terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O Jesus de Pagola Resenha

Jesus, aproximação histórica, por José Antonio Pagola. Vozes, Petrópolis, 1 vol. Br., 160 x 230 mm, 651 p. – ISBN 978-85-326-4017-8

 

Trata-se de uma excelente novidade editorial da Vozes. Refere-se à nona edição de um livro que vem se tornando bestseller na Espanha, com traduções ao Catalão (Claret), Euskera (Idatz), Italiano (Borla) e Inglês (Paperback). A primeira edição do livro foi publicada na Espanha em setembro de 2007 pela editora PPC (dos religiosos marianistas) e logo alcançou grande sucesso, chegando à oitava edição em fevereiro de 2008. Foi uma acolhida “muito mais ampla e positiva” que a esperada pelo próprio autor, José Antonio Pagola, com formação em teologia e ciências bíblicas pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Pontifício Instituto Bíblico de Roma e Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém. A obra provocou igualmente criticas negativas e reações do episcopado espanhol. A primeira delas partiu de Mons. Demetrio Fernández, bispo de Tarazona, que em carta pastoral de dezembro de 2007 assinalou que a “tentação ariana” assoma a obra em seu conjunto. Veio em seguida a apreciação crítica de José Rico Pavés, diretor do Secretariado Episcopal para a Doutrina da Fé da Conferência Episcopal Espanhola (CEE), que sinaliza o risco de um “dissenso sutil e daninho” na investigação histórica realizada por Pagola sobre o ensinamento de Jesus. Todas as reações culminaram na nota de clarificação sobre o livro feita pela Comissão Episcopal para a Doutrina da Fé da CEE, publicada em junho de 2008, que apontou deficiências da obra tanto no plano metodológico como doutrinal. A preocupação maior relacionava-se ao que consideravam uma “apresentação reducionista de Jesus como um mero profeta” e a “negação de sua consciência filial divina”, além de outras questões conexas.

Em defesa da obra posicionou-se o então bispo da diocese de San Sebastián, Juan Maria Uriarte. Ali atuava Pagola como vigário episcopal até o ano 2000 e permanecia atuando como diretor do Instituto de Teologia e Pastoral. Diante da situação crítica, Uriarte solicita a dois qualificados teólogos e a um bispo teólogo a avaliação da obra. Com a sugestão de algumas modificações, a obra ganha o Nihil Obstat de Uriarte e chega assim à sua nona edição, em junho de 2009. É essa versão que sai agora publicada em português. Dentre as mudanças observadas, verifica-se que esta nona edição ganhou uma apresentação mais detalhada e uma significativa ampliação do capítulo final, que trata o tema do aprofundamento da identidade de Jesus.

Na apresentação da obra, Pagola apresenta as razões de sua investigação histórica sobre Jesus. Sua motivação maior é captar o segredo que “se encontra neste fascinante galileu, nascido há dois mil anos numa aldeia insignificante do Império romano e executado como um malfeitor perto de uma antiga pedreira, nos arredores de Jerusalém, quando beirava os 30 anos” (p.11). Lança a questão: “Quem foi este homem que marcou decisivamente a religião, a cultura e a arte do Ocidente chegando até a impor inclusive seu calendário?”(p.11). O objetivo do autor é lançar-se numa séria investigação, a mais rigorosa possível, sobre essa figura fascinante: sobre sua vida, suas lutas e a força e originalidade de sua atuação na história. Para tal aproximação histórica, o autor fez recurso ao rico instrumental à disposição na investigação moderna, e sempre em perspectiva interdisciplinar. Buscou igualmente apresentar seu trabalho numa linguagem simples e acessível, o que muito favorece sua leitura que é agradável e convidativa. Sente-se nessa nova apresentação uma preocupação do autor em explicitar sua intenção de concentrar-se na investigação histórica sobre Jesus, o que não significa abafar o vigor de sua confissão cristã que afirma Jesus como “verdadeiro Deus e verdadeiro homem” (p. 15). Indica claramente que seu propósito não é avançar pelos “complexos caminhos da gestação e desenvolvimento da fé cristológica” (p. 26 e p. 363, n. 2).

Como assinala Pagola, o livro nasceu de sua fé e amor a Jesus Cristo, e estimulado por essa mesma fé buscou narrar a história de Jesus de forma viva e significativa para os tempos atuais. Direciona o livro não apenas para os que se confessam cristãos, mas também para aqueles que ignoram sua realidade ou aqueles que se afastaram ou desencantaram com a igreja e buscam caminhos alternativos de vida (p. 26- 27). Sua intenção é favorecer a aproximação histórica de Jesus “estudando sobretudo a lembrança que ele deixou nos seus” (p.19). E esta aproximação é contagiante: “É difícil aproximar-se dele e não sentir-se atraído por sua pessoa. Jesus traz um horizonte diferente para a vida, uma dimensão mais profunda, uma verdade mais essencial” (p. 22).

Os treze primeiros capítulos da obra buscam favorecer essa aproximação histórica de Jesus, mediante seus traços mais importantes. Tais capítulos facultam aos cristãos conhecer de forma mais palpável os traços humanos daquele em quem Deus revelou-se de modo único e singular: “comover-se-ão ao ver que Deus encarnado conviveu entre os homens fazendo o bem, ´curando a vida`, ´defendendo os últimos`, ´amando a mulher`e procurando a verdadeira dignidade” (p. 24). E aos demais, a possibilidade de “conhecer melhor um homem que marcou a história da humanidade” (p. 23).

