sexta-feira, 14 de outubro de 2011

O boi e seu pastor: passos da auto-realização espiritual

O boi e seu pastor: passos da auto-realização espiritual

Faustino Teixeira

PPCIR-UFJF

“Brilha a lua clara e sopra o vento.

Todas as águas de todos os rios

desembocam no grande oceano”

Assim como ocorre nas tradições místicas cristã e islâmica, com mestres como Teresa de Ávila (1515-1582) e Farid ud-Din Attar (1142-1220), também a tradição zen apresenta abordagens que tratam do processo da auto-realização espiritual do ser humano. Um dos exemplos apontados encontra-se na clássica história zen do boi e seu pastor, que vem sendo divulgada desde o século doze nos circuitos do zen japonês. Na verdade, como mostrou Daisetz Suzuki, em seus ensaios sobre o budismo zen, as ilustrações que exemplificam esse processo foram diversificadas. Há pelo menos umas quatro séries de imagens da chamada “caça ao boi”, que apresentam entre cinco a dez imagens que traduzem todo o processo. Nos serviremos aqui das ilustrações utilizadas por Shizutero Ueda (1926-), pensador da terceira geração da Escola de Kyoto, considerado um dos mais importantes filósofos contemporâneos do Japão. Ver a respeito o seu clássico livro sobre Zen e filosofia, traduzido em 2006 para o italiano.

As dez ilustrações do boi e seu pastor traduzem as estações que envolvem o processo de crescimento espiritual ou auto-realização do ser humano. Cada ilustração vem acompanhada por um breve prefácio e um esclarecimento em forma de poema. O boi simboliza o si-mesmo que está sendo procurado e o pastor representa o ser humano em seu esforço para alcançar o verdadeiro si-mesmo. A figura do boi não aparece em todas as ilustrações, mas apenas em quatro, justamente no momento inicial da busca empreendida. Cada ilustração expressa um tema peculiar. A primeira retrata a busca do boi; a segunda, o encontro dos pegadas do boi; a terceira, o encontro com o boi; a quarta, a captura do boi; a quinta, a domesticação do boi; a sexta, o retorno à casa na garupa do boi; a sétima, o esquecimento do boi e o recolhimento do pastor; a oitava, o esquecimento total do boi e do pastor; a nona, o retorno ao fundo e à origem; a décima, a entrada no mercado com as mãos abertas.

Procedendo a hermenêutica das ilustrações, com o aporte da reflexão de Ueda, verifica-se que as sete primeiras ilustrações retratam em progressão os momentos singulares que traduzem os ensinamentos budistas como a meditação, a disciplina e a unificação na bem-aventurança. É com a oitava ilustração que se dá a sinalização de uma estação espiritual nova. Até então, o que ocorria era uma busca a caminho de si mesmo. Com a nova estação procede a realização do verdadeiro si-mesmo. O símbolo que aparece é o do círculo vazio, expressivo da tradição zen. Não há mais boi nem pastor, toda “confusão” se dispersa, tudo se esvazia para predominar a “serenidade”. No poema que acompanha a ilustração, se diz: “brilha a lua clara e sopra o vento. Todas as águas de todos os rios desembocam no grande oceano”. É curioso verificar que em outras séries de ilustrações encontradas na tradição zen, o círculo vazio encerrava o processo. Isso se modifica na série apresentada por Ueda, que se remete ao século doze. A explicação que se dá é sugestiva. Concluir o processo com o círculo vazio pode gerar equívocos, no sentido de favorecer um entendimento limitado de todo o processo, como se a vacuidade fosse o estado mais importante e supremo, ou o termo último da disciplina zen. Isso não significa desconhecer o poder gerador do nada. Em sua clássica obra O que é metafísica, Heidegger sinaliza que “sem a originária revelação do nada não há ser-si-mesmo, nem liberdade”. O nada pertence, como ele diz, “à essência mesma do ser”. Na tradição zen isto está muito evidente, e a oitava ilustração o expressa de forma clara e viva. Trata-se aqui do “nada absoluto no infinitamente aberto”. É um nada que não se encerra em si mesmo, mas que gera afirmação. Ele evidencia a precariedade de toda a dualidade e mantém acesa a dinâmica de um processo que não se fixa nem nisto nem naquilo. Como alerta o prefácio da ilustração, há que ultrapassar a estância de Buda: “Caminhe veloz para onde não reside nenhum Buda”. Não há como acessar o eu verdadeiro, o si mesmo, sem passar por essa “morte fundamental”. Fala-se no budismo em “morrer a grande morte”, diante da qual a morte física se apequena. Também na tradição sufi se fala em “morrer antes de morrer”. Em sua nostalgia de bem-aventurança (Divã Ocidental-Oriental), Goethe traduz de forma magnífica esse processo: “Morre e devém” (Stirbe und werde!). É nesta passagem pelo “puro nada”, onde muita gente se morre e muita gente se nasce, que se dá a afirmação do eu verdadeiro, que “se mostra inicialmente em sua ausência de eu como tal, livre de forma na informidade radical, intangível, inexprimível”. Daí o círculo vazio. Esse aspecto corresponde, no âmbito do zen budismo, à pratica do zazen, que nada pensa, nada vê, nada faz, “fundido na profundidade sem fundo do silêncio”.

