segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Espiritualidade e interreligiosidade

Espiritualidade e Interreligiosidade

Faustino Teixeira

PPCIR/UFJF

Introdução

A pluralidade religiosa é um dos traços mais característicos do século XXI. Não há como desconsiderar ou relativizar o traço da diversidade religiosa no tempo atual. Trata-se de um fenômeno irreversível, que tende a sublinhar a presença diversificada do outro como provocação permanente para a construção da identidade. O grande desafio está em compreender essa pluralidade religiosa não como um dado conjuntural passageiro ou fruto de cegueira problemática dos seres humanos, mas como um mistério transbordante, um dom que corresponde a um misterioso desígnio de Deus para a humanidade. A espiritualidade é um dos caminhos frutuosos para a percepção do valor da diversidade. Ela possibilita a afirmação da humildade, da abertura desarmada para o outro e igualmente uma consciência viva da vulnerabilidade dos caminhos que levam a Deus no tempo. Talvez seja um dos campos mais propícios para a percepção do valor da interreligiosidade, da dinâmica de dom que envolve a relação e a comunhão entre as diversas religiões, preservando os traços essenciais que as distinguem.

1. A irrevogabilidade do pluralismo religioso

Um olhar atento ao cenário religioso mundial desarma radicalmente aqueles autores que defendem a irreversibilidade da dinâmica secularizadora. O que se verifica por todo canto é a pujante presença do fenômeno religioso em suas malhas diversificadas. Como indicou Peter Berger, em artigo sobre a dessecularização do mundo, “não há nenhuma razão para pensar que o mundo do século XXI será menos religioso que o mundo atual”[1]. Na ressurgente dinâmica religiosa atual, firmam-se dois fenômenos extraordinários: o impressionante crescimento do islã e a efervescência pentecostal. Com respeito ao islã, há que assinalar que em âmbito mundial ele ultrapassou o catolicismo em número de adeptos, com cerca de um bilhão e trezentos e vinte e dois milhões de participantes. Em termos de porcentagem, alcançam a cifra de 19,2% da população mundial, enquanto os católicos estacionam na marca de 17,4% (um bilhão e cento e trinta e um milhões de fiéis). Firma-se assim o islã como a denominação religiosa mais numerosa da Terra, embora menor que a soma alcançada pela cifra das denominações cristãs, com cerca de dois bilhões de adeptos. O maior número de muçulmanos concentra-se no subcontinente indiano, envolvendo aproximadamente 400 milhões de fiéis, sendo a Indonésia o país com maior população muçulmana. Mas essa tradição religiosa firma-se igualmente nos espaços americanos e europeus, com forte registro nos Estados Unidos (5 milhões), França (5 milhões) e Alemanha (3 milhões). Vale também registrar a presença de comunidades muçulmanas na América do Sul, sobretudo no Brasil (1 milhão) e Argentina (750.000).

A explosão pentecostal traduz outra vertente importante da retomada religiosa no tempo atual. No início do século XX era um movimento incipiente, mas agora firma-se como um fenômeno de expressão mundial. O pentecostalismo apresenta-se nesse início de milênio como o segundo bloco cristão mais numeroso, envolvendo cerca de 26,2% dos fiéis, só superado pelos católicos, que ultrapassam os 52%. Constituem o grupo mais numeroso na África, superando os índices do catolicismo. Sua presença é viva nos Estados Unidos e na América Latina, onde ocupam o segundo lugar dos batizados. Marca também presença no Extremo Oriente[2].

O crescimento e afirmação do islamismo e do pentecostalismo são exemplos da nova presença do religioso no tempo atual, que envolve igualmente uma série de outras vertentes e irradiações de um fenômeno marcado por grande complexidade. A verdade é que o mundo vem pontuado pela presença crescente e “perturbadora” de outros que não se enquadram num campo de homogeneidade. E eles estão cada vez mais próximos, em nossas vizinhanças. Como mostrou Clifford Geertz, as distinções religiosas vão se tornando mais visíveis e imediatas, num mundo de fronteiras fluidas[3]. E isso pode favorecer uma dupla possibilidade: um novo entendimento interreligioso ou o incremento da suspeita e o acirramento identitário. Wilfred Cantwel Smith já previa na década de 1960 a afirmação dessa pluralidade:

Doravante a vida religiosa da humanidade, se é que ela de algum modo há de ser vivida, o será em um contexto de pluralismo religioso (...). Isso é verdadeiro para todos nós; não apenas para a ´humanidade`em geral, abstrata, mas para você e eu como pessoas, indivíduos. As pessoas de outras crenças religiosas não são mais periféricas ou distantes, fúteis curiosidades de histórias de viajantes. Quanto mais despertos estamos e quanto mais envolvidos com a vida, mais descobrimos que eles são nossos próximos, nossos colegas, nossos concorrentes, nossos companheiros. Confucionistas e hindus, budistas e muçulmanos estão conosco não só nas Nações Unidas, mas descendo a rua. Cada vez mais, não só o destino de nossa civilização é influenciado por suas ações; mas temos com eles também a intimidade de tomar um cafezinho juntos[4].