Nos dois primeiros capítulos Pagola busca situar Jesus em seu contexto histórico, enquanto judeu da Galiléia e vizinho de Nazaré. Foi sob o império de Roma que viveu esse galileu de nome Yeshua, entre pessoas do campo e num ambiente de viva presença religiosa. Ele “cresceu no meio da natureza, com os olhos muito abertos para o mundo que o rodeava” (p.64), e isso se expressa na abundância de imagens que emprega em sua fala, adornada com elementos de seu espaço circundante: os pássaros do céu, as anêmonas das colinas de Nazaré, as ramas das figueiras, a beleza do sol e a força das chuvas. O seu estilo de vida difere dos ascetas do deserto, pois vem marcado pela vontade de vida e pelo toque festivo. A sua experiência de fé foi desdobrando-se de sua vida simples na Galileia, no clima religioso propício de sua aldeia. Ali foi percebendo que “Deus é o ´Pai do céu`. Não está ligado a um lugar sagrado. Não pertence a um povo ou a uma raça concretos. Não é propriedade de nenhuma religião. Deus é de todos” (p. 73-74). Ali cresceu apaixonadamente em seu coração o amor pelo reino de Deus, que se tornará a razão central de sua vida e atuação (p. 83).

 Nos capítulos terceiro e quarto, apresenta Jesus como buscador de Deus e profeta do reino de Deus. Assim como o profeta João Batista, que o precede, Jesus busca captar a vontade de Deus, mas sua perspectiva é distinta. Seu estilo de vida é festivo, marcado pelo tônus da alegria. Vai dedicar-se “a algo que João nunca fez: curar os enfermos que ninguém curava, aliviar a dor de pessoas abandonadas, tocar leprosos que ninguém tocava, abençoar e abraçar crianças.” (p. 106). Enquanto a missão do Batista estava vinculada à questão do pecado, o projeto de Jesus tinha como objetivo aplacar o sofrimento dos mais excluídos e necessitados, anunciando-lhes uma Boa Notícia: “É mais determinante em sua atuação  eliminar o sofrimento do que denunciar os diversos pecados das pessoas” (p. 213). No cerne de sua atuação encontra-se a “paixão pelo reino de Deus”. Trata-se do núcleo medular de sua pregação, da convicção mais profunda que o anima e o segredo de sua motivação existencial. E essa mensagem do reino volta-se privilegiadamente para os pobres. Jesus declara-os felizes porque Deus é amigo da vida e quer fazer do seu reino uma manifestação da compaixão de Deus que rompe com a situação de miséria e opressão e anuncia uma perspectiva nova de esperança e alegria (p. 130-131). Esta é a razão do impacto exercido pela mensagem de Jesus desde o início: “Aquela maneira de falar de Deus provoca entusiasmo nos setores mais simples (...). Era o que eles precisavam ouvir: Deus se preocupa com eles. O reino de Deus que Jesus proclama corresponde ao que eles mais desejam: viver com dignidade” (p. 124). Esse reino que vem, longe de ser uma expressão de poderio ou glória, é a manifestação efetiva da bondade e compaixão de Deus, que removem as entranhas.

Nos capítulos quinto e sexto, aparece Jesus como o poeta da compaixão e curador da vida. É à linguagem dos poetas que Jesus recorre para expressar a sua experiência e compreensão do reino de Deus. São ricas as imagens, metáforas e parábolas que utiliza para traduzir de forma simples, clara e acessível o seu projeto de vida. O que anuncia é um Deus compassivo, inigualável metáfora para expressar o seu mistério de vida. E o autor indaga: “Será esta a melhor metáfora de Deus: um pai acolhendo de braços abertos os que andam ´perdidos` fora de casa e suplicando a todos os que o contemplam e ouvem que acolham com compaixão a todos?” (p. 164). Com base na parábola do bom samaritano, Pagola sinaliza que “a melhor metáfora de Deus é a compaixão para com um ferido”, e que o reino de Deus acontece onde quer que “as pessoas atuam com misericórdia” (p. 174). Jesus é também curador da vida: alguém que contagia saúde e vida, e junto a ele não há lugar para a tristeza ou solidão. A acolhida e o cuidado são traços singulares de sua atuação. Na base dessa força curadora está a dinâmica de sua própria pessoa: “seu amor apaixonado à vida, sua acolhida afetuosa a cada enfermo ou enferma, sua força para regenerar a pessoa a partir de suas raízes, sua capacidade de transmitir sua fé na bondade de Deus. Seu poder de despertar energias desconhecidas no ser humano criava as condições que tornavam possível a recuperação da saúde” (p. 202).

