PLURALISMO RELIGIOSO E DINÂMICA MISSIONÁRIA
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
“Os cristãos que não têm apreço nem
respeito pelos outros crentes e pelas
suas tradições religiosas, estão mal
preparados para lhes anunciar
o Evangelho” (DA 73 c)
Resumo
A diversidade religiosa é um traço característico de nosso tempo, levantando questões importantes para a teologia cristã, que nesse início de milênio, passa a se interrogar sobre o lugar do pluralismo religioso no desígnio misterioso de Deus. Antes de considerá-lo expressão da limitação do humano, ou traço conjuntural fadado ao desaparecimento, há que se perguntar seriamente sobre o seu valor de princípio. Em verdade, como bem mostrou Claude Geffré, “a pluralidade dos caminhos que levam a Deus continua sendo um mistério que nos escapa”. É nesse novo campo dos arranjos religiosos que se coloca a importante questão da dinâmica missionária da igreja. Como entender e situar a missão no horizonte do pluralismo religioso? Como responder ao desafio da missão evangelizadora e ao mesmo tempo deixar-se envolver pelo enigma da alteridade? São algumas das questões que o presente artigo busca desenvolver. Não há dúvida de que a missão da igreja permanece atual e urgente, mas necessita ser ressignificada. Há que superar as posturas de superioridade e arrogância identitária, bem como a obsessão pelo crescimento quantitativo, e inserir o “espírito do diálogo” no coração mesmo da dinâmica missionária. A razão mais profunda que anima o espírito missionário deve ser a manifestação e promoção do reino de Deus, que irrompe de forma misteriosa por todo o espaço da criação.
Introdução
Faz parte fundamental da identidade católico-romana a tarefa evangelizadora. Em sua exortação apostólica sobre a evangelização no mundo contemporâneo, Evangelii nuntiandi, Paulo VI indica que “a tarefa de evangelizar todos os homens constitui a missão essencial da Igreja”[1]. Como conjugar este desafio da evangelização com a crescente situação de pluralismo religioso que constitui um marco decisivo deste novo milênio que se inicia? A realidade da globalização e a presença da pluralização religiosa apresentam-se hoje como traços instaurados e permanentes, que não podem sob hipótese alguma ser descartados ou considerados contingenciais. Não há como manter uma visão tradicional de evangelização deslocada do novo desafio que acompanha a percepção do pluralismo religioso não apenas como um dado de fato, mas como uma realidade de princípio. A tarefa evangelizadora não se situa mais num quadro referencial marcado pela força homogeneizadora de uma tradição hegemônica, mas no horizonte multifacetado de uma presença religiosa diversificada. Há também o desafio crescente de assumir a perspectiva evangelizadora mantendo aceso o “espírito do diálogo”, o respeito essencial à liberdade religiosa e a chama da compaixão. A verdadeira missão evangelizadora deve estar sempre animada e penetrada pelo diálogo e pela responsabilidade global; pela “atitude de respeito e de amizade” pelo outro, pelo diferente, que traz consigo um mistério irredutível e imponderável, mas também pela responsabilidade em favor do bem estar eco-humano.
1. Globalização e Pluralismo Religioso
O tempo atual é de globalização intensificadora, de afirmação de uma consciência mais planetária, de aproximação de culturas e religiões. Esta globalização não constitui unicamente um fenômeno econômico, mas traduz igualmente uma transformação do contexto comunitário e pessoal da experiência social. As atividades cotidianas passam a ser influenciadas por eventos que ocorrem nos lugares mais distantes. Não há como negar o impacto exercido por tal fenômeno nas identidades culturais e religiosas. As identidades são “discursivamente forçadas a uma exposição”, provocadas à interrogação e ao discurso.[2] A globalização aproxima identidades que são distintas: as diferenças tornam-se mais localizadas e visíveis , diretamente encontradas. Isto não significa, necessariamente, a instauração de uma dinâmica dialogal. Em realidade, a aproximação não proposital de identidades distintas leva muitas vezes à suspeita, ao temor e ao conflito.[3] A presença “ameaçadora” do outro provoca, em casos concretos, o temor do desenraizamento e da perda da identidade. O atual crescimento dos fundamentalismos ou neofundamentalismos é uma expressão viva deste temor.