Os teólogos cristãos vêm sendo desafiados a reconhecer o valor intrínseco das outras tradições religiosas, a honrar a alteridade na sua singularidade específica, a destacar os distintos caminhos religiosos como “vias misteriosas de salvação”, operadas e sustentadas pela Presença de um Mistério sempre maior. Buscam superar com instrumentos aperfeiçoados a perspectiva limitada que não consegue reconhecer no outro senão sua potencialidade de abertura positiva para aquilo que ignoram. Trata-se de um caminho novo e desafiante: o reconhecimento do pluralismo de princípio. Como mostra Roger Haight, “o reconhecimento da influência salvífica universal de Deus transforma o pluralismo religioso em uma situação positiva, na qual se pode aprender mais acerca da realidade última e da existência humana do que o que se acha disponível em uma única tradição”[5]. O toque dessa abertura ao outro faculta ainda a possibilidade de, mediante o diálogo profundo, reconhecer e explicitar de forma ainda mais viva virtualidades escondidas do mistério que a todos preside.

2. Espiritualidade e abertura interreligiosa

Há que distinguir, inicialmente, mística e espiritualidade, com base nas reflexões de Raimon Panikkar. A mística diz respeito à “experiência integral da realidade”. Não se refere a algo distante ou inalcançável, nem a algo indiferente ao sofrimento humano. Está sempre referendada à globalidade da condição humana. Ela envolve um “desaforado amor pelo todo”, e provoca em quem a experiencia uma profunda vontade de adentrar-se no real, em sua densa espessura. Trata-se da “experiência da vida”, da realidade, aqui entendida como o símbolo último do Todo. A espiritualidade, por sua vez, refere-se ao caminho traçado para se alcançar tal experiência. E os caminhos são diversificados[6].

A espiritualidade, entendida como caminho para a experiência do real, distingue-se da religião. Como bem mostrou Dalai Lama, a espiritualidade está relacionada às “qualidades do espírito humano”, dentre as quais o amor, a compaixão, a hospitalidade, a cortesia e a paciência. Ele assinala que não existe “nenhuma razão pela qual um indivíduo não possa desenvolvê-las, até mesmo em alto grau, sem recorrer a qualquer sistema religioso ou metafísico”[7]. A espiritualidade envolve qualidades humanas fundamentais que acionadas provocam profundas mudanças no mundo interior e se irradiam para a história. Entendida em seu sentido profundo, a espiritualidade não se reduz ao âmbito da intimidade, mas suscita a abertura ao mundo, aos outros, ao real. É uma convocação à experiência da “imanensidade”, do envolvimento no todo que traduz o “habitar o universo”[8].

Quando vivida intensamente, a espiritualidade convoca necessariamente à abertura interreligiosa, e por uma razão simples. Quando se penetra de forma desarmada e humilde no mundo interior, com a disponibilidade de atenção aos pequenos sinais do Mistério, a música da alteridade faz sentir sua presença. Essa rica metáfora da profundidade, e de sua conexão dialogal, foi captada de forma exemplar por Paul Tillich:

Na profundidade de toda religião viva há um ponto onde a religião como tal perde sua importância e o horizonte para o qual ela se dirige provoca a quebra de sua particularidade, elevando-a a uma liberdade espiritual que possibilita um novo olhar sobre a presença do divino em todas as expressões do sentido último da vida humana[9].

É sugestiva essa reflexão de Tillich e a pista que a acompanha. De fato, na medida em que se aprofunda na própria experiência religiosa, toca-se um “ponto virginal” que escapa às determinações dos vínculos ou “nós” específicos que acompanham o engajamento religioso. Com a progressão do aprofundamento cresce a liberdade espiritual e a capacidade de ver o Mistério que brilha em toda parte. O sujeito que faz uma tal experiência reconhece que aquilo que vivencia não pode mais limitar-se ao estreito campo de sua domiciliação religiosa. Isso não significa uma ruptura com os vínculos até então estabelecidos, mas a instauração de um novo modo de exercício identitário, pontuado agora pela abertura e aprendizado interreligiosos.

