católica” (DzH 4119)
Verifica-se
uma nítida mudança com respeito ao posicionamento até então vigente, que
identificava a Igreja de Cristo com a Igreja católica romana. Deixa-se de usar
a expressão “é” (
est) e adota-se a
expressão “subsiste” (
subsistit).
Segundo Francis Sullivan, esta decisão conciliar traduz a convicção de “não
mais afirmar aquela absoluta e exclusiva identidade entre a Igreja de Cristo e
a Igreja católica até então sustentada nos esquemas precedentes”, abrindo assim
espaço para o reconhecimento de eclesialidade no mundo não católico
.
O tradicional axioma “
extra Ecclesiam nulla salus” não vem
formulado explicitamente pelo Concílio Vaticano II, mas fala-se, sim, em
necessidade da igreja para a salvação, como expresso no Decreto sobre o
ecumenismo,
Unitatis Redintegratio: “Só
pela Igreja católica de Cristo, que é o meio geral de salvação, pode ser
atingida toda a plenitude dos meios salvíficos” (DzH 4190)
.
Com toque de positividade, o Concílio retoma o tema da universalidade da
salvação e da operação invisível da graça entre aqueles “de boa vontade”.
Indica na
Lumen Gentium 16 que
“Não nega a divina Providência
os auxílios necessários à salvação aos que, sem culpa, não chegaram ainda ao
conhecimento explícito de Deus e se esforçam, não sem o auxílio da graça, por
levar uma vida reta. Tudo quanto de bom e verdadeiro neles há, é considerado
pela Igreja como preparação para o Evangelho e dado por Aquele que ilumina
todos os homens, para que possuam finalmente a vida” (DzH 4140).
O
Concílio sinaliza que Deus mesmo pode levar ao encontro do Mistério “todos os
homens de boa vontade, em cujos corações atua, de maneira invisível, a graça” (GS
22 - DzH 4322)
.
Mas mantém viva a ideia de um acabamento ou aperfeiçoamento cristão da busca
humana, realizada fora ou no interior das religiões. A
Lumen Gentium fala em “preparação evangélica” (LG 16), a
Gaudium et Spes fala em “associação” ao
mistério pascal por caminhos conhecidos por Deus (GS 22), a
Ad Gentes fala que o que há de bom
semeado entre os homens e nos ritos e culturas dos povos deve ser “sanado,
elevado e consumado para a glória de Deus, confusão do demônio e felicidade do
homem” (AG 9).
O Concílio, ao adotar o tema da
“preparação evangélica”, típica da teologia do acabamento, recebe um nítido
influxo de Henri de Lubac. Como sublinha com razão Ilaria Morali, foi esse
teólogo que lançou essa temática nos anos precedentes ao Concílio Vaticano II e
contribuiu para “a fixação dos motivos teológicos” que estão na base da
discussão conciliar sobre a questão salvífica das religiões não cristãs. Foi
árduo o seu trabalho contra as pressões em favor da declaração do valor
salvífico das religiões não cristãs
.
Em seu diário do Concílio, em passagem datada de abril de 1965, Henri de Lubac relata uma reunião do
Secretariado para os Não Cristãos onde foi tratado o tema da salvação dos não
cristãos. Sublinha que o papa (Paulo VI) havia convocado os membros desse secretariado
para um sério estudo dessa questão. Ele se inquietava com as teorias lançadas
por certos teólogos que defendiam a ideia de que o cristianismo seria apenas
uma “via extraordinária de salvação”
.
Na visão de Pietro Rossano, que
exerceu em 1973 o cargo de secretário no Secretariado para os Não Cristãos –
órgão criado por Paulo VI em maio de 1964 -, o Concílio Vaticano II situou-se
numa clara linha cristocêntrica: “Para o cristão está fundamentalmente claro
que o único caminho de salvação é Cristo. As religiões podem situar-se nesse
caminho na medida em que acolham e expressem sua influência e sua iluminação”
.
Permanece também vigente a ideia da necessidade da igreja para a salvação e a
compreensão das religiões como “marcos de espera” para a sua plena realização no cristianismo.
O magistério católico seguiu essa perspectiva em documentos posteriores ao
Concílio Vaticano II, como a
Evangelii Nuntiandi
(Paulo VI), a
Redemptoris Missio
(João Paulo II), e a
Dominus Iesus
(Congregação Para a Doutrina da Fé)
.
