A palavra sagrada nas religiões
Faustino Teixeira[1]
PPCIR/UFJF
Introdução
Um dos desafios essenciais de nosso tempo é compreender o fenômeno do pluralismo religioso e o seu significado no desígnio salvífico universal de Deus, ou do Mistério que sempre advém. Como situar adequadamente as religiões nessa dinâmica da acolhida e da bem-querença de Deus ? Esta é a urgente tarefa que se abre para a reflexão teológica no presente momento. A percepção do pluralismo religioso como um valor fica facilitada quando se faz recurso à estrutura simbólica como chave de acesso para a compreensão da religião. A religião não é somente uma questão de credo ou de instituição, nem apenas uma experiência pessoal ou comunitária, mas uma “estrutura simbólica” que intermedeia a dinâmica da relação entre o indivíduo ou a comunidade e o Mistério Absoluto[2]. Na raiz de todo esse processo há o movimento da livre e gratuita auto-comunicação de Deus, que está dada de antemão a toda pessoa e pode ser acolhida autenticamente onde quer que aconteça o exercício da existência humana. A experiência original desse Mistério que é dom acontece a cada momento, quando a pessoa “tem a coragem de olhar para dentro de si e achar nas próprias profundezas a sua verdade última” e reconhecer com alegria a presença acolhedora do Deus sempre maior[3].
O mistério da auto-comunicação de Deus é universal e sua acolhida não está necessariamente vinculada a uma atividade religiosa, pois acontece antes mesmo de qualquer decisão religiosa reflexa, quando o sujeito vive a dinâmica da abertura à “sua experiência transcendental do mistério santo”[4]. As religiões ocupam, porém, um papel importante, enquanto sinais ou sacramentos dessa presença do Mistério em ação no mundo. Elas são a “anamnese” ou lembrança viva da dinâmica salvífica universal de Deus, sempre presente e reatualizada na história:
“Religiões: sinagogas e pagodes, mesquitas e templos, impedem, graças à sua palavra religiosa, a seu sacramento ou ritual, e à sua prática de vida, que essa presença salvífica universal venha a ser esquecida”[5].
As religiões são canais verdadeiros da presença amorosa e gratuita de Deus no tempo, mas a mediação dessa presença salvífica e universal não precisa ser unicamente uma pessoa, como ocorre com Jesus Cristo no cristianismo, pois ela pode se dar num livro, num evento, num ensinamento e numa práxis. Como indica Roger Haight, “religiões outras que não o cristianismo medeiam, verdadeiramente e realmente, a presença de Deus, de sorte que Deus é precisamente encontrado em diversos e diferentes caminhos”[6]. Isso não significa que essa mediação seja perfeita. Toda e qualquer religião, enquanto inserida no tempo, vem marcada pela dinâmica da limitação e da ambigüidade, tendo sempre necessidade de ouvir “sem cessar aquilo que ela deve acreditar, as razões de sua esperança e o mandamento novo do amor” (EN 15).
Não há porque restringir o conceito de revelação às religiões bíblicas, uma vez que todas as grandes religiões recorrem a textos fundadores, entendidos como textos de revelação em sentido largo. Nesse âmbito, a revelação designa sempre “a manifestação do divino na imanência da consciência humana”[7], ou como assinala Tillich, “a manifestação daquilo que nos diz respeito de forma última”[8]. Não apenas as religiões que admitem o dado de um Deus pessoal, que se faz presente mediante uma palavra, são eventos de revelação, mas também outras tantas religiões não teístas, ou aquelas que evitam nomear a Realidade última do universo. É, porém, correto assinalar que a revelação, em sentido estrito, envolve a presença da Palavra de Deus numa escritura determinada. E esse é o objetivo desse artigo, ou seja, captar a palavra sagrada nas diversas tradições religiosas.