A mesma metáfora da profundidade vem utilizada por Paul Ricoeur para abordar a questão da abertura interreligiosa. Também para ele, a profundidade revela facetas inusitadas da verdade e convoca ao diálogo com o outro:

É ato fundamental de esperança crer que, se me aprofundo no mais íntimo de minha convicção tenho chances de encurtar a distância com o outro crente de outra religião, se este empreende o mesmo movimento de aprofundamento. Proponho a seguinte imagem da esfera: na superfície, as distâncias são imensas, mas à medida que a gente se dirige para um centro, cuja posse e domínio ninguém tem, a gente se aproxima. É a redução da distância pela profundidade e não pela fuga para frente na superfície das coisas[10].

Segundo Ricoeur, é no âmbito da profundidade que se é capaz de perceber a riqueza do pluralismo. É também ali que se abre para as religiões a possibilidade de se compreenderem como comunidades de escuta e de interpretação, na medida em que tomam consciência de sua limitação e vulnerabilidade, e se vêem provocadas ao desafio de abertura a um horizonte que é ilimitado. E Ricoeur complementa, com base na sua convicção cristã: “É muito difícil, e entretanto, necessário ter como absoluto o caminho de Cristo e, ao mesmo tempo, pôr de parte esse pano de fundo no qual não penetro e o qual não atinjo a não ser pelo diálogo com as outras religiões”[11].

Na tradição mística islâmica (sufismo) esse traço de abertura interreligiosa é uma constante. Um de seus grandes expoentes, Ibn´Arabî de Murcia (1165-1240), foi dos mais decisivos defensores do pluralismo religioso. Num de seus clássicos trabalhos, lança uma forte advertência aos crentes:

Cuide-se de não te ligar a um credo particular rejeitando todo o resto, pois perderás um bem imenso; além do mais, perderás a ciência da Verdade tal como é. Que tua alma seja a substância das formas de todas as crenças, pois Allah, o Altíssimo, é muito vasto e imenso para ser confinado num determinado credo, em exclusão dos outros. E Ele diz com efeito: Para onde quer que vos volteis, lá está a Face de Allah (...)[12].

Os buscadores verdadeiros são, segundo Ibn`Arabî, aqueles que ampliam suas crenças, que se deixam provocar pelas irradiações novidadeiras do Mistério que brilha na experiência do outro, favorecendo assim uma maior participação na visão do Real.

A espiritualidade é uma matriz essencial de inspiração do novo, de acolhida do diferente e de despojada abertura ao outro. É também fonte de uma paz que brota de dentro e irradia com vigor na história. Trata-se da

fonte secreta que alimenta a paz cotidiana em todas as suas formas. Ela irrompe de dentro, irradia em todas as direções, qualifica as relações e toca o coração íntimo das pessoas de boa-vontade. Essa paz é feita de reverência, de respeito, de tolerância, de compreensão benevolente das limitações dos outros e da acolhida do Mistério do mundo. Ela alimenta o amor, o cuidado, a vontade de acolher e de ser acolhido, de compreender e de ser compreendido, de perdoar e de ser perdoado[13].

3. O coração e a acolhida da diversidade

Só é capaz de uma autêntica abertura interreligiosa aquele que tem um coração receptivo para hospedar uma diversidade de formas e atributos. Não há como acessar os segredos divinos e sua dinâmica de manifestação no tempo senão mediante a purificação do coração[14]. No evangelho de Mateus se diz, acertadamente, que os puros de coração verão a Deus (Mt 5,8). Quando se vive a pureza de coração, animada pelo ritmo do despojamento e da disponibilização, desperta-se para os sinais vivos de Deus que se manifestam por toda parte. Em clássico poema, Ibn´Arabî assinala:

Meu coração está aberto a todas as formas:

É uma pastagem para as gazelas,

E um claustro para os monges cristãos,

Um templo para os ídolos,

A Caaba do peregrino,

As tábuas da Torá,

E o livro do Corão.

