Análise sócio-fenomenológica do pluralismo religioso
no Brasil[1]
Faustino
Teixeira
PPCIR-UFJF
Um dos grandes desafios que se
apresentam às tradições religiosas nesse século XXI é o da abertura e acolhida
da diversidade religiosa. As igrejas cristãs são igualmente convocadas a pensar
com seriedade nessa imperativa questão. O campo religioso brasileiro vive nas
últimas décadas uma experiência inédita de pluralização, como apontado no
ultimo Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), divulgado em junho de 2012. O objetivo desse breve ensaio é favorecer
um conhecimentos de alguns dos dados mais importantes apontados no censo,
visando um aprofundamento e debate.
Apresentação dos dados do Censo 2010
Em
junho de 2012 foram divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) os resultados do Censo 2010 com respeito ao perfil religioso
da população brasileira. Uma primeira conclusão que pode ser destacada com a
verificação dos dados é o aumento da diversidade religiosa no Brasil, cuja
visibilidade é mais destacada “nas áreas mais urbanizadas e populosas do país”
(IBGE, 2012, p. 90). Fica cada vez mais difícil e carente de plausibilidade
falar de uma “cultura católico-brasileira”. No final do século XIX e início do
século XX a situação religiosa no Brasil era bem diferente e se podia falar em
hegemonia da religião católica apostólica romana no país. Por volta de 1872 a
porcentagem dos declarantes católicos era de 99,7%. Oradores do início do
século XX, ao tratar da identidade nacional, falavam com tranquilidade de um
Brasil “intrinsecamente católico”. Dizia o pe. Júlio Maria no Livro do Centenário, que “o catolicismo
formou a nossa nacionalidade... Um ideal de pátria brasileira sem a fé católica
é um absurdo histórico como uma impossibilidade política” (SANCHIS, 1994, p.
35).
As
bases de uma tal convicção foram aos poucos sendo abaladas pelos dados
apresentados pelos inúmeros censos demográficos realizados no país. Segundo os
dados do IBGE, “em aproximadamente um século, a proporção de católicos na população variou 7,9
pontos percentuais, reduzindo de 99,7%, em 1872, para 91,8% em 1970” (IBGE,
2012, p. 89). Na sequência dos censos os números da declaração católica vão
progressivamente decaindo: 89,2% em 1980; 83,3% em 1991; 73,6% em 2000 e 64,6%
em 2010. Os analistas sublinham que o catolicismo romano foi o “principal
celeiro” de doação de fiéis para outras tradições religiosas ou para os assim
denominados “sem religião”. Só na última década a perda de fiéis católicos foi na
ordem de 465 adeptos por dia, o equivalente à população da cidade de Curitiba.
Os católico-romanos somam hoje no Brasil, segundo os dados do censo, 123,2
milhões de adeptos declarados numa população de 190,7 milhões de habitantes. E
em 2000 somavam 124,9 milhões de adeptos, numa população de 170 milhões de
habitantes. Conforme os dados apresentados, a mais significativa presença católico-romana
encontra-se nas Regiões Nordeste e Sul, e a maior redução relativa de adeptos
está situada na Região Norte. Indica-se também que boa parte da
representatividade relativa dos católicos foi registrada em domicílios de
residentes em áreas rurais, com porcentagem maior de homens. Com base em dados
proporcionais, os católicos declarados são também maioria entre os que estão
acima dos 40 anos (IBGE, 2012, p. 99).
Contribuiu
para essa mudança na composição religiosa da população brasileira, o
crescimento daqueles que se declararam evangélicos.
Este específico segmento, que em 1940 representava apenas 2,6% dos declarantes,
teve significativa ampliação nos últimos
quarenta anos: 5,8% em 1970; 6,6% em 1980; 9,0% em 1991; 15,4% em 2000 e 22,2%
em 2010 (42,2 milhões de fiéis). Só na última década, o aumento em número
absoluto de evangélicos foi de 16 milhões de adeptos, uma média de 4.383 fiéis
por dia. O traço distintivo nesse crescimento deve-se, sobretudo, à afirmação
dos evangélicos pentecostais. Em 2000, do total de evangélicos declarados
(15,4%), mais de dois terços (10,43%) eram pentecostais, e em 2010, 13,3% (25,3
milhões). Há que registrar ainda, nos dados do último censo, a presença do
grupo de evangélicos não determinados (9,2 milhões), envolvendo a declaração de
crença daqueles que não indicaram vinculação institucional ou cuja pertença não
pôde ser classificada. O segmento dos evangélicos de missão teve uma ligeira
redução proporcional entre os dados dos dois últimos censos: 4,1% em 2000 e
4,0% em 2010, mas em verdade mantém uma estabilidade de participação com
respeito ao total da população. O último censo evidencia uma expressiva
presença dos evangélicos, e em particular dos pentecostais, nas Regiões Norte e
Centro-Oeste, mas firmam-se também nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro,
bem como nas áreas metropolitanas da Região Nordeste. Ao contrário do que se
verifica no contingente de católicos declarados, há, em termos proporcionais,
uma mais forte presença de mulheres entre os evangélicos, e em idade mais
jovem, sobretudo entre os pentecostais.