1. As sagradas escrituras das nações
Como indicado na carta aos hebreus, “muitas vezes e de modos diversos falou Deus, outrora, aos Pais e aos profetas” (Hb1,1). Fala-se hoje em sagradas escrituras das nações para expressar as variadas formas de manifestação e presença de Deus aos seres humanos e à criação. Na ocular da teologia cristã do pluralismo religioso, há uma rica experiência religiosa dos sábios e “videntes” das nações, assinalada como experiência viva do Espírito. Também suas escrituras sagradas vem reconhecidas como inspiradas por Deus. Segundo Jacques Dupuis,
“essas escrituras representam o legado sagrado de uma tradição-em-devir, não sem a intervenção da divina providência. Elas contêm, nas palavras dos videntes, palavras de Deus aos seres humanos, porquanto apresentam sim palavras pronunciadas secretamente pelo Espírito em corações que são humanos, mas palavras destinadas pela providência divina a conduzir outros seres humanos à experiência do mesmo Espírito”[9].
Importantes tradições religiosas recorrem a textos fundadores, que são textos de revelação. Pode-se mencionar os escritos sagrados do hinduísmo. Em sua base existe uma vasta literatura religiosa, das mais antigas da humanidade, que surgiu no norte da Índia entre os anos 2000 e 1000 a.C. Trata-se dos Vedas, um termo sânscrito que pode ser traduzido por “conhecimento supremo, revelação”. São reconhecidos como textos revelados (sruti) pois atribuídos à inspiração do absoluto (Brahman). Os Vedas compreendem quatro grandes coleções: Rig-Veda (saber dos hinos), Sama-Veda (saber dos cânticos), Yajur-Veda (saber das fórmulas sacrificatórias) e Atharva-Veda (saber do ´sacerdote do fogo`). Os diversos volumes dos Vedas assumem importância de texto revelado. Os temas abordados são bem diversificados, envolvendo hinos sagrados, orações, invocações rituais e textos filosóficos de caráter mais esotérico. A coletânea dos Vedas traduz uma primeira etapa da religião hindu, da qual se dispõe de documentação escrita.
Nesta mesma coletânea dos Vedas encontram-se hinos especulativos tardios do Rig-Veda, direcionados a formas monistas de representação da divindade. São textos que situam o problema da origem do universo e buscam sua resposta num princípio último, anterior aos próprios deuses, cuja representação virá associada à noção de Brahman. Dentre estes textos, que constituem o Vedanta, destacam-se os Upanixades, escritos em torno dos anos 800 e 300 a.C. Eles são considerados, por consenso, os textos da revelação por excelência, quando então começa a desenvolver-se uma espécie de mística especulativa. Segundo Panikkar, os Vedas constituem “uma das mais belas manifestações do Espírito” e reporta-se que foram transmitidos aos sábios (rishi) pelo “sopro” do Absoluto[10].
Ao lado dos Vedas, podem ser igualmente mencionados outros importantes textos da tradição hindu, cujo núcleo essencial tem sua origem no início da era cristã. Os assim chamados Smrti (Tradição confiada à memória) distinguem-se dos Vedas pela dinâmica de sua revelação. Não são textos oriundos de um absoluto impessoal, mas palavras pronunciadas em circunstâncias determinadas por precisas divindades do panteão hindu, como Visnu, Krishna ou Shiva: divindades “avatarizadas”. Tais palavras são direcionadas ao conjunto da comunidade hindu e abordam a essencial questão do dharma e da moksa, ou seja, da ordem universal e dos caminhos de salvação (libertação) abertos aos seres humanos em razão de sua participação ativa na manutenção desta ordem. Esta tendência personalizante indica uma nova via da espiritualidade hindu, da religiosidade devocional bhakti. Trata-se de um tipo de religiosidade mais universal e personalista, “centrada no encontro afetivo com o sagrado”. O rosto de Deus vem personificado em deuses particulares do panteão hindu, envolvidos com a aventura humana, e o seu desvelamento se dá mediante a contemplação amorosa. Os smrt abrangem os sutras da filosofia brahmânica clássica e os passos da antiga tradição desenvolvida ao longo do primeiro milênio da era cristã. Em lugar de destaque encontra-se o Bhagavad-Gita (o canto do Bem Aventurado), o célebre episódio que narra o diálogo filosófico entre a Divindade Suprema Krishna e o guerreiro Arjuna. Sobretudo a partir do livro XI do Bhagavad-Gita emerge a figura “epifânica de um Deus quase-pessoal que aparece com força deslumbrante, oferecendo a seus fiéis o presente de seu amor.