Professo a religião do Amor,

Em qualquer direção que avancem Seus camelos;

A religião do Amor

Será minha religião e minha fé[15]

Seguindo as pistas abertas pela tradição mística sufi, o coração (qalb) é o órgão por excelência da percepção mística. Trata-se de um órgão sutil de captação dos Mistérios, que traduz os decisivos “impactos dos acontecimentos espirituais”. É sobretudo o “lugar do segredo divino”, o “receptáculo cristalino e proteico capaz de refletir todas as epifanias ou atributos de Deus”[16]. O termo coração em árabe, qalb, deriva de uma raiz trilítera (q-l-b), que envolve o significado de receptáculo, mas indica igualmente a idéia de movimento, oscilação, flutuação, inversão, mudança permanente. É, portanto, um órgão dinâmico, em permanente estado de transformação para captar as epifanias divinas.

As teofanias divinas sucedem-se e modificam-se constantemente. A cada segundo o coração capta imagens diversificadas da presença do Mistério sempre maior. E em sua plasticidade é capaz de acolher com generosidade esse dom da diversidade. São manifestações que expressam aspectos diferenciados do Segredo divino. Não há, porem, como conter e exprimir essa Verdade em sua totalidde. Daí a necessidade permanente de manter aberta a porta da percepção. Não há porque fixar-se exclusivamente numa única tradiçao religiosa, excluindo a possibilidade do enriquecimento advindo da relação e do diálogo com o diferente. Como assinala com acerto Teilhard de Chardin, o Meio Divino é um “centro móvel” que escapa permanentemente às tentativas de apropriação. Trata-se da

eterna descoberta e o eterno crescimento. Quanto mais cremos compreendê-lo, mais Ele se revela outro. Quanto mais pensamos possuí-lo, mais Ele se recua, atraindo-nos para as profundezas de si mesmo. Quanto mais nos aproximamos dele, por meio de todos os esforços da natureza e da graça, mais Ele aumenta, em um mesmo movimento, sua atração sobre nossas potências e sobre a receptividade dessas potências a este encanto divino[17].

4. O cristianismo e a convocação à abertura

Quando se vive em profundidade a perspectiva cristã, a abertura dialogal vem naturalmente. Não há contradição alguma entre a domiciliação cristã e a abertura aos outros. Na verdade, a dinâmica da alteridade está no coração do cristianismo. Como sublinhou Edward Schillebeekx no terceiro livro de sua trilogia cristológica, “a aceitação da diversidade das religiões está implicada na essência do cristianismo”[18]. O Deus de Jesus constitui um “símbolo de abertura” permanente, é um Deus que acolhe o sussurro do plural e integra as diferenças. O Deus que Jesus apresenta em seu ministério é uma Presença dotada de amizade e misericórdia, que se preocupa profundamente com o destino humano e com toda a criação. É um Deus de amor incondicional e ilimitado, marcado por total abertura.

A experiência e prática de Jesus revelam igualmente alguém que acolhe com carinho os que estão excluídos do circuito da fé reconhecida. Enquanto galileu, conviveu com um povo aberto e dialogal. Foram anos de convivência com pessoas de outras raças, culturas e religiões. Tudo isso ajudou para a afirmação de uma sensibilidade dialogal[19]. Não rejeita os pagãos, mas com eles estabele diálogo (Mc 7,24-29; Jo 4,7-42); reconhece o valor e a dimensão da fé de pessoas que não eram judias, e com elas se enriquece (Mt, 8,10 e 15,28); sinaliza como exemplo de conduta, a prática solidária do samaritano com o ferido no caminho (Lc 10,29-37) e não rechaça o exorcista desconhecido, que não atua em seu nome (Mc 9,38-40). Os critérios que regem sua acolhida relacionam-se com a força da fé e a dinâmica do amor. O que vale para Jesus é o alcance soteriológico do amor: é ele que decide, em última instância, o sinal da acolhida do Deus misericordioso (Mt 25,31-46).

O seguimento de Jesus Cristo envolve, portanto, uma mesma disposição de abertura ao outro. A habilidade ao diálogo, como sustenta Paul Knitter, “é uma parte essencial do que significa ´ser fiel`a Cristo”[20]. Não se relativiza em momento algum a riqueza da confissão existencial da experiência cristã do que Deus fez em Jesus Cristo. Essa convicção cristã permanece garantida, mas ela não enfraquece o reconhecimento do Deus verdadeiro que atua nas outras religiões, e que convoca a um diálogo sincero e autêntico. O cristianismo e as outras religiões participam de uma mesma sinfonia interreligiosa, cujo arranjo final está sempre adiado para um horizonte que não se tem acesso. O tempo atual é pontuado pela “maturação multiforme” de experiências que são diversificadas. As religiões são compreendidas como fragmentos potenciais de um todo inacabado. E a

palavra de Jesus convida cada fragmento a não ultrapassar suas fronteiras para incluir nele próprio a exterioridade; ela sugere não sufocar as questões que alertam cada fragmento quanto à tentação de apresentar-se, publicamente, como o todo da relação com a transcendência. O elo dos fragmentos com o conjunto permanece indizível no tempo intermediário porque a totalidade é inimaginável. A palavra de Jesus salvaguarda as fronteiras exprimindo seu caráter provisório[21].