Os traços de Jesus como defensor dos últimos e amigo da mulher aparecem nos capítulos sétimo e oitavo. A Boa Notícia do reino de Deus toca de modo particular os mais sofridos e pequeninos. Essa é a grande revolução trazida por Jesus, inaugurando a centralidade do “código da compaixão”. Com base na parábola do juízo final (Mt 25,31-46), Pagola indica que “o caminho que conduz a Deus não passa necessariamente pela religião, pelo culto ou pela confissão de fé, mas pela compaixão com os ´irmãos pequenos`”. Conclui dizendo que “a religião não detém o monopólio da salvação; o caminho mais acertado é a ajuda ao necessitado. Por ele caminham muitos homens e mulheres que não conhecem Jesus” (p. 235). Em seu livro, Pagola confere um importante lugar para as mulheres  no movimento de Jesus. Foram verdadeiras “discípulas de Jesus”, estando presentes e atuantes desde a Galileia até Jerusalém. Elas “fizeram parte do grupo que seguia Jesus desde o início”. Algumas são nomeadas, como Maria de Mágdala, que ocupa um lugar de destaque, sendo sua melhor amiga (p. 280-281). O autor assinala a presença delas na última ceia e o seu lugar protagônico na fé pascal (p. 276-277).

Nos três capítulos seguintes, nono, décimo e décimo primeiro, abordam-se os temas de Jesus como mestre de vida, criador de um movimento renovador e crente fiel. Jesus foi um “mestre pouco convencional”. Para ele não é a lei que está no centro, mas o amor. Em sintonia com toda a reflexão anterior, Pagola indica que o reino de Deus anunciado por Jesus exige, antes de tudo, fidelidade ao Deus da Vida e da Aliança. O importante “não é contar com pessoas observantes da leis, mas com filhos e filhas que se pareçam com Deus e procurem ser bons como ele o é” (p. 299). O que Jesus criou, de fato, foi um “movimento renovador”, um “movimento de homens e mulheres saídos do povo” que, em sua companhia, firmam a “consciência da proximidade salvadora de Deus” (p. 323). Seus seguidores são chamados a “compartilhar sua paixão por Deus e sua disponibilidade ao serviço de seu reino” (p. 340). Na edição anterior do livro havia uma passagem que foi retirada na nova edição e que dizia “que Jesus não pôde nem quis colocar em marcha uma instituição forte e organizada, mas um movimento curador que foi transformando o mundo numa atitude de serviço e amor. Não há como explicar a atuação profética de Jesus sem captar o mistério de sua relação amorosa com Deus. ”. É Deus que está no centro de sua vida.  Para Jesus, Deus não se reduz a uma teoria, mas é uma Presença que o transforma interiormente e faculta a tonalidade de sua vida de abertura e compromisso com os outros. A Deus, como Pai, dedica sua oração nos momentos cruciais de sua caminhada. Jesus sempre se dirige a Deus como “Pai”, com quem partilha confiança e intimidade (p. 383 e 392). É o Pai do céu, que “não está ligado ao templo de Jerusalém nem a nenhum outro lugar sagrado. É o Pai de todos, sem discriminação nem exclusão alguma. Não pertence a um povo privilegiado. Não é propriedade de uma religião. Todos podem invocá-lo como Pai” (p. 392). O mistério de Deus é vivido por Jesus de forma peculiar: nele encontra o “melhor amigo do ser humano” e o “amigo da vida”. Estabelece também com ele uma peculiar “intimidade filial”. Uma das “deficiências” indicadas pela crítica da CEE contra o livro de Pagola foi a carência de uma explicitação da consciência filial divina de Jesus. O que o autor sublinha em seu livro, em sintonia com o seu propósito de se fixar no âmbito da investigação histórica, é que “Jesus mostra-se muito discreto sobre sua vida interior” (p. 363). Retoma a questão mais adiante assinalando que “ao que parece, Jesus nunca se pronunciou abertamente sobre sua pessoa. A questão de sua messianidade respondia de forma ambígua” (p. 452). Na edição anterior tinha sido mais contundente: “Em nenhum momento manifesta pretensão alguma de ser Deus: nem Jesus nem seus seguidores em vida utilizaram o titulo de ´Filho de Deus` para confessar sua condição divina”.

Nos capítulos doze, treze e quatorze o autor desenvolve os temas da morte e ressurreição de Jesus. Pagola indica em sua obra que o final trágico encontrado por Jesus foi resultado de sua vida e luta em favor do reino de Deus: “Não foi uma surpresa. Fora sendo gestado desde que ele começou a anunciar com paixão o projeto de Deus que ele trazia no coração” (p. 399). Foi alguém “coerente até o final”, um “mártir do reino de Deus”. Segundo Pagola, a investigação histórica indica que a morte de Jesus não pode ser interpretada numa perspectiva sacrificial. Na verdade, “nunca se vê Jesus oferecendo sua vida como uma imolação ao Pai para obter dele clemência para o mundo. O Pai não precisa que ninguém seja destruído em sua honra. O amor que ele tem por seus filhos é gratuito, seu perdão é incondicional” (p. 419). Essa posição do autor também causou dificuldade para seus opositores. Na apresentação de sua obra, Pagola sinaliza que não quis concluir o seu livro com a perspectiva da cruz. Argumenta que “não quis deixar os leitores confusos diante de um Jesus executado cruelmente num patíbulo. Nem tudo terminou ali. Se a crucifixão tivesse sido a última lembrança que restou de Jesus, não teriam escrito os evangelhos nem teria nascido a Igreja” (p.24). Daí a centralidade da ressureição em sua obra, mas o autor sublinha que sua abordagem do tema foi marcada pela fidelidade ao rastreamento histórico das fontes (p. 25). Na linha dessa abordagem, a ressurreição não significou um retorno de Jesus “à sua vida anterior na terra” (p. 495). Nao foi, propriamente, um “fato histórico” constatável e verificável, mas um “fato real”, que habitou e marcou a vida de seus discípulos, e para os que crêem, um fato decisivo na história humana (p. 497). Trata-se de um “fato real” pois a fé dos seguidores de Jesus não se fundou num vazio. De fato, “algo aconteceu neles. Todas as fontes o afirmam: viveram um processo que não só reavivou a fé que tinham em Jesus, mas os abriu para uma experiência nova e inesperada de sua presença entre eles” (p. 499).

