Felix Pastor, orientador e amigo (1933-2011)
Faustino Teixeira
Nós, teólogos brasileiros, perdemos no dia 11 de julho um grande mestre e amigo. Deixou-nos o padre Felix Pastor, que tinha recém chegado de Roma para a sua temporada no Rio de Janeiro, onde também lecionava. Não há como lembrar de sua presença senão com alegria e saudade e hoje, em especial, muita saudade. Foram inúmeros teólogos brasileiros e latino-americanos que passamos por sua competente e atenta orientação. Impressionante a sua capacidade de doação e a argúcia de seu método. Foi alguém que abriu as portas da Pontifícia Universidade Gregoriana para muitos dos teólogos pesquisadores que se encontram hoje atuando em Universidades e Institutos Teológicos no Brasil e tantas outras localidades. Como bem acentuou o cardeal Aloísio Lorscheider, no prefácio de obra em sua homenagem, Pastor “é um benemérito da Igreja universal e, de modo especial, da Igreja que está no Brasil. A Igreja do Brasil deve muito a este sacerdote zeloso e dedicado. Várias gerações passaram por suas mãos” (O mistério e a história. São Paulo: Loyola, 2003). Tive em particular essa alegria de poder conviver de perto com esse grande mestre. Um contato que começou quando era estudante do mestrado em teologia na PUC-RJ, numa época de grande florescimento da teologia, marcada pela presença de muitos jovens estudantes leigos. Tinha nascido no período a idéia de trazer Felix Pastor para ajudar no ensino e na orientação dos estudantes de teologia. Sua vinda foi celebrada por todos, e assim nasceu uma parceria maravilhosa. A cada ano, Pastor dedicava um semestre ao ensino na Gregoriana e o outro na PUC-RJ. Essa presença no Brasil foi geradora de muitas vocações teológicas. Muitos de nós, seus alunos na PUC, fomos recebidos por ele com afeto e alegria na Gregoriana, para os estudos doutorais. E isso também foi favorecido pela grande sensibilidade de Pastor aos temas candentes da teologia latino-americana, como a teologia da libertação, as comunidades eclesiais de base e as pastorais sociais. Estávamos diante de um teólogo apaixonado pelo tema do Reino e da História. Num de seus livros, dedicados a esta questão, dizia com segurança: “Descobrindo a unidade teológica da história dos homens, criados a participar da salvação escatológica, a Teologia da Libertação descobre a unidade profunda do temporal e do espiritual, do escatológico e do histórico, do individual e do comunitário, do religioso e do político”. A teologia para ele estava diante de uma tarefa nova e fundamental: armar sua tenda na história dos humanos, sem perder jamais, a sedução do Mistério. A salvação deixa de ser uma questão extra-terrena e passa a ocupar o cenário das lutas do dia-a-dia: “A salvação cristã inclui a realidade do homem novo e da nova terra, em que habita a justiça. Postular a sua realização e lutar pelo seu advento não é uma usurpação prometeica, mas uma exigência da ética cristã”. Esse foi o aprendizado que dele recebemos, e que foi decisivo para as nossas trajetórias.
Pastor foi também um grande teólogo, possuidor de invejável cultura teológica, mas que não ficava restrita a esse campo do saber. Impressionava sua abertura ao universo da literatura, do cinema e da arte em geral. Sua paixão teológica voltava-se, de modo particular, para dois grandes clássicos da teologia: Agostinho e Paul Tillich. A eles dedicou inúmeros cursos, conferências e muitos artigos, publicados em periódicos reconhecidos internacionalmente. Admirava igualmente Karl Rahner, e com grande maestria nos ajudava a desvendar as difíceis e sedutoras entranhas desse grande teólogo alemão. Não me esqueço de suas brilhantes e instigantes intervenções no seminário em torno do Curso fundamental da fé, de Karl Rahner, dado na Gregoriana. Foram aulas que abriram horizontes inesperados para reflexões futuras.
Nascido na Galícia, em 25 de fevereiro de 1933, entrou para a Companhia de Jesus em novembro de 1950. Os estudos de filosofia foram realizados na Universidade de Comillas, a partir de 1954, depois de formação em Letras Clássicas, Humanidades e Retórica no Colégio de Salamanca. Veio em seguida, em 1957, a destinação missionária para o Brasil, instalando-se na Província Jesuítica Goiano-Mineira, na época do padre João Bosco Penido Burnier. No noviciado de Itaici, em São Paulo, aperfeiçoou seus estudos de língua portuguesa, sendo em seguida encaminhado ao magistério no Colégio Loyola de Belo Horizonte. Os estudos de teologia iniciaram-se em 1960, no Colégio Máximo Cristo Rei, em São Leopoldo (RS), tendo prosseguimento na Alemanha, na Faculdade de Teologia da Hochschule Sankt-Georgen (Frankfurt/Main), onde concluiu seu bacharelado, em 1962. Sua ordenação presbiteral aconteceu em 27 de agosto de 1963, na catedral de Frankfurt. Motivado pelo então provincial, Marcelo de Azevedo, foi cursar o doutorado em teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma), na época do evento conciliar. A conclusão do doutorado ocorreu em junho de 1967, com tese orientada por Donatien Mollat (SJ), versando sobre tema eclesiológico em E. Schweizer. Sua tese foi publicada em 1968 na prestigiosa coleção Analecta Gregoriana (vol. 168 – La eclesiología Juanea según E.Schweizer). A partir de outubro de 1967 ficou responsável pela direção espiritual do Colégio Pio Brasileiro, em Roma. E também a partir desse ano iniciou suas atividades acadêmicas na Gregoriana.