A afirmação da modernidade veio acompanhada de um aumento quantitativo e qualitativo da pluralização, entendida também como pluralização física e demográfica. Verifica-se paupavelmente um crescimento populacional, uma maior aproximação involuntária das pessoas, uma exposição pelos meios de comunicação de massa de diferentes e contraditórios modos de pensar e viver etc. O sociólogo Peter Berger tem abordado extensivamente esta questão e levantado indagações bem pertinentes para a reflexão. Em sua visão,
“o pluralismo cria uma condição de incerteza permanente com respeito ao que se deveria crer e ao modo como se deveria viver; mas a mente humana abomina a incerteza, sobretudo no que diz respeito ao que verdadeiramente conta na vida. Quando o relativismo alcança uma certa intensidade, o absolutismo volta a exercer um grande fascínio”[4].
O temor provocado pelo pluralismo, sobretudo suas possíveis consequências no campo da afirmação do sentido, tem suscitado a criação diversificada de mecanismos de defesa institucional voltados a impor limites à interação e comunicação das identidades distintas. Para driblar o risco da desorientação e dispersão identitária, erguem-se, por todo canto, “muros” de defesa voltados para a afirmação rigorosa das convicções tradicionais e a manutenção da auto-evidência de sua plausibilidade.[5] Entende-se claramente a razão que move hoje em dia inúmeros grupos que buscam normas de navegação, marcos referenciais mais seguros para a sua vida, quando não rígidos e cristalizados. Verifica-se igualmente tal tendência em muitas instituições religiosas ou núcleos a elas relacionados. Na base desta busca de parâmetros mais seguros ou firmes encontra-se o receio da relativização que pode acompanhar a dinâmica de afirmação do pluralismo. Ao desacreditar os conhecimentos auto-evidentes e as interpretações tidas como únicas em validade, o pluralismo moderno vem responsabilizado pelas crises subjetivas e intersubjetivas. Ergue-se uma crítica contundente ao pluralismo moderno, responsabilizado pela desestabilização das “auto-evidências das ordens de sentido e de valor que orientam as ações e sustentam a identidade”[6].
Os que defendem o diálogo inter-religioso insistem na idéia de que o pluralismo moderno, e em particular o pluralismo religioso, constitui hoje um desafio insuperável[7], trazendo consigo uma exigência de transformação dos parâmetros de orientação da vida e de percepção da identidade. O pluralismo vem acolhido como um valor inevitável e não fonte de insegurança. O diálogo inter-religioso busca ser uma alternativa possível ao risco representado pela realidade tensa da imediatez das distinções religiosas, que podem provocar a afirmação de “identidades mortíferas”. Trata-se de uma forma emergente de regulação ou “gerenciamento convivial das identidades coletivas”.[8] O diálogo inter-religioso aposta na possibilidade de uma afirmação plural das identidades, abertas e disponibilizadas ao aprendizado da alteridade.
O pluralismo religioso traduz a presença real e desafiadora de identidades religiosas complexas e distintas, pontuadas pela consciência viva de sua singularidade e pela força de suas convicções. Marca uma perspectiva de mudança com respeito a um momento anterior caracterizado por uma maior homogeneidade de pertencimento. Como fenômeno tipicamente moderno, as religiões passam a reivindicar maior autonomia e legitimidade específicas. Com o pluralismo religioso afirma-se igualmente a reivindicação crescente em favor da liberdade religiosa e a oposição a quaisquer tentativas de proselitismo ou coerção no campo religioso. A questão ganha ainda maior complexidade no tempo atual, com a discussão dos direitos da laicidade. Fala-se da laicidade como “princípio fundamental da liberdade espiritual e da igualdade”. Reivindica-se o direito inalienável em favor de “opções espirituais” que envolvem caminhos religiosos ou não[9].
2. Pluralismo religioso e evangelização
O momento atual de pluralismo religioso exige, assim, uma nova aproximação e abordagem da questão da evangelização. Não há como continuar afirmando teses tradicionais que indicavam o cristianismo como ponto de encontro das várias tradições religiosas. Há uma certa ingenuidade em acreditar, como João Paulo II em carta apostólica de 1994, que “o ano 2000 convida a encontrarmo-nos, com renovada fidelidade e mais profunda comunhão, sobre as margens deste grande rio: o rio da Revelação, do Cristianismo e da Igreja, que corre através da história da humanidade a partir do que sucedeu em Nazaré e depois em Belém, há dois mil anos”[10]. O pluralismo religioso não constitui uma realidade provisória, mas um traço historicamente duradouro e insuperável. Sob o ponto de vista teológico, é necessário um passo adiante na reflexão sobre o tema, superando as interpretações que identificam o pluralismo religioso como expressão provisória e contingente, ou mesmo reflexo da cegueira culpável dos seres humanos em sua incapacidade de perceberem a verdadeira religião. A teologia vem convocada a reconhecer neste pluralismo uma expressão das “riquezas da sabedoria infinita e multiforme de Deus”[11]. Daí se falar hoje em dia de um pluralismo religioso de princípio, que revela a dinâmica de uma acolhida positiva da diversidade religiosa como um valor singular[12]. Trata-se de um pluralismo visto como “a expressão mesma da vontade de Deus que necessita da diversidade das culturas e das religiões para melhor manifestar as riquezas da Verdade última”[13]. As religiões não são apenas genuinamente diferentes, mas também autenticamente preciosas. Há que honrar esta alteridade em sua especificidade peculiar. E honrar a alteridade é ser capaz de reconhecer algo de irredutível e irrevogável nas outras tradições religiosas.