No último capitulo, Pagola desenvolve o tema da identidade de Jesus. Seguindo o critério estabelecido por James Dunn, segundo o qual o objetivo realista de uma pesquisa histórica sobre Jesus é o “Jesus recordado”, o autor vai traçar as repercussões do impacto da ressurreição nos seguidores mais próximos de Jesus. Sob o impacto desse “fato real”, é toda uma releitura da vida e significado de Jesus que vem processada: “Aquela vida surpreendente e cativante que conheceram de perto e cuja memória guardam viva no coração adquire agora uma profundidade nova”. Pagola defende, assim, a idéia de que a “lembrança” traduz o “ponto de partida da fé cristológica” (p. 528).

No epílogo da obra, Pagola adverte sobre a importância de situar Jesus no centro do cristianismo, mas evitando “reduzir sua pessoa a uma sublime abstração” (p. 566). Driblando um dos riscos mais ameaçadores para o cristianismo atual, que é o monofisismo, o autor busca sublinhar os traços do Jesus profeta que percorreu com coragem os caminhos da Galileia. Nada mais problemático para o cristianismo do que um Jesus sem reino e Pagola está muito atento a isto. É para o reino que Jesus vive, é ele que motiva a sua paixão e dá significado à sua vida. Assinala com precisão que “o que ocupa o lugar central na vida de Jesus não é Deus simplesmente, mas Deus com seu projeto sobre a história humana. Jesus não fala de Deus simplesmente, e sim de Deus e seu reino de paz, compaixão e justiça” (p. 568). São lindas reflexões que trazem à tona o percurso reflexivo original da cristologia da libertação latino-americana. O tema do seguimento de Jesus entra no final, coroando com êxito a reflexão de Pagola. O que Jesus deixou atrás de si foi o projeto de dar continuidade ao seu sonho de fraternidade. Não “pensou numa instituição dedicada a garantir no mundo a verdadeira religião. Jesus pôs em marcha um movimento de ´seguidores` que se encarregassem de anunciar e promover seu projeto do ´reino de Deus` (...). Por isso, não há nada mais decisivo para nós do que reativar sempre de novo, dentro da Igreja, o seguimento fiel à pessoa de Jesus” (p. 569).

Não há como ler este livro de Pagola sem se emocionar. Através do recurso de uma linguagem simples mas rigorosa consegue com felicidade apresentar o itinerário histórico de Jesus e provocar as entranhas de compaixão. É uma obra grandiosa e vai, certamente, deixar rastros importantes na reflexão sobre Jesus Cristo e a dinâmica de seu seguimento na história. Muito acertada e pertinente a decisão da editora Vozes em facultar o seu acesso aos leitores brasileiros.

 

(Publicado na REB, v. 70, n. 280, outubro 2010, pp. 974-978)

domingo, 5 de dezembro de 2010

O pluralismo religioso como um dom de Deus

O pluralismo religioso como um dom de Deus

 

Faustino Teixeira

PPCIR-UFJF

 