Dentre suas inúmeras publicações, destacam-se os livros: Existência e Evangelho (1973), O reino e a história (1982), Semântica do Mistério (1982) e a Lógica do inefável (1986 e 1989). No campo do ensino, dedicou-se em particular aos temas relacionados à Eclesiologia, ao Tratado de Deus e outras questões teológicas e ecumênicas. Merece destaque sua atenção à problemática teológica latino-americana, como bem destacado por Maria Clara L. Bingemer e Paulo Fernando Carneiro de Andrade: “Sua ligação com a América Latina e com a teologia produzida deste lado do mundo, juntamente com sua sensibilidade social e seu profundo sentido de justiça, fizeram igualmente do Pe. Pastor um exímio especialista e agudo crítico da teologia latino-americana, tendo ministrado cursos, publicado vários trabalhos e orientado diversas teses sobre o tema da relação entre Teologia e Práxis, e sobre as tendências mais atuais da teologia do continente”. Pude também encontrar nele um importante apoio em momento delicado de meu retorno ao Brasil, quando titubeava o processo de autorização canônica para o meu retorno à PUC-RJ. Ele veio prontamente em minha defesa, junto com Juan Alfaro, desanuviando os sombrios horizontes. Essa é uma marca importante na personalidade de Felix Pastor: o profundo respeito pela reflexão de seus orientandos. Mesmo que não partilhasse inteiramente das posições teológicas de seus alunos, incentivava a reflexão mantendo sempre acesa a imprescindível chama do direito à liberdade de expressão. É um dos exemplos mais bonitos que pude verificar nessa trajetória de caminhada comum e que busco manter vivo na experiência com meus alunos.
O toque decisivo de sua atuação estava no dom da orientação acadêmica. É difícil encontrar um orientador com tamanha capacidade de desbravar caminhos e horizontes. As dificuldades trazidas por seus orientandos ganhavam com ele sempre uma solução precisa. Os alunos entravam em seu gabinete preocupados com o destino de seu trabalho e saíam sorridentes com as soluções encaminhadas. Era sobretudo um grande pedagogo, com impressionante experiência nesse campo de apoio, presença e orientação dos alunos. E essa prática vinha amparada por muitos anos de experiência com a análise psicanalítica. Seus cursos de metodologia ficam guardados na memória. Trouxe essa experiência em aulas memoráveis, sobretudo na PUC-RJ, mas também em outros centros de estudo como a Faculdades dos Jesuítas (FAJE) e a Universidade Federal de Juiz de Fora, onde também esteve presente algumas vezes para falar de sua experiência de orientação acadêmica.
É difícil precisar o número exato de seus orientandos no mestrado e no doutorado. Foram, certamente, mais de 350 estudantes que passaram por essa rica experiência. No âmbito do doutorado, foram mais de 90 teses por ele orientadas, das quais cerca de 55 de alunos brasileiros. Entre alguns dos doutores que passaram por sua orientação: Álvaro Barreiro e Alfonso Garcia Rúbio (1972-1973), Mário de França Miranda (1973-1974), Carlos Palacio (1975-1976), Juan A.R. de Gopegui (1976-1977), Ênio José da Costa Brito (1978-1979), Valdeli Carvalho da Costa (1980-1981), Faustino Teixeira e Antônio Jose de Almeida (1985-1986), Alexander Otten e Vitor G. Feller (1986-1987), Elias Leone, Maria Clara L. Bingemer e Paulo Fernando Carneiro de Andrade (1988-1989), Afonso Murad (1991-1992), Paulo Sérgio Lopes Gonçalves (1996-1997), Laudelino José Neto (1997-1998), Antônio Reges Brasil (2000-2001), Marcial Maçaneiro e Paulo César Barros (2000-2001) e muitos outros.
O bonito é perceber que ele deixou entre nós um exemplo vivo de paixão e testemunho, de maravilhosa abertura ao Mistério sempre maior. Dele guardamos o carinho e o largo sorriso, de um orientador, mas sobretudo um amigo sempre presente. Eu estava particularmente feliz ao poder reencontrar-me com ele num simpósio internacional de teologia, previsto para acontecer em setembro de 2011 na PUC-RJ. Não contava os dias para esse encontro. Infelizmente, esse diálogo ficou adiado para mais adiante. Fico com a bela imagem de sua presença amiga, regada pela alegria de encontros maravilhosos, tanto no Brasil como na Itália. Seguindo uma pista de Walter Rauschenbusch, Pastor deixa-nos como herança “a graça de ter um coração valente, para que possamos caminhar por esta estrada com a cabeça levantada e com um sorriso no rosto”.
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