O
censo de 2010 registra também um crescimento de pessoas que se declararam sem religião, embora esse aumento tenha
ficado abaixo dos prognósticos. Enquanto esse grupo respondia por 7,4% dos
declarantes em 2000, passa hoje a responder por 8,0%, contando com 15 milhões
de pessoas. É um segmento que marca presença na Região Sudeste, de modo
particular no Estado do Rio de Janeiro, embora se distribua pelas diversas
áreas do país.
Quanto
à presença dos espíritas, os dados
do censo de 2010 também sinalizam um crescimento. Eles correspondiam a 1,3% da
declaração de crença em 2000, passando para 2,0% em 2010. Dentre as Grandes
Regiões, sua presença vem destacada na Região Sudeste, e sua menor incidência
nas Regiões Norte e Nordeste. Os dados apontaram também, entre os declarantes
espíritas, um elevado percentual de brancos, bem como as melhores taxas de
escolarização (IBGE, 2012, p. 101 e 104). Com respeito à umbanda e o candomblé,
não houve registro de mudança na última década. É um núcleo que permanece
estacionado na faixa dos 0,3% pontos percentuais. Sua presença mais importante
ocorre na Região Sul e sua menor incidência nas regiões Centro-Oeste e Norte.
As
outras religiosidades concentram-se
numa faixa restrita de 2,7% de declaração de crença. Registra-se um crescimento
deste segmento na última década, já que no censo de 2000 eles representavam
1,8% dos declarantes. Dentre estas religiosidades destacam-se a presença do
budismo (243.966), do judaísmo (107.329) e das novas religiões orientais
(155.951). Tanto o islamismo como o hinduísmo ainda apresentam uma reduzida
declaração de crença no país, contando com respectivamente 35.167 e 5.675
adeptos.
Reagindo aos dados
Os
dados apresentados pelo último censo demonstram, de fato, um aumento da
diversidade religiosa no país. Mas trata-se ainda de uma diversidade um pouco
acanhada, já que dois contingentes da área cristã, os católicos e evangélicos,
concentram praticamente 86,8% da declaração de crença no país[2].
Isso significa a permanência de uma forte hegemonia cristã. As outras
religiões, incluindo aqui a religião espírita, a umbanda, o candomblé e as
tradições indígenas, bem como as demais registradas pelo IBGE na modalidade de
outras religiosidades, ficam reduzidas a uma estreita faixa de 5% da declaração
de crença. A esta porcentagem soma-se também a presença importante dos sem
religião, com 8,0% de adesão declarada.
Talvez
um elemento que jogue a favor dessa percepção plural do campo religioso
brasileiro é a compreensão das teias diversificadas que configuram o
catolicismo no país. Trata-se de um catolicismo de malhas largas, que acolhe em
seu próprio interior “muitas religiões”, e que se veste de plural, como tão bem
acentuou Pierre Sanchis em introdução a uma pesquisa de fôlego realizada pelo
ISER em torno do catolicismo (SANCHIS, 1992, p. 33). Desde sua longa presença
no Brasil, o catolicismo foi adquirindo uma artimanha particular, favorecendo e
permitindo a polissêmica incorporação de várias culturas e ajeitando-se às
múltiplas formas de vivência pessoal e comunitária da fé. É um catolicismo que
faculta a possibilidade de dupla ou tripla pertenças, como as pesquisas de
campo têm favorecido perceber. Há católicos que acreditam na reencarnação ou
que combinam elementos de diferentes espiritualidades em seu repertório
identitário. O antropólogo Carlos Steil cunhou a feliz metáfora da “porta
giratória” para tratar desse complexo e instigante fenômeno da presença de
“diferentes regimes do religioso” que se articulam no campo do catolicismo. E
exemplifica a partir de um estudo de caso o influxo num grupo específico do
catolicismo de crenças do repertório do catolicismo popular, do
pentecostalismo, do espiritismo, das religiões afro-brasileiras e da nova era
(STEIL, 2004, p. 30-31). Essas pertenças múltiplas o censo não consegue ainda
captar com pertinência, ou então as pessoas ficam inibidas em declarar. No
último censo apenas 15.379 pessoas declararam múltipla religiosidade, o que,
sem dúvida, não corresponde à realidade.