  1. O pluralismo religioso é um dom de Deus e revela as riquezas singulares de sua sabedoria infinita e multiforme.
  2. Antes de expressarem uma busca tateante de Deus, as religiões já foram acolhidas por Deus na dinâmica de sua infinita abertura e misericórdia. Não são os sedentos que buscam a água, mas a água que busca os sedentos.
  3. As religiões são “fragmentos” que participam de uma sinfonia cujo horizonte é marcado pela tônica do inacabamento. Não há possibilidade de uma única tradição pretender-se detentora da posse da verdade.
  4. A verdade que anima a caminhada das religiões não é algo que se apropria como uma garantia assegurada, mas um mistério sempre aberto pelo qual as religiões devem deixar-se possuir.
  5. As religiões são marcadas por limites e ambigüidades, mas estão igualmente envolvidas pela maravilhosa liberdade do Espírito, que indica caminhos que são misteriosos e inusitados.
  6. Cada religião é portadora de um enigma que é irredutível e irrevogável, não podendo ser entendida como um marco de espera que encontra o seu acabamento ou remate numa outra tradição religiosa. A riqueza das religiões não é algo que se encontra fora delas, como se o seu valor estivesse na sua capacidade de abrir-se positivamente àquilo que ignoram.
  7. Desconhecer esse enigma ou mistério que envolve cada tradição religiosa é deixar de honrar a sua especificidade única e macular a riqueza intransponível da alteridade.
  8. A defesa de uma assimetria de princípio entre as religiões compromete a dinâmica misteriosa dos dons de um Deus que abraça a diversidade.
  9. A experiência de fé num Deus criador, que está presente e vivo em cada domínio do planeta, implica em reconhecer sua presença viva e acolhedora entre as diversas tradições religiosas.
  10. Deus atua na história através de mediações distintas e diversificadas. Não há razão plausível para concentrar a mediação fundamental da presença salvífica de Deus numa única instância ou “porta”, mas há que perceber outras formas dessa mediação, que podem ser uma pessoa, mas também um livro, um evento, um ensinamento ou uma práxis.
  11. A acolhida do pluralismo de princípio é uma condição essencial para o verdadeiro diálogo interreligioso. Não há como dialogar verdadeiramente com o outro desconhecendo a riqueza e o valor irredutível de sua dignidade religiosa.
  12. Fixar-se numa única tradição religiosa, excluindo-se da provocação criadora da interlocução da alteridade, é deixar escapar bens preciosos  que irradiam na dinâmica reveladora de Deus, sempre em ação na história.
  13. O reconhecimento da presença do Mistério Maior nos outros confere uma nova perspectiva à identidade, facultando a abertura para novas e enriquecedoras dimensões da própria fé.
  14. Longe de enfraquecer a fé, o diálogo verdadeiro abre horizontes novos e fundamentais para a sua afirmação num mundo plural.
  15. A acolhida do pluralismo de princípio requer não apenas o diálogo entre as religiões, mas também a abertura e aprendizado com outras formas de opções espirituais, sejam  religiosas, a-religiosas ou pós-religiosas.

 

 

El pluralismo religioso como don de Dios

 

1. El pluralismo religioso es un don de Dios, y revela las riquezas singulares de su sabiduría infinita y multiforme.

2. Aunque expresan una búsqueda a tientas de Dios, las religiones son acogidas en sí mismas por Dios en la dinámica de su infinita apertura y misericordia. No es sólo que los sedientos buscan agua, sino que el agua busca a los sedientos.

3. Las religiones son «fragmentos» en medio de una sinfonía cuyo horizonte lleva la marca del inacabamiento. No es posible que una tradición pretenda estar solamente ella en posesión de la verdad.

4. La verdad que anima el caminar de las religiones no es algo que pueda ser apropiado como una garantía asegurada, sino un misterio siempre abierto, por el que las religiones deben dejarse poseer.

5. Las religiones tienen límites y ambigüedades, pero están igualmente asistidas por la maravillosa libertad del Espíritu, que conoce caminos misteriosos e inesperados.

6. Cada religión es portadora de un enigma irreductible e irrevocable, no pudiendo ser entendida como un marco de espera que encuentra su continuidad lógica y su cumplimiento pleno en otra tradición religiosa. La riqueza de las religiones no es algo que se encuentre fuera de ellas, como si su valor consistiese en su capacidad de abrirse positivamente a aquello que ignoran.

7. Desconocer ese enigma o misterio que envuelve a cada tradición religiosa es no honrar su especificidad única, y despreciar la riqueza insuperable de la alteridad.

8. Sostener una asimetría básica entre las religiones -la llamada asimetría de princípio- va contra la dinámica misteriosa de los dones de un Dios que abraza la diversidad.

9. La experiencia de fe en un Dios creador, presente y actuante en todos los pueblos del mundo, implica reconocer su presencia viva y acogedora entre las diversas tradiciones religiosas.

10. Dios actúa en la historia a través de mediaciones distintas y diversificadas. No hay razón pausible para concentrar la mediación fundamental de la presencia salvífica de Dios en una única instancia o «puerta», sino que debemos reconocer otras formas de esa mediación, que pueden ser una persona, pero también unas Escrituras, un acontecimiento histórico, una enseñanza, o una praxis.

11. Aceptar el pluralismo religioso como un valor en sí mismo -el llamado pluralismo de principio-  es una condición esencial para el verdadero diálogo inter-religioso. No es posible dialogar verdaderamente con el otro desconociendo la riqueza y el valor irreductible de su dignidad religiosa.

12. Limitarse a una única tradición religiosa, excluyéndose de la provocación creativa del diálogo con la alteridad, conlleva la pérdida de las riquezas preciosas que irradia la dinámica reveladora de Dios, que actúa en la historia siempre y en todo lugar.

13. El reconocimiento de la presencia del Misterio Mayor en los otros confiere una nueva perspectiva a la identidad, posibilitando la apertura a nuevas y enriquecedoras dimensiones de la propia fe.

14. Lejos de debilitar la fe, el diálogo verdadero abre horizontes nuevos y fundamentales para su afirmación en un mundo plural.

15. Acoger el pluralismo como un valor por sí mismo, no sólo implica el diálogo entre las religiones, sino también la apertura y la complementariedad hacia otras formas de opciones espirituales, sean religiosas, a-religiosas o pos-religiosas.