Com respeito ao budismo, há uma vasta literatura sagrada, onde cada escola possui sua própria coleção. Pode-se mencionar, primeiramente, o cânone da escola Theravada, em língua páli, o Tripittaka (três cestos), talvez o único cânone conservado intacto. O cânone, que afirma reportar às palavras mesmas de Buda, é dividido em três partes: o Vinaya Pikaka, que contém regras (Vinaya) da ordem monástica; o Sutra Pittaka, subdivido em cinco grupos, que apresentam sermões, afirmações e ditos de variadas dimensões e o Abhi-dharma, mais tardio, com a caracterização dos vários dharmas que envolvem a experiência do budismo. Há também um outro cânone, o Mahâyâna Sutra, que declara reportar aos sermões de Buda e do Bodisatva, mas que carece da sistematização do cânone Theravada. Sua primeira manifestação ocorreu no vasto corpus de textos conhecidos como Prajñâpâramitâ, ou os sutras da Perfeição da Sabedoria, sendo os mais antigos datados do primeiro século da Era Comum. Outros desdobramentos e condensações desses textos originais aconteceram posteriormente, durante cerca de mil anos, em fases distintas, suscitando sutras fundamentais como o Sutra da Sabedoria Perfeita, o Sutra do Diamante e o Sutra do Coração. São textos que apresentam como tema central a compaixão e o auto-sacrifício dos bodisatvas, que recusando-se a desfrutar da iluminação, dedicam sua vida ao bem estar dos outros, tendo feito o voto de conduzir todos os seres à completa perfeição e iluminação[11]. Outro cânone é o que envolve a literatura Tantra, de caráter mais esotérico, que inclui textos conhecidos como o Guhyasamâja-Tantra (Tratado da sociedade secreta) e o Hevajra-Tranta (Tratado do Buda Hevajra). Há, finalmente, os textos zen, com sua coleção de Koans, entre os quais o célebre wou-men-kouan (passar sem porta), e outros clássicos como o Shôbôgenzô (o olho da verdadeira lei), do mestre Dodgen e o Orategama (a chaleira arremessada), de Hakuin[12]. Diferentemente do hinduísmo e do islamismo, o budismo não consagrou o conceito de uma língua sagrada. É uma tradição, de certa forma, poliglota. O centro referencial é a história: a história da iluminação de um homem, da realização do Buda. Como indica Masao Abe, “pelo menos quinhentos anos antes que os cristãos começassem a atuar e dois mil anos antes que os muçulmanos, os budistas já estavam oferecendo o dom do dharma (os ensinamentos do budismo) a quem o desejasse aceitar, na sua própria linguagem e cultura”[13]. Há, finalmente, a importante literatura sapiencial chinesa, com destaque para os tratados de Lao-Tsé (Tão Te Ching – 600 AEC) e Chuang Tzu (300 AEC), que firmam a tradição taoísta.
A teologia cristã do pluralismo religioso vem aos poucos reconhecendo esse influxo universal do Espírito nas sagradas escrituras das nações. Na visão de Jacques Dupuis, são divinas as palavras transmitidas pelos livros sagrados das nações, e pela razão de Deus as ter pronunciado mediante o Espírito divino. Daí ser pertinente, do ponto de vista teológico, nomeá-las como “sagradas escrituras”[14]. Há hoje o reconhecimento de um limite na reflexão teológico tradicional sobre as sagradas escrituras, inclusive com respeito à idéia de “iluminação”. Ainda segundo Dupuis, “é uma limitação da teologia tradicional da sagrada escritura silenciar em grande parte sobre o papel peculiar desenvolvido nesse processo pelo Espírito Santo”[15]. Nos limites impostos pela reflexão da Dei Verbum (DV 11), do Vaticano II, a Comissão Teológica Internacional, em documento sobre o cristianismo e as religiões (1997), indica que a denominação de “palavra de Deus” fica reservada aos escritos do Primeiro e Segundo Testamentos. Titubeia em conferir o qualificativo de “inspirados” aos livros sagrados das outras tradições religiosas, limitando-se a afirmar que neles ocorre apenas “alguma iluminação divina”[16].