Verifica-se hoje também no campo da reflexão ecumênica uma preocupação em resguardar a singularidade da diversidade. Evita-se definir a atividade ecumênica como a anexação das outras igrejas cristãs à igreja católico-romana. A unidade requerida não é em favor de uma igreja única, mas de uma unidade que preserve a diversidade legítima[14]. Não existe um “vazio eclesial” quando se ultrapassa os limites da comunidade católica, mas traços de grande valor, que inclusive favorecem a perceção de aspectos do mistério cristão que escapam à visada católica[15].
O mesmo procedimento de respeito à alteridade presente no campo do ecumenismo vem requerido no tratamento do diálogo inter-religioso. É sugestivo perceber como o processo dialogal entre o cristianismo e o judaísmo revelou-se paradigmático para o “ecumenismo” interreligioso. O papa João Paulo II, em discurso aos representantes da comunidade judaica de Roma, em abril de 1986, assinalou que os judeus são portadores de uma “vocação irrevogável”[16]. Esta afirmação da “perenidade de Israel” e de sua aliança, tem servido de base para a indagação teológica atual sobre a presença de um traço igualmente irredutível e irrevogável misteriosamente presente nas demais tradições religiosas[17].
Neste tempo de pluralismo religioso e de reconhecimento da positividade das diversas tradições religiosas, a dinâmica evangelizadora ganha um significado peculiar. Sem perder a percepção da importância da evangelização explícita, que mantém-se viva como prioridade de importância “lógica e ideal”[18], reforça-se agora o seu sentido mais lato, de evento global e não circunscrito à proclamação meramente verbal. Recupera-se a idéia de evangelização como fenômeno “rico, complexo e dinâmico”, enquanto exercício essencial de “tornar nova a própria humanidade” (EN 18). Verifica-se uma estreita vinculação da evangelização com a promoção humana, mas também com o diálogo inter-religioso, que em casos concretos aparece como única forma de testemunho e serviço.
A mensagem cristã deve ser compreendia não como um imperativo categórico para todos, mas sobretudo como oferta de uma singularidade. A missão evangelizadora é essencialmente uma “missão de amor”. Encontra sua razão de ser e sua raiz na experiência do Deus de amor (1Jo 4,8.16), que é uma experiência de “amor fontal”. No encontro com Jesus, os cristãos vivem a radicalidade de uma dinâmica de amor, bem como um exemplo de vida descentrada e dedicada ao serviço: alguém que proclamou o projeto de Deus muito mais com os atos e o diálogo do que com as palavras. Como tão bem mostrou José Antonio Pagola, Jesus é alguém que contagia saúde e alegria, que abre as portas para a percepção de um Deus que é “amigo da vida”, um Deus de compaixão e sempre misericordioso. Para ele, o decisivo foi sempre o amor, que é a expressão mais adequada para sinalizar a chegado do reino de Deus: “construir a vida tal como Deus quer só é possível quando se faz do amor um imperativo absoluto”[19].