(Publicado também em IHU-Notícias, de 14/01/2011:

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=39870 )

 

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

O pluralismo religiso como desafio para a teologia

O pluralismo religioso como desafio para a teologia

 

Faustino Teixeira

PPCIR-UFJF

 

O inclusivismo religioso tem raízes profundas e solidificadas na tradição teológica cristã. É muito difícil romper essa impermeável barreira que obstaculiza a abertura sincera para as outras tradições religiosos, no que elas tem de irredutível e irrevogável. Não há como honrar a singularidade das religiões mantendo uma perspectiva de superioridade, seja explícita ou mais sutil. Nesses últimos decênios temos verificado no âmbito da conjuntura eclesiástica católica uma crescente afirmação de posicionamentos que confirmam essa perspectiva restritiva. Vale mencionar a homilia proferida pelo papa Bento XVI na abertura da Assembléia Especial para o Médio Oriente, em 10 de outubro de 2010. O papa reconhece a presença de uma salvação universal, que passa porém por uma “mediação determinada, histórica: a mediação do povo de Israel, que depois se torna a de Jesus Cristo e da Igreja”. Há uma “porta” definida e necessária para que o evento da salvação aconteça de fato. Essa idéia é recorrente e firmada na tradição católico-romana, com um significativo aporte da reflexão teológica. São poucos os teólogos que se aventuram numa reflexão distinta, e aqueles que o fazem encontram duras barreiras para a continuidade de sua “livre” reflexão. Vivemos, infelizmente, um tempo marcado pela afirmação das identidades, e não da disponibilidade dialogal. O caminho tradicionalmente traçado vai na linha da exigência evangelizadora explícita, ou de uma nova evangelização, para tentar frear a crise que envolve o campo cristão nessa alvorada do terceiro milênio. A recente criação de um Pontifício Conselho para a Nova Evangelização é expressão desse novo momento, como uma exigência que deve animar corações e mentes.

Nós, que acreditamos num pluralismo de princípio caminhamos numa direção distinta. A idéia que nos anima é a do “inacabamento”. Estamos todos envolvidos numa “sinfonia sempre adiada”, para utilizar uma rica expressão de Christian Duquoc. Não há possibilidade de garantia alguma de posse da verdade ou do mistério. A verdade não é algo de que nos apropriamos como garantia, mas um mistério sempre aberto, pelo qual nos devemos deixar possuir (DA 49). Todas as religiões são “fragmentos” animados de forma diversificada por uma Presença Espiritual que é permanente surpresa. Trata-se de uma ilusão imaginar que cada um desses fragmentos está destinado a encontrar o seu acabamento numa dada tradição religiosa. Todos eles estão envolvidos pela maravilhosa liberdade do Espírito, que indica caminhos que são misteriosos e inusitados. Nada mais problemático que defender uma assimetria de princípio. Uma tal assimetria não consegue abarcar a “extraordinária diversidade das tradições” e muito menos honrar a dignidade da diferença. Na perspectiva defendida por aqueles que acreditam numa complementação, realização ou acabamento, o que há de valor nas outras tradições religiosas é sua “capacidade de abrir-se positivamente àquilo que ignoram”. Não se dá aí um respeito à sua identidade única e intransponível.

Para os que defendem um pluralismo de princípio, há uma convicção firmada de que Deus atua na história através de mediações distintas e diversificadas. E isso não prejudica em nada o compromisso que cada um deve assumir com a sua experiência específica de Deus. Como sublinhou Roger Haight, “a experiência cristã do que Deus fez em Jesus Cristo não se afigura diminuída pelo reconhecimento do Deus verdadeiro atuante em outras religiões”. Não há por que concentrar a mediação fundamental da presença salvífica de Deus numa única instância, ou numa única “porta”. O reconhecimento da verdade das religiões implica, necessariamente, uma abertura para percebê-las como canais verdadeiros da presença gratuita e misteriosa de Deus. As religiões são mediadoras da salvação de Deus. Se para o cristianismo a mediação basilar da presença e da salvação de Deus à humanidade vem identificada com a pessoa de Jesus, e isso define existencialmente e confessionalmente a perspectiva cristã, isso não exclui outras formas dessa mediação divina na dinâmica das outras religiões. A mediação pode ser ali um livro, um evento, um ensinamento ou uma práxis. Há, portanto, diversos caminhos de acesso ao Mistério maior, que os cristãos nomeiam como Deus. Há ainda que acrescentar que o reconhecimento da presença do Mistério Maior nos outros confere uma nova perspectiva para a identidade. Não há como firmar a identidade religiosa num tempo plural, excluindo o apelo que vem do mundo do outro. A fé cristã, por exemplo, como mostrou Adolphe Gesché, necessita de uma interface ou de um “lugar fora de sua residência” para o exercício de sua realização. Ela se vê hoje desafiada não apenas pelo diferenciado mundo das religiões, mas também pelo enriquecedor universo das distintas opções espirituais, sejam religiosas ou não.

 

 

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Caminhos de intolerância

Caminhos de Intolerância

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=37487

IHU, 20-10-10

Faustino Teixeira, professor e pesquisador da Universidade Federal de Juiz de Fora, comenta a proibição do uso do véu na França. Faustino Teixeira é graduado em Ciência das Religiões e Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Fez mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e doutorado, na mesma área, pela Pontificia Universidade Gregoriana, de onde recebeu o título de pós-doutor. Atualmente, é professor na Universidade Federal de Juiz de Fora. Entre seus diversos livros publicados, destacamos: Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso (Aparecida do Norte: Santuário, 2008) e Teologia das Religiões: uma visão panorâmica (São Paulo: Paulinas, 1995). Faustino Teixeira seleciona, organiza e edita as Orações inter-religiosas, publicadas semanalmente, sempre às quintas-feiras, no blog do IHU. A entrevista é de Regina Folter e publicada pela revista Livrevista, outubro de 2010.