A reflexão teológica cristã em torno das sagradas escrituras deve ganhar um novo impulso no tempo atual, conferindo um maior destaque ao Espírito que atua nas outras escrituras das nações. Com esse novo elã, é a própria reflexão teológica cristã que ganha em conteúdo e perspectiva, facultando uma maior abertura para as outras escrituras, bem como ao reconhecimento da experiência espiritual dos profetas e sábios das nações. As diversas tradições religiosas, com suas escrituras sagradas, estão inseridas na “economia universal do Espírito, que leva os povos à realização escatológica da irmandade em Deus mediante caminhos diversos”[17].
Há uma troca de dons e um mútuo enriquecimento entre as escrituras bíblicas e as escrituras das nações. Há traços novidadeiros e singulares presentes nas escrituras das outras tradições religiosas que não se encontram presentes nas escrituras cristãs, e que revelam aspectos preciosos e inéditos do mistério divino. Vale sublinhar o precioso sentido da transcendência divina vigente no Corão, o respeito e preservação do mistério do Real nos textos budistas e a presença imanente de Deus no mundo, na criação e no coração humano traduzida nos livros sagrados do hinduísmo[18].
2. As religiões proféticas em situação hermenêutica
Seguindo a linha tradicional da história comparada das religiões, com base na reflexão de autores como Friedrich Heiler e R.C.Zaehner, pode-se fazer uma distinção entre as religiões místicas e as religiões proféticas. Enquanto as religiões místicas têm sua origem na Índia, no período tardovédico (em torno dos anos 1700 a.C.), as religiões proféticas nascem na área cultural semítica, por volta do ano 1200 a.C. Pode-se admitir a distinção adotada, entre religiões proféticas e místicas, desde que operada com cautela. Ela tem o mérito de sublinhar o fundamento comum das três religiões monoteístas de herança semítica e abraâmica, situadas como religiões proféticas e do livro, distinguindo-as das tradições orientais, que acentuam mais a dimensão da interioridade, da sabedoria e da gnose. Esta distinção, porém, não autoriza a concluir em favor de uma separação rígida que excluiria qualquer significado profético nas religiões orientais ou dimensão mística nas religiões proféticas[19].
No que tange às religiões monoteísticas ou proféticas há uma origem comum na fé de Abraão e também uma “misteriosa complementaridade”, como mostrou com acerto Louis Massignon. É o mesmo Deus que nelas vem cultuado, mas “segundo uma inteligência diferente de sua unidade”[20]. Todas as três religiões enfatizam a unicidade de Deus. Isso acontece na shema de Israel, onde se diz: “Ouve, Israel! O Senhor nosso Deus é o único Senhor” (Dt 6,4). Essa mensagem vem retomada no Segundo Testamento, quando Jesus sublinha o significado do primeiro de todos os mandamentos: “O primeiro é este: `Ouve, Israel! O Senhor nosso Deus é um só. Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo teu entendimento e com toda a sua força!`” (Mc 12,29-30). Há também sintonia com esta perspectiva no livro do Corão: “O nosso Deus e o vosso Deus é um só” (Corão 29,46). No clássico discurso de João Paulo II, aos jovens muçulmanos em Casablanca (Marrocos), em agosto de 1985, ele sublinha a crença comum em Deus que irmana cristãos e muçulmanos: “É nele que nós cremos, vós muçulmanos e nós católicos”[21].
As três tradições religiosas proféticas, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, são situadas como “religiões de Escritura”. São três casos de religiões onde o texto fixado tem um lugar singular, enquanto canal de acesso à Palavra originária. O processo de formação do canon nessas três tradições religiosas proféticas veio firmado num período de longa duração. Enquanto os “escritos da Bíblia hebraica formaram-se num período de cerca mil anos, e os do Novo Testamento em menos de cem, o Corão formou-se em vinte e dois anos. O processo de formação do canon, para fixar a precisa consistência da escritura reconhecida como sagrada, foi respectivamente mais breve”[22].