O reconhecimento da singularidade do cristianismo não pode ocorrer apagando ou desconhecendo a extrardinária diversidade das tradições religiosas. É no diálogo efetivo que se dá encaminhamento a uma sinfonia de vozes plurais que facultam a profunda revelação do Mistério sempre maior.

A missão cristã não perde sua razão de ser nessa nova perspectiva, mas vem ressignificada. O cristianismo deixa de ser entendido como um “imperativo categórico” para todos, sendo agora descortinado como um dom de uma singularidade. De fato, a missão evangelizadora é essencialmente uma “missão de amor”. Encontra sua razão de ser e sua raiz na experiência do Deus de amor (1 Jo 4,8.16), que é uma experiência de “amor fontal”. No encontro com Jesus, os cristãos vivem a radicalidade de uma dinâmica de amor, bem como um exemplo de vida descentrada e dedicada ao serviço: alguém que proclamou o projeto de Deus muito mais com atos e o diálogo do que com palavras. Como tão bem mostrou José Antonio Pagola, Jesus é alguém que contagia saúde e alegria, que abre as portas para a percepção de um Deus que é “amigo da vida”, um Deus de compaixão e sempre misericordioso. Para ele, o decisivo foi sempre o amor, que é a expressão mais adequada para sinalizar a chegada do reino de Deus. É a partir desse “centro do mistério do amor” que nasce a decisão e o desafio do impulso missionário[22]. Em sua raiz encontra-se a experiência de uma amor profundo por Jesus Cristo, que se traduz pelo desejo de compartilhá-lo com os outros. Antes de ser o resultado de um mandato, a missão evangelizadora é expressão de um mistério do amor que transformou o sujeito[23].

Conclusão

Nada mais desafiante no tempo atual do que a abertura ao outro, respeitando sua dignidade essencial e deixando-se enriquecer pelo Mistério que o circunda. É levando a sério o outro, na sua intransponível alteridade, que se firma para os cristãos uma melhor inteligência de sua identidade. Como mostrou Claude Geffré, a singularidade cristã vem hoje definida em termos de “relação a uma alteridade”. E é “em virtude mesmo de nossa identidade cristã, que somos convidados a reconhecer o outro, o estrangeiro, na sua diferença e no limite que ele nos impõe”[24]. A identidade cristã não vem mais definida em termos de perfeição adquirida, mas enquanto processo em transformação, sempre habitada pelo desafio do outro. Essa sensibilidade dialogal vem reforçada e ampliada pela tônica da espiritualidade. Trata-se do fermento essencial para a ampliação do olhar. Na visão lúcida de Panikkar, há uma indispensável dimensão experiencial e mística na base da abertura interreligiosa. E argumenta:

Sem uma certa experiência que transcende o reino mental, sem um certo elemento místico na própria vida, não se pode esperar superar o particularismo da própria religiosidade, nem mesmo ampliá-la ou aprofundá-la, ao ser defrontado com uma experiência humana diferente[25].

Todas as religiões, incluindo o cristianismo, são fragmentos que expressam no tempo os sinais de uma “Presença Espiritual” que em si é isenta de ambiguidades. Há que ter viva essa consciência para evitar as tentações absolutizadoras. Não há como julgar as distintas expressões religiosas, como verdadeiras ou ilusórias, a não ser partindo do fundo mesmo do Mistério, que é impenetrável. O que se almeja no horizonte é uma comunhão que saiba preservar as diferenças, mas o caminho está em aberto, pontuado pelo “tempo da paciência de Deus”, e “ninguém pode obrigar Deus a agir mais depressa do que ele decidiu fazer”[26].

(Publicado na revista Convergência (Revista da Conferência dos Religiosos do Brasil), v. 46, n. 443, julho/agosto de 2011, pp. 373-384)



[1] Peter BERGER. La désécularisation du monde: un point de vue global. In. Peter BERGER (Ed.). Le réenchantement du monde. Paris: Bayard, 2001, p. 28.