Interessante
constatar a dificuldade de segmentos importantes da igreja católico-romana em
reconhecer essa situação de enfraquecimemto do catolicismo no país. O censo
mostra a realidade de uma sangria que não pode ser desconhecida ou minimizada.
Verifica-se um nítido contraste entre os dados apresentados pelo último censo e
os dados divulgados pelo censo anual da igreja católica no Brasil, produzidos
pelo Centro de Estatísticas Religiosas e Investigações Sociais (CERIS). Na
avaliação do CERIS, o catolicismo no Brasil está “vivo e vicejante”, e em
“franca expansão”. Na visão desse organismo, a vitalidade vem expressa pelo
“crescimento vertiginoso” das paróquias e pelo “crescimento considerável” do
número de padres (CERIS, 2011). Estaria em curso, segundo a avaliação do CERIS,
um processo de “reencantamento da fé católica” proporcionado pelos
empreendimentos missionários em curso. O ex-assessor da CNBB, o sociólogo Pedro
Ribeiro de Oliveira, reage a tal avaliação, sublinhando que não se pode avaliar
a vitalidade da igreja pelo aumento de número de paróquias ou pelo crescimento
do número de padres. Esse aumento
reflete para ele não a vitalidade da igreja, mas sua clericalização. A seu ver,
a força de qualquer igreja está na sua capacidade de “congregar” os fiéis, de
envolver os leigos na participação eclesial, de forma a se poderem reconhecer
como igreja. A vitalidade da instituição não se mede pelos efeitos de sua
clericalização, mas por sua potencialidade de abertura ao mundo. E complementa:
“Uma igreja é forte quando tem grupos de leigos que se reúnem para atuar no
mundo. Hoje o que vemos é a força de atrair para dentro, ou seja, o bom
católico é aquele que está na igreja. Isso aí é o definhamento da instituição”
(OLIVEIRA, 2012 ). Há também aqueles que tendem a minimizar os dados
apresentados pelo censo indicando que os católicos que ficaram são aqueles
“mais convictos”, ou seja, o êxodo indicado refletiria tão apenas a sinalização
da qualidade efetiva dos fiéis que permaneceram.
O censo aponta não apenas a queda do número
dos católicos no Brasil, como também o vertiginoso crescimento evangélico. Já
se falou das Grandes Regiões onde ocorreu essa maior presença, mas vale
destacar o Estado do Rio de Janeiro, onde em algumas cidades como Duque de
Caxias, Nova Iguaçu e Belford Roxo, o número dos evangélicos já ultrapassou o
número de católicos romanos. Isso se deve, sobretudo, à força pentecostal. E
entre as igrejas pentecostais, os dados revelaram a pujança da Assembléia de
Deus, que congrega 12,3 milhões de adeptos declarantes, um número bem superior
à soma dos membros de todas as tradicionais igrejas evangélicas de missão, como
as igrejas luterana, presbiteriana, metodista, batista, congregacional e adventista,
que em conjunto englobam 7,6 milhões de adeptos declarantes. Segundo a projeção
de estatísticos, se essa tendência permanecer, até o ano de 2040 o número de
católicos e evangélicos vai se equalizar. Esse prognóstico vem reforçado com a
constatação da presença jovem entre os pentecostais, que apresentam uma idade
mediana menor que a verificada entre os católicos romanos. É curioso verificar
o poder de penetração da Assembléia de Deus por toda parte, incluindo o âmbito
das tradições indígenas, cujo número de convertidos à tradição evangélica
aumentou em 42% nos últimos dez anos, sendo uma boa parte ligada à Assembléia
de Deus. Nem todas igrejas pentecostais tiveram a mesma sorte, como é o caso da
Igreja Universal do Reino de Deus, que ao contrário das projeções, perdeu 228
mil fiéis na última década, talvez em razão da afirmação de igrejas dissidentes
e também da pulverização existente no campo pentecostal. Como já apontara o
Censo Institucional Evangélico CIN, de 1992, o número de denominações
pentecostais multiplica-se no Brasil a partir de 1950, sendo grande parte de
criação local, num ritmo de cerca de 10 novas denominações por década (ISER,
1992, p. 21)
Os
dados do censo referentes ao crescimento dos sem religião no Brasil levantam
outras questões, como a denominada “desafeição religiosa” e o diversificado
“trânsito” ou “experimentação religiosa” em curso no país. Quando se fala sobre
os sem religião, indica-se sobretudo aqueles declarantes que estão
“desencaixados” de seus antigos laços e que não apresentam mais os vínculos
institucionais tradicionais. Muitos deles conformam sua religiosidade com
recursos subjetivos peculiares ou com rearranjos criativos. Há também os
agnósticos e ateus, mas estes constituem uma minoria. De acordo com os dados do
último censo, no âmbito geral dos sem religião, que envolvem 15,3 milhões de
declarantes, os agnósticos representam apenas 124,4 mil e os ateus 615 mil
pessoas. O censo de 2010 indicou que os sem religião são mais frequentes entre
os jovens e os adultos jovens (IBGE,
2012, p. 99). São estes núcleos, como bem acentuou Regina Novaes, onde ocorre
maior “disponibilidade para a experimentação”[3].