A
teologia da libertação e as religiões
Muitos teólogos da libertação foram
formados nesse horizonte teológico renovador que suscitou experiências
novidadeiras como a do Vaticano II. É verdade que a perspectiva
latino-americana facultou uma visada distinta nessa teologia que se firma no
final da década de 1960. A teologia da libertação mostra nuances diferenciadas
com respeito à teologia europeia. Como mostrou com pertinência Jon Sobrino, “a
diferença mais fundamental entre ambas teologias consiste no fato da teologia
latino-americana tratar de responder a uma nova problemática, que não é
isoladamente a do sentido da fé, mas a do sentido da situação real da América
Latina, na qual apresenta-se também o problema do sentido da fé”
. O
grande desafio que se apresenta na ocasião à teologia da libertação não é tanto
o do “ateísmo”, ou da retomada de uma fé que se vê ameaçada pela secularização,
mas a do “não-homem”, ou seja a dura realidade da miséria e da exclusão dos
pobres. Esse desafio vem nomeado como o “mundo do outro”, entendido claramente
como o “mundo do pobre” ou do “oprimido”
.
Na perspectiva da teologia da
libertação, o outro por excelência, o verdadeiramente próximo era o
empobrecido. Particularmente no seu início, a esta teologia situou como traço
central a questão da classe, do pobre e da luta social e política. O tema
preponderante era o da libertação. O envolvimento dos “outros religiosos” não
entrava no foco de abordagem ou de interesse naquele momento inicial. Para
assegurar o traço “específico” e “autóctone” da reflexão teológica
latino-americana deixou-se de considerar o tema das religiões, com a
concentração na questão dos pobres. Como sublinha Carlos Palácio,
“houve não poucas resistências
a enveredar por esses novos caminhos, por violentar os temas, reduzindo-os de
alguma forma à questão dos pobres. É a impressão que dava, em um primeiro
momento, a tentativa de revitalizar a ´opção pelos pobres` com a problemática
do negro, do índio ou da mulher. Ou, de forma mais explícita, não reconhecendo
a relevância de outras perspectivas aparentemente não libertadoras, como a da
modernidade, a das culturas ou a das religiões”.
A abertura ao tema das religiões foi
ocorrendo progressivamente, no processo mesmo de imersão dos teólogos na vida
das comunidades, quando se acendeu a consciência de que esse tema da
“diversidade do outro” era também substantivo e essencial
.
Em linha de continuidade com a
perspectiva firmada no Concílio Vaticano II, a teologia da libertação, em seu
momento fundacional, estava também marcada pelo referencial inclusivista. O
olhar atento para algumas das produções teológicas daquele período faculta
perceber a dimensão cristocêntrica e, de certa forma, eclesiocêntrica de seus
autores. Há que reconhecer, porém, que esta perspectiva vem ampliada com o
horizonte mais amplo do reino de Deus, sempre muito nuclear na teologia da
libertação. A igreja vem sempre situada diante desse horizonte maior, como a
“parte do mundo que se coloca a serviço do Reino para que se antecipe mais
plenamente no mundo”
.
A dinâmica inclusivista está
irradiada nos diversos textos fundadores da teologia da libertação. Na obra
nuclear de Gustavo Gutiérrez,
Teologia da
libertação (1972), ele fala de uma “história cristofinalizada” e da igreja
como “sacramento universal da salvação”, retomando a imagem consagrada no
Vaticano II. Indica que a igreja é “a humanidade própria atenta à palavra, povo
de Deus que vive na história e orienta-se para o futuro prometido pelo Senhor;
é como dizia Teilhard de Chardin, a ´porção reflexivamente cristificada do
mundo`”
.
Uma semelhante centralidade concedida à igreja verifica-se na tese doutoral de
Leonardo Boff, defendida em Munique, na Alemanha, em 1969 e publicada como
livro em 1972
.
Em sua tese, Boff reconhece a significação salvífica legítima das religiões com
base nas reflexões de Heinz Robert Schlette, mas mantém acesa a ideia
tradicional da “necessidade da Igreja visível para a salvação”
.