A lei que proíbe o uso de véu que cubra integralmente o rosto foi aprovada pelo Senado francês na terça-feira, dia 14 de setembro, sob o argumento de que “utilizar um véu num espaço público vai contra a igualdade entre cidadãos porque constitui um atentado à igualdade e ofende a dignidade humana, em especial a da mulher”. Qual é sua opinião a respeito desse argumento? Existe alguma pretensão por detrás da decisão do governo francês?

A questão é bem mais complexa. Envolve a preocupação do governo francês com a presença de uma população muçulmana que já se revela a segunda religião da França, com cerca de 5 milhões de adeptos. É a mais forte presença na Europa. Como indica a socióloga Danièle Hervieu-Léger, estamos diante de um conflito social e cultural “bem mais fundamental ainda, que é o do lugar a ser dado, numa sociedade democrática desestabilizada pelo desemprego, às comunidades imigradas e, portanto ao islã, com o qual elas estão relacionadas”. A religião firma-se para tais comunidades como o “lugar da conquista possível de sua dignidade e da construção de sua individualidade”. Está também em jogo a discussão sobre a laicidade, tema tão caro na França. No final da década de 80, quando a presença socialista era mais hegemônica, defendia-se uma posição bem mais “temperada”, com a defesa de uma laicidade amistosa, não agressiva ou de combate: uma “laicidade mediadora”. Os tempos mudaram com o acirramento ideológico do cenário politico, e o temor relacionado a um “choque de civilizações”. O que vigora em toda a Europa, como bem mostrou Manuel Castells, em artigo no jornalLa Vanguardia(25/09/2010), é um xenofobismo crescente e preocupante, que envolve um “coquetel de intolerância” onde o anti-islamismo é “o principal ingrediente, agora associado ao estigma do terrorismo potencial”.

A recente proibição do niqab, o véu integral, em lugares públicos é uma viva expressão dessa nova “explosão de xenofobia” e de desrespeito à alteridade. A França é o segundo país europeu, seguindo o exemplo da Bélgica, a proceder tal gênero de interdição. Visa-se, oficialmente, a evitar a “dissimulação do rosto no espaço público”, mas o que se pretende é algo mais doloroso… E isto vem ocorrendo em toda Europa. O que mais preocupa é que medidas preocupantes de intolerância vêm ganhando apoio da população. Cerca de 82% dos franceses apoiam a deportação de ciganos, definida no governo deSarkozy. Em cidades com significativa presença muçulmana, como Marselha, a população vem apoiando a proibição das convocatórias dos muezins à oração. Um referendo na Suiça determinou a proibição de novos minaretes, e isso serve de exemplo para os franceses. O veto do niqab e da burqa, que também ocorre na Itália ou prédios públicos da Catalunha, insere-se nessa política mais geral.

Qual é a importância da utilização da burqa ou do niqab para a religião islâmica? O que esses objetos representam para os muçulmanos?

Antes de entrar na questão temos que reconhecer que o mundo muçulmano não é assim um quadro monolítico e homogênio como vem apresentado pelo imaginário cultural e pelo discurso politico das sociedades euro-americanas, mas apresenta uma enorme diversidade histórica, cultural e política, como bem mostrou o pesquisador Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto em brilhante obra sobre a religião e civilização no islã (Santuário, 2010). É também incorreto afirmar, como o faz Samuel Huntington, que a sociedade islâmica é “inóspita” para as concepções liberais ocidentais. Trata-se de uma visão claramente ideologica e preconceituosa. Nada mais empiricamente falso do que identificar o islã com uma “essência fixa” que se reproduz igualmente por toda parte. O que ocorre não é somente uma pluralidade geográfica, étnica e cultural, mas também uma “enorme diversidade nas formas de interpretação, prática e experiência no islã”.

Essa diversidade reflete-se também no âmbito das interpretações e usos desse importante símbolo do islã, que é o véu. Há referências canônicas, expressas no Alcorão, para esse uso: “Dize também às crentes que recatem seus olhares, conservem seus pudores e não mostrem seus encantos naturais, além do imprescindível (…)” (24:31 e também 33:59).

Mas como mostrou Paulo Gabriel, o islã, como outras tradições religiosas, está “em constante processo de atualização e recriação de seus modelos normativos, cujos elementos constitutivos podem ser ressignificados e modificados em cada momento histórico e contexto cultural”. Isso se dá também com o uso do véu: o niqab, que cobre todo o corpo da mulher, com exceção das mãos e dos olhos, é mais utilizado na Arábia Saudita e em boa parted a Península Arábica.