[2] José Oscar BEOZZO. Grandes questões da caminhada do cristianismo na América Latina e no Caribe. In: Wagner Lopes SANCHES (Org.). Cristianismo na América Latina e no Caribe. São Paulo: Paulinas, 2003, pp. 49-50; Peter BERGER. La désécularisation du monde: un point de vue global. In. Peter BERGER (Ed.). Le réenchantement du monde, p. 23.

[3] Clifford GEERTZ. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 158.

[4] Wilfred Cantwel SMITH. The faith of other men. New York: Harper & Row, 1962, p. 11 (Apud Paul J. Knitter. Introdução às teologias das religiões. São Paulo: Paulinas, 2008, pp. 21-22).

[5] Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 485.

[6] Raimon PANIKKAR. Vita e parola. La mia opera. Milano: Jaca Book, 2010, p. 21; Id. L´esperienza della vita. La mistica. Milano: Jaca Book, 2005, pp. 57-66; Id. Mistica pienezza di vita. Mistica e spiritualità (Tomo 1). Milano: Jaca Book, 2008.

[7] DALAI LAMA. Uma ética para o novo milênio. Rio de Janeiro: Sextante, 2000, p. 33.

[8] André COMTE-SPONVILLE. O espírito do ateísmo. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 127ss.

[9] Paul TILLICH. Le christianisme et les religions. Paris: Aubier, 1968, p. 173.

[10] Paul RICOEUR. La pensée protestante aujourd´hui. Réforme, n. 2609, 1995, p. 8. Em outro artigo assinalava: “É aprofundando meus próprio compromisso que posso encontrar aquele que, partindo de outro ponto perspectivo, realiza um movimento análogo”: Id. Em torno ao político. Leituras 1. São Paulo: Loyola, 1995, p. 188.

[11] Paul RICOEUR. La pensée protestante aujourd´hui, p. 8.

[12] IBN´ARABÎ. Le livre des chatons des sagesses. Tome Premier. Beyrouth: Al-Bouraq, 1997, p. 278.

[13] Leonardo BOFF. A espiritualidade na construção da paz. In:

http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2010/06/07/a-espiritualidade-na-construcao-da-paz-296837.asp (acesso em 14/12/2010)

[14] Carlos Frederico B. De SOUZA. A mística do coração. A senda cordial de Ibn´Arabî e João da Cruz. São Paulo: Paulinas, 2010, p. 244.

[15] IBN´ARABÎ. L´interprete delle passioni. Milano: Urra, 2008, p. 51 (XI,13-15).

[16] Louis MASSIGNON. Écrits mémorables II. Paris: Robert Lafont, 2009, pp. 309-310; AL-NÛRÎ DE BAGDAD. Moradas de los corazones. Madrid: Trotta, 1999, p. 36 (Estudio Introductorio de Luce López-Baralt).

[17] Teilhard de CHARDIN. O meio divino. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 115.

[18] Edward SCHILLEBEECKX. História humana revelação de Deus. São Paulo: Paulus, 1994, p. 213.

[19] Carlos MESTERS. Jesus, o Filho do Homem e o diálogo ecumênico e interreligioso. Tempo Brasileiro, 2010 (no prelo).

[20] Paul F. KNITTER. Jesus e os outros nomes. São Bernardo do Campo: Nhanduti, 2010, p. 109. Ver também: Wesley ARIARAJAH. La Bíblia y las gentes de otras religiones. Santander: Sal Terrae, 1998.

[21] Christian DUQUOC. O único Cristo. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 163.

[22] José Antonio PAGOLA. Jesus aproximação histórica. Petrópolis: Vozes, 2010. Para uma resenha do livro cf. Faustino TEIXEIRA. Jesus, aproximação histórica. REB, v. 70, n. 280, outubro 2010, pp. 974-978.

[23] PONTIFÍCIO Conselho para o Diálogo Interreligioso. Diálogo e anúncio. Petrópolis: Vozes, 1991, n. 83.

[24] Claude GEFFRÉ. De babel à pentecôte. Paris: Cerf, 2006, p. 123 (ver também p. 122)

[25] Raimon PANIKKAR. La nuova innocenza 3. Sotto il Monte: Servitium, 1996, p. 156.

[26] SECRETARIADO para os Não-Cristãos. A igreja e as outras religiões. São Paulo: Paulinas, 2001, n. 44 (Documento Diálogo e Missão).

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