O autor não desconhece a presença visível do
universale sacramentum salutis nas religiões, mas indica que sua
“plenitude” ocorre de forma institucionalmente perfeita na igreja. Ele
reconhece que a salvação está em operação nas religiões, e não apesar delas,
mas de forma limitada, já que a Igreja de Cristo manifesta-se ali “de um modo imperfeito”
. Essa essencialidade da igreja para a salvação
é sublinhada por diversos outros autores ligados à teologia da libertação. Juan
Luis Segundo fala da “mediação universal da Igreja de Cristo” e do lugar
culminante da igreja no âmbito da evolução
e
Clodovis Boff fala na igreja como ponto culminante da densificação do Reino
.
Não se pode relativizar o enorme
peso dos argumentos doutrinais tradicionais consagradas no itinerário da igreja
católico romana ao longo destes dois milênios. Não é tarefa muito fácil o
exercício hermenêutico de ampliar a compreensão de certas perspectivas fixadas
como sólidas e irrenunciáveis. Isso ocorre sobretudo nos campos da cristologia
e da eclesiologia. De fato, a busca de fidelidade ao passado acaba sendo
preponderante e o “terror, em face do risco inerente a qualquer interpretação,
provoca a repetição das fórmulas tradicionais”
.
Esse “embaraço eclesiológico” também incidiu na teologia da libertação, ou
seja, a dificuldade real de fazer avançar uma reflexão eclesiológica para além
dos limites definidos pela reflexão magisterial tradicional. Um exemplo pode
ser destacado na obra de Elias Wolff sobre a caminhada do ecumenismo no Brasil.
Quando ele aborda a questão da diversidade religiosa, busca reiterar uma
posição distinta daqueles que defendem um “macroecumenismo”, e o faz em razão
da defesa de um “específico cristão”. Afirma que “há verdades que a partir de
Jesus Cristo não podem ser renunciadas e que são constitutivas da unicidade e
universalidade salvífica que Ele propõe”
. Em
nome de um cristocentrismo reage-se também contra um “pluralismo de princípio”.
Com base numa compreensão da completude da revelação em Jesus Cristo,
defende-se a ideia de que as religiões não podem “completar o que faltou em Jesus
Cristo”, pois a economia cristã já se completou com ele (DV 4), mas sim a
“apropriação” da verdade última sobre Deus já definida no único desígnio
salvífico de Deus
.
A
teologia da libertação desafiada pelo pluralismo religioso
A partir do final da década de 1980,
a teologia de libertação desperta para uma nova sensibilidade para com a
questão das religiões, passando então a responder de forma mais amadurecida e
autônoma ao desafio da acolhida da diversidade. Vale destacar a importância da
provocação que veio de teólogos da Ásia, entre os quais Aloysius Pieris, no
sentido de alargar o olhar da teologia latino-americana visando a inclusão em
seu projeto dos “outros” religiosos. Uma tal abertura seria um fator decisivo
de enriquecimento não só na compreensão da dinâmica reveladora de Deus, como
também de enriquecimento da perspectiva da libertação. Rompendo uma “divisão de
trabalho” que delegava aos teólogos das religiões a tarefa de lidar com o
pluralismo religioso, e aos teólogos da libertação, a questão mais geral do
sofrimento e da injustiça, firma-se a partir desse período um desafio de
trabalho comum, irmanando teólogos das religiões (e do pluralismo religioso) e
teólogos da libertação. São, na verdade, teologias que necessitam uma da outra,
como bem sinalizou Paul Knitter:
“Nos últimos anos, porém, está
ficando claro como as duas teologias precisam urgentemente uma da outra. Os
teólogos da libertação estão percebendo que a libertação econômica, política e
especialmente nuclear é uma tarefa grande demais para uma única nação, cultura
ou religião. Torna-se necessário compartilhar, em âmbito intercultural e
interreligioso, a teoria da práxis da libertação. E os teólogos das religiões
estão percebendo que um diálogo entre as religiões que não promova o bem-estar
de toda a humanidade não é diálogo religioso”.
Ao tratar das grandes provocações que
se colocam para a teologia da libertação no século XXI, Gustavo Gutiérrez situa
o tema pluralismo religioso. Sublinha ser esse um “território novo e exigente”,
que deve ser objeto não apenas de uma reflexão teórica, mas que exige uma
prática viva de diálogo interreligioso. E esse apelo em favor da acolhida do
pluralismo religioso vem justamente das nações mais pobres da humanidade, o que
indica sua sintonia com a própria teologia da libertação
.