Em perspectiva antropológica e histórica, é correto designar tais tradições religiosas como “sociedades do Livro”, em razão de estarem envolvidas numa similar “situação hermenêutica” onde os textos sagrados servem de referencial para o sistema de crenças, legislação e conduta das respectivas comunidades de fé[23]. No caso do cristianismo e islã operam “três elementos fundamentais: um acontecimento inaugurador, um texto original e uma comunidade interpretativa com suas instâncias próprias de regulação”[24]. A facticidade do acontecimento inaugural vem recoberta por camadas diferenciadas, que envolvem o acontecimento da palavra (tradição oral) e o acontecimento da escritura. Nenhuma dessas camadas consegue reproduzir fielmente o acontecimento original, que sempre escapa da ocular do intérprete. Daí se falar em “situação hermenêutica”. Não há como escapar ao “risco da interpretação” que coloca o intérprete sempre diante de uma “tradição viva” que se reatualiza permanentemente. A dinâmica da hermenêutica pressupõe algo que está sempre “escondido” e que provoca a essencial tarefa de decifrar o “segredo” no signo visível.
É esse “estatuto hermenêutico” que as correntes fundamentalistas ou integristas atuantes nas religiões proféticas buscam negar ou apagar, reforçando posições analíticas que identificam nas religiões monoteístas uma maior densidade de intolerância. Não se nega o risco presente nas “sociedades do Livro” de uma perspectiva de fechamento dogmático, onde se acredita rigorosamente que no texto sagrado da própria tradição se dá a reprodução fiel e exclusiva da Palavra eterna de Deus. Como sinalizou Claude Geffré,
“durante séculos tanto cristãos como muçulmanos dogmatizaram e legislaram, ou seja, sacralizaram apressadamente os ensinamentos contingentes em nome de uma concepção de Revelação entendida como Verdade absoluta, única e imutável, livrando-se de toda historicidade. Assiste-se no interior de cada tradição a elaboração e sacralização de construções teológicas e jurídicas que tornaram-se sistemas de exclusão recíproca”[25].
Quando se fala em hermenêutica pressupõe-se uma “interpretação infinita”. Na tradição judaica o toque da interpretação, ou a “vocação hermenêutica” está sempre presente, como pode ser visualizado na dinâmica que envolve o Talmude. Ele traduz “o espaço da interpretação judaica da Bíblia”. É a expressão do Deus vivo através das “palavras de uns e de outros”. Ele possibilita uma “leitura explosiva”, na medida em que desconstrói permanentemente toda imagem estabelecida de Deus, preservando o enigma de sua realidade misteriosa e infinita[26]. No âmbito do cristianismo, a interpretação é um dado congênito, já que Jesus mesmo não deixou palavra escrita, e os evangelhos e outros escritos do Segundo Testamento são interpretações desse evento essencial para a comunidade cristã. Não se suprime em momento algum o “regime do espírito” que rege a dinâmica interpretativa. Para utilizar uma rica expressão de Paul Ricoeur, o “espaço da experiência” è sempre animado pelo “horizonte da espera”, cada vez renovado. Há ainda que acrescentar, como lembra Geffré, que a Escritura não é no cristianismo o único meio termo entre Deus e o ser humano: “segundo a visão cristã, Deus não se torna presente aos homens somente pela proclamaçao de uma Palavra (Logos), mas por uma manifestação, uma irrupção do invisível no visível”[27]. Dá-se, no cristianismo, um acento importante à história, enquanto espaço de interpelação permanente de Jesus ressuscitado, mediante a ação do Espírito. No caso do islamismo, também permanece aberto o regime da interpretação, apesar de resistências localizadas do pensamento islâmico oficial com respeito à idéia de “tradição interpretativa”. Estudiosos recentes do islamismo buscam salvaguardar certa “distância” entre a Palavra de Deus e sua objetivação na escritura sagrada. Mesmo reconhecendo a força de inspiração do livro do Corão, enquando livro descido do céu e calado no coração do profeta (Corão 12,2 e 2,97), ou seja, “verbo de Deus” (kalimat Allah), permanece o espaço de interpretação quando se admite a realidade de um livro original, incriado e arquetípico - a mãe do livro (umm al-kitâb) -, que está guardado e protegido no céu (Corão 56,77-78)[28]. O estudioso muçulmano, Mohammed Arkoun, busca preservar esta distância ao distinguir o Corão escrito (Mushaf) e o Corão recitado, que seria a emanação direta do Livro arquetípico[29].