É a partir deste “centro do mistério do amor” que nasce a decisão e o desafio do impulso missionário. Em sua raiz encontra-se a experiência de um amor profundo por Jesus Cristo, que se traduz pelo desejo de compartilhá-lo com os outros. Antes de ser o resultado de um mandato, a missão evangelizadora é expressão de um mistério do amor que transformou o sujeito [20]:
“O que vimos com nossos olhos,
o que contemplamos,
e nossas mãos apalparam
da Palavra da vida
- porque a Vida manifestou-se:
nós vimos e damos testemunho” (1Jo 1-2)
A motivação mais importante da missão é, portanto, a motivação do amor. A proclamação de Jesus vem traduzida pelo testemunho de Jesus e, sobretudo, pelo seguimento de Jesus. Assim como para Jesus os atos foram de fundamental importância, também para a igreja o mesmo procedimento vem exigido na tarefa evangelizadora. O desafio que se coloca é o de viver como ele, no meio dos pequenos e excluídos, dos próximos e vizinhos, daqueles que não partilham da mesma fé ou convicção. A meta e o horizonte da evangelização é o reino de Deus, que transborda e dá sentido à missão eclesial. Proclamar o reino é favorecer e promover a boa nova da justiça, da paz, da compaixão, do respeito e fraternidade entre os povos.
Há uma “simbolização inter-religiosa do reino de Deus”, que indica o traço de um mistério que não exclui os outros, mas que favorece uma profunda relação entre todas as religiões. A realidade do reino de Deus envolve a diversidade das religiões. Os outros que participam destas tradições não precisam romper com sua vinculação religiosa de origem para atender ao chamado de Deus, mas é mediante a prática sincera de suas próprias tradições que se dá a resposta a esse mistério[21]. É significativo perceber que a história das religiões não traduz simplesmente uma busca humana do mistério maior, mas revela também a “pluralidade dos dons de Deus”, diafanizados em toda a criação[22]. Como diz o grande místico sufi Rûmî (séc. XIII), não é o sedento que busca a água, mas a água que busca o sedento[23].
Nessa perspectiva mais ampla, a sacramentalidade da igreja ganha um conteúdo relacional. Trata-se de uma sacramentalidade que não é “nem exclusiva nem exaustiva”, mas que envolve uma dinâmica relacional com outras formas de mediação simbólica do reino de Deus. Como mostrou ricamente Miguel Marcello Quatra, em tese doutoral defendida na Gregoriana de Roma (1998), a abertura ao reino de Deus faculta uma compreensão de igreja “com os outros e para os outros”, ou seja a afirmação de uma sacramentalidade relacional. Isso significa incluir em sua própria inteligibilidade a realidade do pluralismo religioso[24]. Com base nos documentos dos bispos asiáticos, Quatra assinala que “não é a missão que se coloca à serviço da implantação da igreja, mas é esta última que se direciona à missão de manifestação“ e de operacionalidade do reino de Deus no mundo inteiro[25].
Experiências significativas de uma singular dinâmica evangelizadora ocorrem por toda parte. Vale mencionar o exemplo dado pelos bispos asiáticos da FABC (Federação das Conferências Episcopais da Ásia), ao sublinharem a prática asiática de exercício missionário. Trata-se de uma “proclamação pelo diálogo e pelos atos”, pontuada pela cortesia inter-religiosa. Parte-se da viva consciência de que o Espírito de Deus encontra-se em curso na história, presente de forma misteriosa, mas vigorosa entre os outros; de que o Espírito age nas religiões tradicionais, revelando facetas novidadeiras. A proclamação vem, assim, animada por um espírito particular, que não exclui a acolhida das experiências religiosas dos outros, que os bispos asiáticos nomeiam carinhosamente como “nossos amigos”[26]. No Brasil há o belo exemplo das Irmãzinhas de Jesus de Charles de Foucauld, dedicadas ao trabalho com os índios Tapirapé no Mato Grosso (MT), desde 1952. Ao chegarem na região, bem antes do evento conciliar, encontraram um pequeno grupo de indígenas ameaçados de extinção por uma série de fatores. A intenção missionária que moveu a ida das Irmãzinhas era simples e enriquecedora: dedicar-se a reerguer um povo ameaçado pelo desencanto e pela pobreza. Nesse projeto singular, o mais importante era o exercício da convivência, da compaixão, da cortesia e delicadeza, da solidariedade e do aprendizado permanente. E conseguiram com sua presença o “milagre” da recuperação de um povo, o “reencantamento” de um grupo humano ameçado de extinção. Como sublinhou o antropólogo e historiador, André Toral, na apresentação do diário das Irmãzinhas, o trabalho que elas exerceram foi paradigmático:
“Elas, verdade seja dita, não ´salvaram`ninguém, não converteram moribundos, nem obrigaram ninguém a tomar remédio. Aliás, do ponto de vista tradicional, sua missão foi um fracasso, pois não existe nenhum Tapirapé convertido e muito menos uma Igreja tapirapé. Tudo isso para dizer que foram os próprio Tapirapé que se salvaram. As Irmãzinhas deram o apoio, estavam lá, sempre. Elas ajudaram decisivamente a construir o milagre que foi a recuperação populacional dos Tapirapé”[27].