Acolher o pluralismo religioso e
reconhecer teologicamente a dignidade da diferença não são tarefas simples para
a teologia. É um trabalho que envolve mudanças no tratamento de algumas
questões tradicionais nos campos da revelação, cristologia, eclesiologia,
missão etc. Tem razão Libânio ao assinalar que o diálogo interreligioso
“caminha por vias mais difíceis” e que a questão do pluralismo religioso de
direito é aguda e tem vivas consequências teológicas
.
Repensar a teologia na perspectiva do pluralismo religioso pressupõe uma
“virada hermenêutica”, mas não há como se desviar desse desafio, já que ele
estará “no horizonte da teologia do século XXI”
.
É a reconsideração ou reexame do núcleo “duro” da tradição que causa maior
dificuldade e provoca a resistência de muitos, inclusive dentro da teologia da
libertação. De fato,
“A TL latino americana clássica
tem sido construída sobre o paradigma do inclusivismo/cristocentrismo.
Recorra-se a qualquer tratado de cristologia da TL e será possível ver que,
mesmo que nunca se coloque no paradigma exclusivista, em momento algum é
questionado o paradigma inclusivista. É verdade que a TL é muito generosa em
reconhecer a presença de Deus e da salvação fora dos limites da Igreja, e que
neste sentido aproxima-se do que seria uma posição pluralista; mas essa
salvação é sempre considerada em definitivo como ´cristã`, conseguida por
Cristo”.
Essa laboriosa tarefa começa a ser
progressivamente feita por alguns teólogos da libertação e reunidas em obras de
destaque, como a coleção “Pelos caminhos de Deus”, citada anteriormente.
Trata-se de um trabalho que já vem produzindo frutos importantes na teologia
europeia e norte americana. Vale destacar, no âmbito da teologia da revelação,
o trabalho decisivo de Andrés Torres Queiruga, questionando a ideia de uma
clausura da revelação, como se com Jesus Cristo toda a história da salvação
tivesse encontrado o seu remate definitivo e irreversível. Ele aponta o caminho
novidadeiro de compreensão da revelação como “algo sempre atual e aberto ao
futuro”, sem quebrar a singularidade de Jesus
.
No campo da cristologia, as inovadoras pesquisas
propiciadas por Jacques Dupuis, Edward Schillebeeckx, Christian Duquoc e Roger
Haight. Em corajosa reflexão no
Post
scriptum de seu livro,
o cristianismo
e as religiões (2001), Jacques Dupuis faz um sério questionamento à
manutenção de “afirmações exclusivistas” que acabam prejudicando o verdadeiro
diálogo entre as religiões. São afirmações que contrariam ou negam o positivo
desígnio de Deus em favor da humanidade e das outras tradições religiosas.
Sublinha que “afirmações absolutas e exclusivas sobre Cristo e sobre o cristianismo,
que reivindicassem a posse exclusiva da auto-manifestação de Deus ou dos meios
de salvação, distorceriam e contradiriam a mensagem cristã e a imagem cristã”
. Em
verdade, nem todo cristocentrismo é cristão, como assinalou Adolphe Geshé,
lembrando Yves Congar. Quando a teologia ou a tradição diminuem ou apagam o
“distanciamento” entre Deus e nós, ou entre Deus e Jesus, acabam por
negligenciar um fundamental “campo de imanência” do
corpus cristão. Este é, inclusive, “um dos sentidos do segredo
messiânico”. O esquecimento dessa distância acaba suscitando o risco de
idolatria, que traduz justamente a recusa do distanciamento e a pretensão
arrogante de “acesso total” ao Mistério inacessível
.