A revelação, como bem expressou Geffré, não é somente uma palavra que vem de Deus e se expressa em palavras humanas, mas “uma história interpretada pelos profetas que traduzem o sentido dessa história sob o ponto de vista de Deus”[30]. Na realidade, a Palavra mesma de Deus é totalmente inacessível. As Escrituras buscam, em palavras humanas, e na situação contingencial do tempo, expressar essa Palavra. Uma adequação plena entre Palavra e Escritura nunca ocorre. Há sempre uma “tensão necessária” entre a Palavra de Deus e o Livro sagrado, quer ele seja escrito em sânscrito, hebraico, grego ou árabe. Esta inadequação entre o “Referente inacessível da Palavra de Deus” e sua objetivação escritural, vem revelar o “capital” de Mistério que permanece resguardado, como dom gratuito de Deus. Fala-se em “reserva escatológica” de Deus sobre as religiões e a história, mas também sobre as Escrituras sagradas. A fonte mesma da Revelação de Deus vem preservada por um “silêncio”, que é o dom do Mistério indizível de Deus.
Conclusão
Um dos desafios que hoje se apresentam para a teologia cristã do pluralismo religioso é o de avançar corajosamente em direção a uma teologia aberta das sagradas escrituras, reconhecendo o valor e a dignidade das outras escrituras, que entram em colaboração com as escrituras bíblicas. E, mais ainda, saber reconhecer com ousadia o seu caráter novidadeiro no desvelamento de aspectos do mistério divino. Os teólogos Claude Geffré e Jacques Dupuis foram pioneiros nessa reflexão, ao buscarem ampliar a compreensão do “envolvimento pessoal de Deus com a humanidade” e sua presença viva nas escrituras das diversas tradições religiosas. Para além de uma “teologia do acabamento”, souberam valorizar nos outros livros sagrados o toque da “Palavra de Deus”, rompendo com a visão unilateral que reconhecia nesses livros apenas conhecimento “natural” de Deus ou “marcos de espera” para sua realização nas escrituras da tradição judaico-cristã. Como mostrou com acerto Jacques Dupuis, a própria liturgia cristã deveria poder experienciar o exercício de uma complementaridade, acolhendo na Liturgia da palavra, as palavras de Deus presentes nas outras tradições religiosas. Isso poderia revelar, surpreendentemente, a “espantosa convergência” que vincula os livros sagrados em suas diferenças[31]. Sublinha ainda que “por mais que isso possa parecer paradoxal, um contato prolongado com as escrituras não-bíblicas pode ajudar os cristãos – se praticado dentro da fé – a descobrir com maior profundidade alguns aspectos do mistério divino que eles contemplam como revelado a eles em Jesus Cristo”[32]. Trata-se de uma teologia cristã do pluralismo religioso que aponta para uma “teologia interreligiosa”, de forma a enriquecer a singular perceção do mistério da Palavra de Deus no exercício salutar das próprias diferenças.
Indicações bibliográficas
AMALADOSS, Michael. Rinnovare tutte le cose. Dialogo, pluralismo ed evangelizzazione in Asia. Roma: Arkeios, 1993,
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DUPUIS, Jacques. O cristianismo e as religiões. São Paulo: Loyola, 2004.
GEFFRÉ, Claude. De Babel à Pentecôte. Essais de théologie interreligieuse. Paris: Cerf, 2006.
GEFFRÉ, Claude. Le Coran, une parole de dieu différente? Lumière et Vie, n. 163, p. 21-32, 1983.
GEFFRÉ, Claude. Révélation et révélations. In: LENOIR, F & MASQUELIER, Y.T. (Eds) Encyclopédie des religions II. Paris: Bayard, 1997, p. 1415-1424.
(Publicado no livro: Fernando Altemeyer Junior & Vera Ivanise Bombonatto (Orgs). Teologia e Comunicação. São Paulo: Paulinas, 2011, pp. 76-87)
[1] Faustino Teixeira é teólogo e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora. É também pesquisador do CNPQ e consultor do ISER-Assessoria (RJ). As áreas de interesse em suas pesquisa e publicações relacionam-se aos temas de teologia das religiões, diálogo inter-religioso e mística comparada das religiões.
[2] Michael AMALADOSS. Rinnovare tutte le cose. Roma: Arkeios, 1993, p. 131.