3. Desafios da evangelização no mundo plural
A intensificação da rede de comunicação neste tempo de globalizão favorece não apenas um melhor conhecimento da diversidade religiosa, como também a consciência da relatividade histórica das religiões. Torna-se cada vez mais difícil aceitar sem resistência a pretenção de determinadas religiões arvorarem-se detentoras da plenitude da verdade. Há que reconhecer com certa perplexidade a permanência de alguns posicionamentos restritivos ainda presentes em certos documentos do magistério eclesiástico católico-romano a propósito da diversidade religiosa, bem como em documentos de comissões teológicas ou de teólogos específicos. Com base na afirmação da unicidade de Jesus Cristo e da necessidade da igreja, restringe-se de forma nítida a singularidade das outras tradições religiosas e sua potencialidade salvífica. O reconhecimento da “plenitude dos meios de salvação” fica reservado à igreja católico-romana, enquanto as outras religiões aparecem objetivamente como instâncias “gravemente deficitárias”, por não conseguirem estabelecer uma “relação autêntica e viva com Deus”.
Para exemplificar, podemos mencionar três passagens significativas a respeito. Na exortação apostólica Evangelii nuntiandi (1975), de Paulo VI, sobre a evangelização no mundo contemporâneo, assinala-se: “a nossa religião instaura efetivamente uma relação autêntica e viva com Deus, que as outras religiões não conseguem estabelecer, se bem que elas tenham, por assim dizer, os braços estendidos para o céu” (EN 53). Na carta encíclica de João Paulo II sobre a validade permanente do mandato missionário, Redemptoris missio (1990), sinaliza-se que “o diálogo deve ser conduzido e realizado com a convicção de que a Igreja é o caminho normal de salvação e que só ela possui a plenitude dos meios de salvação” (RM 55). Na declaração Dominus Iesus, da Congregação para a Doutrina da Fé (2000), retoma-se a visão mais tradicional: “Se é verdade que os adeptos das outras religiões podem receber a graça divina, também é verdade que objetivamente se encontram numa situação gravemente deficitária, se comparada com a daqueles que na Igreja têm a plenitude dos meios de salvação” (DI 22). Frases como estas encontram sua razão de ser no contexto da tradicional hermenêutica cristã, para a qual Jesus Cristo constitui o “único mediador” entre Deus e os seres humanos (RM 5). Assim sendo, a missão evangelizadora explícita assume um lugar de destaque, exigindo a proclamação clara do nome e da doutrina de Jesus Cristo, e a afirmação da igreja como necessária para a salvação. A centralidade da igreja católico-romana vem igualmente acentuada no documento da Comissão Teológica Internacional, sobre o cristianismo e as religiões, publicado em 1997.[28] Afirma-se que “somente na Igreja, que está em continuidade histórica com Jesus, pode-se viver plenamente seu mistério. Daí a necessidade iniludível do anúncio de Cristo por parte da Igreja”[29].
Num tempo marcado pela dinâmica do pluralismo religioso e pelo desafio imprescindível do diálogo, determinados documentos emitidos pelo magistério eclesiástico acabam provocando perplexidade ou dúvidas com respeito às reais intenções de abertura anunciadas pela igreja católica.[30] A presença intrigante de uma “dupla linguagem” foi apontada com propriedade pelo teólogo indiano Michael Amaladoss: “Por um lado, o Papa convida os líderes de outras religiões a se reunirem para orar pela paz. Por outro, o Vaticano tacha as outras religiões de objetivamente deficientes”[31]. Não há como manter sustentando na prática missionária um tipo de linguagem beligerante e agressiva com respeito às outras religiões, ou mesmo afirmando, ainda que com boa intenção, que as religiões são destinadas a encontrar o seu remate no cristianismo e na igreja. Não se pode negar o lugar e o valor da convicção e da identidade na dinâmica evangelizadora, mas há que estar atento ao risco de querer impor aos outros a nossa própria convicção, ferindo radicalmente o espírito do diálogo e a integridade do interlocutor, enquanto portador de um mistério irredutível. Há que saber respeitar a “singularidade” e “originalidade” das outras tradições religiosas, superando uma posição recorrente no campo católico-romano que tende a desconhecer ou relativizar o que as religiões têm de mais íntimo, reduzindo sua positividade à sua potencialidade de abertura ao cristianismo.