Ainda nesse campo da cristologia, o teólogo Roger Haight
levanta uma questão de extrema importância. Ao tratar dos critérios da
cristologia, fala da “inteligibilidade no mundo de hoje, incluindo a coerência
interna”. Como tratar, por exemplo, hoje em dia da questão da constitutividade
salvífica de Jesus ou do estabelecimento de um nexo causal entre Jesus e a
salvação ? Será que a defesa de uma tal percepção – fundada num caminho de
tradição – permanece plausível hoje em dia ? Roger Haight assinala que “não é
necessário que o reconhecimento da historicidade e do pluralismo religioso leve
ao relativismo religioso”. Um tal reconhecimento não conflitua com a
“perspectiva interna da fé cristã”, que mantém – para os cristãos – a plausibilidade
de uma apropriação cristã da realidade última, que garante a normatividade do
Cristo. Mas a posição constitutiva foi, em si, “minada pela simples
internalização da consciência histórica”. Não há como manter vigente a ideia de
que Jesus é a causa da salvação de todos. O Mistério maior permanece
resguardado por uma reserva escatológica, e
“nem Jesus
nem o cristianismo medeiam uma posse plena de Deus. Sem um senso do mistério
transcendente de Deus, sem o saudável agnosticismo daquilo que de fato não
conhecemos acerca de Deus, não se esperará conhecer mais a respeito dele a
partir do que é transmitido a nós, seres humanos, por meio de outras revelações
e religiões”.
A
consideração da normatividade de Jesus não invalida, segundo Haight, a
avaliação positiva do pluralismo religioso, entendido como pluralismo de
princípio, acolhido e querido por Deus. Não há, portanto, impedimento para os
cristãos de reconhecerem as outras religiões mundiais como mediações de
salvação. Enquanto que para o cristianismo Jesus Cristo exerce esse lugar
normativo, para outras religiões a mediação fundamental da presença salvífica
de Deus pode ocorrer através de um “evento, um livro, um ensinamento, uma
práxis”. Querer condicionar a verdade das outras religiões a conceitos cristãos
a elas estranhos “é fazer de Jesus uma norma positiva (universal) e recair no
inclusivismo”
.
Quando se reconhece, de fato, a influência salvífica universal de Deus, partilha-se
a consciência de um Deus amigo da criação, e cria-se o espaço de acolhida do
pluralismo religioso, entendido em sua positividade. É garantir a dignidade das
diversas tradições religiosas, em seu direito à diferença, quebrar essa lógica
que fala numa “ordenação” de todas elas ao redil cristão. Trata-se de um
procedimento que, segundo Duquoc, não explica “a extraordinária diversidade das
tradições”, nem respeita suas identidades, conservando delas “apenas sua
capacidade de abrir-se positivamente àquilo que ignoram ou, talvez, até mesmo
combatam”
.
Por fim, no campo da eclesiologia,
mudanças também se fazem necessárias, como por exemplo a reconsideração da
ideia tradicional de que a igreja é sacramento universal da salvação. Trata-se
de uma concepção consagrada no Vaticano II, mas que não respeita a
singularidade das distintas tradições religiosas. Sobre esse delicado tema,
Jacques Dupuis posicionou-se corajosamente, abrindo pistas importantes para a
reflexão. Para ele,
“o fato de a Igreja ser o sacramento do
Reino de Deus universalmente presente na história não implica necessariamente
que ela exerça uma atividade de mediação universal da graça em favor dos membros
das outras tradições religiosas que entraram no Reino de Deus respondendo ao
convite de Deus pela fé e pelo amor”
.
Conclusão
Tanto a teologia da libertação como
a teologia cristã do pluralismo religioso sublinham com acerto o singular
caminho da retomada de uma cristologia narrativa, que resgate o mistério de
Jesus que é fonte de vida, para além das teias metafísicas em que se viu
envolvido
.
Trata-se do desafio de “voltar sempre de novo à figura de Jesus”
,
ao projeto do Pai e ao horizonte do Reino. Nesse projeto de resgate do Jesus
histórico e de seu projeto, de sua convocação ao essencial desafio de
solidariedade e acolhida dos pobres e dos outros, estão irmanadas as duas
teologias. Um projeto de reviver uma cristologia que retome o fôlego de sua
historicidade e que acentue a relacionalidade de Jesus. E isto tem uma viva
repercussão na missão, exercida agora mais como uma experiência de partilha de
amor, que não exclui a proclamação de Jesus, mediante os atos e o diálogo, sem
igualmente excluir o reconhecimento e a abertura às experiências religiosas
aninhadas na vida dos amigos de outras tradições.
Publicado
na Revista Alternativas (Nicarágua), n. 44 – dezembro de 2012