São eles “os que mais transitam entre vários pertencimentos em busca de
vínculos sociais e espirituais (NOVAES, 2005, p. 271)
Um convite à reflexão
Os
dados estão aí colocados. Cabe agora às igrejas cristãs refletirem sobre suas
implicações concretas e os desafios que eles apresentam à sua caminhada.
Revela-se de importância essencial entender essa dinâmica de pluralização não
necessariamente como um limite ou problema, mas como uma provocação viva para o
exercício missionário sob novas bases e motivado por um espírito diferenciado.
Referências Bibliográficas
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2012: http://www.ceris.org.br/pdfs/analise_censo_igreja_2011.pdf . Acesso em 7/8/2012.
FERNANDES, Sílvia. “A (re) construção da
identidade religiosa inclui dupla ou tripla pertença”. IHU Notícias, 07/07/2012:
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/511249-estamos-falando-de-re-construcao-de-identidade-religiosa-entrevista-especial-com-silvia-fernandes. Acesso em 7/8/2012
INSTITUTO Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). Censo demográfico
2010. Características gerais da população, religião e pessoas com
deficiência. Rio de Janeiro: IBGE, 2012, p. 89.
ISER – Núcleo de Pesquisa. Censo Institucional Evangélico – CIN 1992.
Rio de Janeiro: ISER, 1992.
NOVAES, Regina. Juventude, percepções e
comportamentos: a religião faz diferença? In: ABRAMO, H.W. & BRANCO, P.P.M.
(Orgs). Retratos da juventude brasileira.
Análise de uma pesquisa nacional. São Paulo: Instituto Cidadania/Fundação
Perseu Abramo, 2005, p. 263-290.
OLIVEIRA, Pedro Ribeiro de. A desafeição
religiosa de jovens e adolescentes. IHU
Notícias, 5/7/2012:
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/511180-desafeicao-religiosa-esse-conceito-seria-central-para-entendermos-os-sem-religiao-entrevista-especial-com-pedro-ribeiro-de-oliveira. Acesso em 7/8/2012.
SANCHIS, Pierre. O repto pentecostal à
“cultura católico-brasileira”. In: ANTONIAZZI, Albert et al. Nem anjos nem demônios. Interpretações
sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 34-63.
SANCHIS, Pierre. Introdução. In: ______.
(Org). Catolicismo: modernidade e
tradição. São Paulo: Loyola, 1992, p. 9-39.
STEIL, Carlos. Renovação Carismática
Católica: porta de entrada ou de saída do catolicismo? Uma etnografia do Grupo
São José, em Porto Alegre. Religião &
Sociedade, v. 24, n. 1, 2004, p. 11-36.
TEIXEIRA, Faustino & MENEZES, Renata
(Orgs). As religiões no Brasil.
Continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006.
(Texto publicado na Revista Eclesiástica
Brasileira, v. 72, n. 288, outubro 2012, p. 958-964)
......
[1] Trata-se de um texto de discussão/estudo elaborado
por solicitação do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), visando
o debate de suas Organizações Regionais, tendo como horizonte a produção de uma
cartilha que faculte às Igrejas associadas situarem-se no contexto do
pluralismo religioso.
[2] Isso já havia sido sublinhado pelo sociólogo Antônio
Flávio Pierucci em artigo publicado em 2006: Cadê nossa diversidade religiosa?
(TEIXEIRA & MENEZES, 2006, p. 49-51).
[3]
Ver também (FERNANDES, 2012)
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