Como lembrou Paul Ricoeur, “há algo de potencialmente intolerante na convicção”[32]. Infelizmente, ao longo dos séculos, Jesus Cristo foi muitas vezes invocado para justificar práticas de intolerância e violência. Há hoje um reconhecimento cada vez mais evidenciado de que uma tal conduta rompe radicalmente com o sentido libertador dos gestos e prática de Jesus[33]. O seguimento de Jesus provoca não a “violência da convicção”, mas a “não violência do testemunho”[34]. Nesta perspectiva, a dinâmica evangelizadora ganha um novo significado, ou seja, o de anunciar e antecipar na história os valores essenciais do Reino de Deus. A igreja apresenta-se como servidora do Reino de Deus, que envolve igualmente os membros de outras tradições religiosas, que dele participam mediante o exercício da fé e do amor[35]. A igreja é sacramento do reino de Deus, universalmente presente na história, mas esse fato “não implica necessariamente que ela exerça uma atividade de mediação universal da graça em favor dos membros das outras tradições religiosas que entraram no reino de Deus respondendo ao convite de Deus pela fé e pelo amor”[36].
A missão evangelizadora ganha uma compreensão amplificada em sentido mais pluralista: uma missiologia reinocêntrica. O compromisso em favor do anúncio de Jesus Cristo vem interpretado como “evento global”, não circunscrito apenas à proclamação verbal de um complexo doutrinal, mas envolvendo o exercício de comunicação de uma pessoa que é mistério que dá vida. Ganha aqui centralidade o estilo de vida de Jesus, o seu ideal, o sentido de sua existência, os valores que marcaram o seu projeto de vida voltado para o Reino de Deus. É dando testemunho dos valores do Reino com o seu ser e agir que a igreja traduz fidelidade ao seguimento de Jesus e consegue confirmar sua credibilidade no tempo atual.
Um fundamental desafio para o nosso tempo de globalização, apontado por Johan Baptista Metz, relaciona-se à “ecumene da compaixão”[37]. O problema do sofrimento, enquanto realidade dolorosa, crescente e universal, emerge hoje como eixo estruturador e base para um novo entendimento entre as religiões da terra. O impulso de solidariedade e compaixão em favor dos pequenos e de denúncia contra as forças necrófilas da sociedade mundial torna-se um imperativo para as religiões. Isto significa para as igrejas cristãs em particular o desafio de acionar a memória ativa e perigosa de Jesus de Nazaré, cujo olhar decisivo recaiu não sobre os pecados dos humanos, mas sobre a dor dos outros, sobretudo dos excluídos. Para Jesus, o pecado mais doloroso relacionava-se ao “refuto da participação na dor dos outros”, ou seja, à incapacidade de comoção das entranhas em favor de uma nova solidariedade. A dinâmica missionária e evangelizadora não pode deixar de se contagiar por este fundamental desafio de uma “ecumene da compaixão”.
Uma tal perspectiva missiológica revela-se sintonizada e aberta aos desafios fundamentais do diálogo inter-religioso. A dinâmica reinocêntrica convoca a igreja para o exercício permanente de humildade e abertura. Rompe-se o círculo do eclesiocentrismo e instaura-se uma nova disposição de escuta e abertura à interlocução da alteridade. As outras tradições religiosas são reconhecidas como co-participantes da viagem comum e fraterna em direção ao horizonte sempre maior do Reino como mistério. O Reino de Deus, enquanto destino misterioso da criação e do humano, suscita uma sensibilidade nova ao mundo da alteridade. Trata-se de uma abertura que não é fácil, mas que é reveladora de dimensões inusitadas e fundamentais para o crescimento da identidade. A experiência da alteridade provoca “alteração” no sujeito, desinstalando-o de uma segurança aparentemente firme, mas frágil por ser irreal. Não há caminho possível de encontro verdadeiro com a identidade no mundo plural senão pela “desvio” da alteridade. Como assinala Carlos Palácio, “só quando somos capazes de estarmos diante do ´outro` como diante de um mistério irredutível a nós mesmos podemos ter certeza de ´ver` e ´escutar` em verdade e em profundidade”[38].
O projeto missionário, quando realmente imbuído pelo espírito do diálogo, ganha um novo sentido e uma nova perspectiva. O missionário deixa de ser o exclusivo portador de uma palavra e depositário de uma verdade que lhe é particular, tornando-se mais humilde e receptivo à dinâmica da alteridade. A percepção e construção de sua identidade passam agora pela irrigação da interlocução dos outros e de suas verdades. O diálogo aparece, assim, não apenas como uma exigência de promover e respeitar a liberdade do interlocutor (DM 18), mas sobretudo como uma “exigência de respeito aos caminhos misteriosos de Deus no coração do homem”[39].