A ilustração seguinte, que representa a nona estação, sinaliza a presença de uma árvore que floresce junto ao rio. É uma imagem singela, bem típica da tradição japonesa. No poema que acompanha a ilustração se diz: “Imenso, flui o rio, como flui. Rubra floresce a flor, assim como floresce”. Trata-se do processo de “ressurreição” do eu, que rompe a dicotomia entre sujeito e objeto, da subjetividade elemental que procede da morte do ego. Floresce o si mesmo, em sua não “eudade”, junto com as flores e flui também como o rio. Como indica Ueda, “trata-se da ressurreição a partir do nada, da mudança radical da absoluta negação para o grande ´sim`. Sim, é isso! Visto que na oitava estação, a cisão sujeito-objeto, em todas as suas formas, fora deixada para trás no nada, antes da cisão, assim, na ressurreição a partir do nada, uma árvore em florescência à beira do rio não é outra coisa senão o si-mesmo”. É nesse espaço que jorra, com vigor, a fonte da “vida pura sem porquê”.

Há na tradição budista mahayana uma íntima conexão entre vacuidade, não ego e compaixão. É significativo perceber que o amor não discriminante pertence ao âmbito do não ego. O amor autêntico e compassivo é fruto de um processo de despojamento e kênose, desdobrando-se do esvaziar-se de si mesmo. Na última ilustração, que simboliza a décima estação, visualizamos o encontro entre um ancião e um jovem. Um encontro que se dá no mundo. O ancião está totalmente “desprovido”, de peito descoberto e com os pés nus, animado por um largo sorriso. Na rica dinâmica de um eu e tu realiza-se o processo do verdadeiro si-mesmo, ressuscitado do nada. O diálogo parte aqui de um profundo silêncio, quebrado apenas pela reverência do inclinar-se mutuamente. Esse inclinar-se é algo mais profundo que uma mera cortesia. Trata-se da “inserção na insondabilidade do entre”, onde não existe mais nem eu nem tu. Firma-se, assim, a matriz de um modo novo de ser no mundo, um “modo de ser sereno”. Na tradição cristã, mestre Eckhart captou isso de forma muito rica, com o exemplo de Marta e Maria. Marta simboliza o retorno à vida real, num modo de ser sereno, em que o fundo da alma vem exercitado ao extremo. O seu operar no tempo é pontuado pela presença do infinito. Ao “irromper ascendente ao nada da Deidade” corresponde o “retorno descendente ao mundo real”. Assim também na tradição zen. A passagem pelo nada não se conclui no nada, mas repercute no mundo real, e com intensidade singular. Quando se levanta do “infinito aberto” do zazen, retorna-se outro à existência no mundo. Mas o mundo em que se dá a inserção é agora pontuado por um outro olhar e um outro modo de ser. Está impregnado de um infinito que abraça e transcende o mundo, animando a dinâmica da compaixão.

Na tradição cristã, Thomas Merton percebeu a riqueza e o valor de todo esse processo vivido em profundidade pelos grandes mestres zen. Sinaliza em seu Diário da Ásia que encontrou entre eles grandes “especialistas em meditação e contemplação”. Reconheceu também que a dinâmica de abertura às tradições espirituais do hinduísmo e do budismo possibilita, na verdade, uma “oportunidade maravilhosa para aprender mais sobre as potencialidades das nossas próprias tradições porque eles penetraram, do ponto de vista natural, muito mais profundamente nisso do que nós”.

Publicado na amai-vos, em 13/10/2011:

http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia_list.asp?cod_canal=66

(Para visualizar o comentário de Ueda sobre as dez ilustrações do boi e seu pastor:

http://www.asia.it/adon.pl?act=doc&sid=63&doc=310)

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