[3] Karl RAHNER. Curso fundamental da fé. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 164.
[4] Ibidem, p. 163.
[5] Edward SCHILLEBEECKX. História humana revelação de Deus. São Paulo: Paulus, 1994, p. 31.
[6] Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 477.
[7] Claude GEFFRÉ. Révélation et révélations. In: LENOIR, F & MASQUELIER, Y.T. (Eds) Encyclopédie des religions II. Paris: Bayard, 1997, p. 1415.
[8] Paul TILLICH. Teologia sistemática. 5 ed. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2005, p. 123.
[9] Jacques DUPUIS. O cristianismo e as religiões. São Paulo: Loyola, 2004, p. 170.
[10] Raimon PANIKKAR. Iniziazione ai Veda. Milano: Servitium, 2003, p. 11.
[11] Kajiyaa YÛICHI. O Prajñâpâramitâ e o surgimento da tradição Mahâyâna. In: Takeushi YOSHINORI (Org.) A espiritualidade budista. São Paulo: Pespectiva, 2006, p. 153-159.
[12] Ver a respeito: Masao ABE. Buddhismo. In: Arvind SHARMA (Ed.) Religioni a confronto. Vicenza: Néri Pozza, 1996, p. 131-139.
[13] Ibidem, p. 101.
[14] Jacques DUPUIS. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. São Paulo: Paulinas, 1999, p. 348.
[15] Jacques DUPUIS. O cristianismo e as religiões, p. 168.
[16] COMISSÃO Teológica Internacional. O cristianismo e as religiões. São Paulo: Loyola, 1997, n. 92 (p. 48).
[17] Seminário de Bangalore (1974). Apud Michael AMALADOSS. Rinnovare tutte le cose, p. 58.
[18] Jaques DUPUIS. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, p. 350; Michael AMALADOSS. Rinnovare tutte le cose, p. 70; Edward Schillebeeck. História humana revelação de Deus, p. 215-216.
[19] Jacques DUPUIS. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, p. 23. Ver ainda: Hans KUNG & J. VAN ESS & H.VON STIETENCRON & H. BECHERT. Cristianesimo e religioni universali. Milano: Arnaldo Mondadori, 1984, p. 210-214.
[20] Claude GEFFRÉ. La portée théologique du dialogue islamo-chrétien. Islamochristiana, n. 18, p. 16, 1992.
[21] JOÃO PAULO II. Ai giovani musulmani del marocco. In: PONTIFICIO Consiglio per il Dialogo Interreligioso. Il dialogo interreligioso nel magistero pontifício. Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1994, p. 345.
[22] Hans KUNG. Islam. Passato, presente e futuro. Milano: Rizzoli, 2005, p. 88.
[23] Claude GEFFRÉ. Révélation et révélations, p. 1420
[24] Claude GEFFRÉ. Le Coran, une parole de dieu différent? Lumière et Vie, n. 163, 1983, p. 22.
[25] Claude GEFFRÉ. La raison islamique selon Mohammed Arkoun. In: Joseph DORÉ (Ed.) christianisme, judaïsme et islam. Fidélité et ouverture. Paris: Cerf, 1999, p. 166.
[26] Marc-Alain OUAKNIN. O Deus dos judeus. In: Jean BOTTÉRO & Marc-Allain QUAKNIN & Joseph MOINGT. A mais bela história de Deus. Rio de Janeiro: Difel, 2001, p. 64.
[27] Claude GEFFRÉ. Révélation et révélations, p. 1418.
[28] Claude GEFFRÉ. Le Coran, une parole de Dieu différent?, p. 23; Hans KUNG. Islam, p. 86
[29] Mohammed ARKOUN. Ouvertures sur l´islam. Paris: Jacques Grancher, 1989, p. 61s; Claude GEFFRÉ. Révélation et révélations, p. 1419.
[30] Claude GEFFRÉ. Profession théologien. Paris: Albin Michel, 1999, p. 124 (Entretiens avec Gwendoline Jarczyk).
[31] Jacques DUPUIS. O cristianismo e as religiões, p. 180 e também, p. 295-314 (a respeito da oração interreligiosa).
[32] Jacques DUPUIS. O cristianismo e as religiões, p. 180.