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[1] PAULO VI, A evangelização no mundo contemporâneo, 2 ed. Petrópolis, Vozes, 1975, n. 14 (Exortação apostólica Evangelii nuntiandi).
[2] Anthony Giddens, Para além da esquerda e da direita, São Paulo, Unesp,1995, 13 e 101.
[3] Clifford Geertz, Nova luz sobre a antropologia, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001, 158.
[4] Peter Berger, Una gloria remota. Avere fede nell´epoca del pluralismo, Bologna, Il Mulino, 1994, 48.
[5] Peter Berger & Thomas Luckmann, Modernidade, pluralismo e crise de sentido, Petrópolis, Vozes, 2004, 37-74. Para esses autores, “os projetos restauradores de reconstituição de um ´mundo curado`incluem quase sempre a supressão ou, ao menos, a limitação do pluralismo – e com boas razões: o pluralismo coloca sempre alternativas diante dos olhos”: Ibidem, 58.
[6] Ibidem, 73.
[7] Claude Geffré, Croire et interpréter, Paris, Cerf, 2001, 9. Para Geffré, o pluralismo religioso “pode ser considerado como um destino histórico permitido por Deus, cuja significação última nos escapa”: Ibidem, 95.
[8] Pierre Sanchis, A graça e a gratidão, in: Teoria & Sociedade. Número especial. Belo Horizonte, UFMG, maio de 2003, 167; Danièle Hervieu-Léger, Le pèlerin et le converti, Paris, Flammarion, 1999, 260.
[9] Henri Pena-Ruiz, Qu´est-ce la laïcité? Paris, Gallimard, 2003, 71-76.
[10] JOÃO PAULO II, Tertio millennio adveniente, São Paulo, Paulinas, 1994, nº 25 (Carta apostólica de João Paulo II sobre a preparação para o ano 2000).
[11] Secretariado Para os Não-Cristãos, A Igreja e as outras religiões, São Paulo, Paulinas, 2001, nº 41 (Diálogo e Missão)
[12] Dentre os teólogos católicos que defendem uma tal perspectiva cf. Jacques Dupuis, Verso una teologia cristiana del pluralismo religioso, Brescia, Queriniana, 1997, 518-520; Claude Geffré, De Babel à Pentecôte, Essais de théologie interreligieuse, Paris, Cerf, 2006, 94 e 137; Edward Schillebeeckx, Umanità la storia de Dio, Brescia, Queriniana, 1992, 92; Roger Haight, Jesus, símbolo de Deus, Petrópolis, Vozes, 2003, 455-456.
[13] Claude Geffré, De Babel à Pentecôte, 137. Essa questão encontra resistências no âmbito da magistério eclesiástico: veja a crítica da CDF ao pluralismo religioso de iure (ou de princípio) na Declaração Dominus Iesus 4. E também: Walter Kasper & Daniel Deckers, Al cuore della fede, Milano, San Paolo, 2009, 275-276. Nessa obra, Kasper assinala que uma tal perspectiva “não é conciliável nem com a fé cristã nem com as religiões judaica e muçulmana”, uma vez que essas três tradições religiosas vêm animadas por marcada pretensão ou exigência de universalidade.
[14] Walter Kasper, L´unica chiesa di Cristo, in: Il Regno-Attualità 4 (2001) 130.
[15] JOÃO PAULO II, Ut unum sint, São Paulo, Paulus, 1995, nºs 13 e 14.
[16] Pontificio Consiglio per il Dialogo Interreligioso, Il dialogo interreligioso nel magistero pontificio, Città del Vaticano, Libreria Editrice Vaticana, 1994, 395. O papa retoma uma expressão que havia empregado em 1980, em Mainz (Alemanha), quando diante de um público judeu falou sobre a irrevogabilidade da primeira aliança: Norbert Lohfink, L´alleanza mai revocata, Brescia, Queriniana, 1991, 9.
[17] Claude Geffré, Croire et interpréter, 143.
[18] Como assinala Jacques Dupuis, “a prioridade do anúncio em relação às outras atividades não deve, entretanto, ser entendida como se fosse uma prioridade de ordem temporal, mas lógica e ideal. O modo de proceder dependerá das circunstâncias concretas”: Verso una teologia cristiana del pluralismo religioso, 489.
[19] José Antonio Pagola, Jesús aproximación histórica, 8 ed, Madrid, PPC, 2008, 255.
[20] Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso, Diálogo e anúncio, Petrópolis, Vozes, 1991, nº 83 (sua sigla: DA).
[21] Jacques Dupuis, Verso una teologia cristiana del pluralismo religioso, 472; PCDI. Diálogo e anúncio, nº 29.
[22] Claude Geffré, De Babel à Pentecôte, 114; Jacques Dupuis, Verso una teologia cristiana del pluralismo religioso, 421; Id. Il cristianesimo e le religioni, Brescia, Queriniana, 2001, 313.
[23] Djalâl-od-Dîn Rûmî, Mathnawî. La quête de l´Absolu, Paris, Rocher, 1990, 161 (M 1 1741). E no livro III, Rûmî assinala: “Não busque a água, mas torne-se sedento, para que a água possa jorrar de alto a baixo” (M III 3212). O mistério de Deus está sempre aí: basta educar o olhar para captar a sua presença amorosa.
[24] Miguel Marcello Quatra, Regno di Dio e missione della chiesa nel contesto asiatico. Uno studio sui documenti della FABC (1970-1995), Romae 1998, Dissertatio ad Doctoratum in Facultate Missiologiae Pontificiae Universitatis Gregorianae, 520. Ver também 321-340.
[25] Ibidem, 521. Para o teólogo vietnamita Peter Phan, da Georgetown University, a missão eclesial ganha uma modalidade peculiar quando em seu fulcro encontra-se o reino de Deus. Ele vem entendida não só como missio ad gentes, mas também como “missio inter gentes et cum gentibus”: Peter Phan, Salvezza universale, identità cristiana, missione della chiesa, in: Adista-documenti 100 (2009) 4.
[26] Federação das Conferências Episcopais da Ásia (FABC), O que o Espírito diz às Igrejas, in: Sedoc 33 (2000) 42 e 46 (Documento de síntese da Federação das Conferências Episcopais da Ásia). Para um aprofundamento dessa questão cf. Federazione delle Conferenze Episcopali Asiatiche (1970-1995). Enchiridion. Documenti della Chiesa in Asia, Bologna, EMI, 1997; Jose Kuttianimattalhil, Practice and Theology of Interreligious Dialogue, Bangalore, Kristu Jyoti Publications, 1998.
[27] Irmãzinhas de Jesus, O Renascer do povo Tapirapé. Diário das Irmãzinhas de Jesus de Charles de Foucauld (1952-1954), São Paulo, Salesiana, 2002.
[28] Comissão Teológica Internacional, O cristianismo e as religiões, São Paulo, Loyola, 1997.
[29] Ibidem, 30 (nº. 49c).
[30] Michael Amaladoss, Dificultades del dialogo con las religiones orientales, in: Iglesia Viva 208 (2001) 7-8.
[31] Michael Amaladoss, Religiões: violência ou diálogo? in: Perspectiva Teológica 34 (2002) 189.
[32] Paul Ricoeur, Em torno ao político, São Paulo, Loyola, 1995,183 (Leituras 1).
[33] Christian Duquoc, Du dialogue inter-religieux, in: Lumière & Vie 222 (1995) 72.
[34] Paul Ricoeur, op.cit, 187.
[35] Os teólogos asiáticos reagem com razão a certa pretensão teológica de querer sempre enquadrar os participantes de outras tradições religiosas no “mistério da igreja”. Na realidade, a recepção da graça salvífica não acontece para eles apesar de sua religião, mas nos símbolos e rituais de sua própria tradição: “é através deles que encontram a Deus, e tal encontro não é infecundo”: Michael Amaladoss, Insieme verso il Regno.Teologia asiatica emergente, in: Rosino Gibellini (Ed), Prospettive teologique per il XXI secolo, Brescia, Queriniana, 2003, 156.
[36] Jacques Dupuis, Verso una teologia cristiana del pluralismo religioso, 476.
[37] Johann Baptist Metz, Proposta di programma universale del cristianesimo nell´età della globalizzazione, in: Rosino Gibellini (Ed), Prospettive teologique per il XXI secolo, 389-402.
[38] Carlos Palácio, Para uma pedagogia do diálogo, in: Perspectiva Teológica 35 (2003) 371-372.
[39] Claude Geffré, Croire et interpréter, op.cit., 127.
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