Na França são cerca de 2.000 muçulmanas que utilizam esse traje integral. Já a burqa, que cobre inclusive os olhos com uma gaze de tecido, vem utilizada no Afeganistão. No Irã, o rosto fica à mostra com o chador, que é um longo pano que envolve o corpo da mulher. Já na Síria, Líbano e Turquia, temos a presença do hijab, um lenço que oculta os cabelos, e vem muitas vezes combinado com modernas calças jeans, que realçam as formas femininas. O véu é um símbolo de distinção, um sinal de proteção e de afirmação de dignidade (horma). O significado etimológico do termo hijab é esclarecedor: significa separação, véu de proteção e preservação.

Como as mulheres muçulmanas serão afetadas com a medida? Vão ocorrer mudanças estruturais em suas vidas?

É evidente que uma tal proibição viola a dignidade das mulheres muçulmanas e seu direito de convicção religiosa. Não sem razão, instâncias como a Assembléia Parlamentar do Conselho da Europa e a Anistia Internacional pronunciaram-se contra uma tal decisão, com um argumento semelhante: é algo que fere o direito à liberdade de expressão e de religião das mulheres muçulmanas, para as quais esse símbolo traduz também um traço de sua identidade.

Na sua opinião, os muçulmanos podem te algum tipo de reação contra a lei, como deixar o país?

Tendo como base a situação atual da França, com a mudança da condição dos imigrados, que se sedentarizam e com a chegada à idade adulta de gerações de origem muçulmana nascidas ali, as que mais sofrem com as dificuldades de integração social e profissional, uma semelhante discriminação pode provocar reações inusitadas. Projetos de exclusão, com toques de islamofobia, podem “prefigurar a violência sob todas as formas”.

Como os países muçulmanos e não-muçulmanos vão encarar a aprovação da lei?

É difícil prever de antemão as possíveis reações. Não creio, porém, que serao muito positivas. Entre os estudiosos de Al-Azhar, um dos principais centros de teologia islâmica no mundo, as opiniões dividiram-se. Determinadas autoridades defenderam o respeito à decisão tomada pelo senado francês, enquanto outras criticaram duramente a decisão, por contrariar o princípio fundamental da liberdade. É interessante constatar que ali mesmo em Al-Azhar, o presidente Americano, Barak Obama, defendeu vigorosamente esse princípio da liberdade, no clássico discurso de 04 de junho de 2009: “É importante que os países ocidentais evitem impedir os cidadãos muçulmanos de praticar sua religião como bem entenderem – ditando, por exemplo, o vestuário de uma mulher muçulmana. Não podemos disfarçar com supostas pretensões liberais a hostilidade diante de uma religião”.

Na sua opinião, a lei fere os direitos humanos?

Considero imprescindível a discussão em torno da laicidade e a defesa de uma sociedade multiconfessional. Importante também a busca de caminhos de uma concordância fundada na razão. Defendo a ideia de uma “laicidade mediadora”, uma laicidade amistosa, radicalmente distinta de uma laicidade de combate, como estamos vendo renascer ultimamente. Trata-se, na verdade, de uma “laicidade de incompetência”, como diriaRegis Debray, que desconhece o desafio fundamental de conhecer o mundo do outro, para com ele melhor conviver. Não é rompendo com a dinâmica da liberdade e invadindo o âmbito da consciência que se firma uma sociedade democrática. Na verdade, como bem sublinhou Edward Said, “as culturas são em geral mais naturalmente elas mesmas quando entram em parceria com outras”

Diversidade, dom de Deus

Diversidade e diálogo: Entrevista com Faustino TeixeiraPDFStampaE-mail
Scritto da Jaime C. Patias, IMC   
Martedì 05 Ottobre 2010 00:00

diversidad"As religiões deveriam transparecer com sinais vitais na história o mistério de um Deus de misericórdia"."A diversidade é um dom que se insere na dinâmica misteriosa dos desígnios divinos. O pluralismo de princípio significa reconhecer a diversidade como um valor, como uma riqueza fundamental, como parte do mistério de Deus que nós não conseguimos compreender na sua totalidade", afirmou o professor Faustino Teixeira, pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais (UFJF), em entrevista à revista Missões durante curso sobre Ecumenismo, promovido pelo Centro Ecumênico de Serviço à Evangelização Popular - CESEP, no mês de julho, em São Paulo. Faustino é pós-doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG), Itália, doutor em Teologia pela mesma universidade, mestre em Teologia, pela PUC-RJ e graduado em Filosofia e em Ciências da Religião pela UFJF. É autor de vários livros, dentre os quais "Nas teias da delicadeza" (Paulinas, 2006) e "As religiões no Brasil: continuidades e rupturas" (Vozes, 2006), este em parceria com Renata Menezes.

Faustino Teixeira nasceu em Juiz de Fora, numa família numerosa e muito religiosa. Seus pais tiveram 15 filhos, dez homens e cinco mulheres; ele é o oitavo filho e atribui à influência da família e dos amigos a sua busca por valores universais. O sonho do pesquisador é que exista um maior entendimento e respeito à diversidade de culturas e de religiões.

Para se dispor ao diálogo inter-religioso e ecumênico, que atitudes a pessoa deveria ter?

Uma disposição fundamental é a humildade, virtude indispensável para viver uma perspectiva dialogal em profundidade. Ter a consciência da contingência, de que não somos permanentes, mas que estamos em viagem neste mundo com outras pessoas, outras comunidades. O cultivo da humildade é uma das disposições mais difíceis e importantes. A segunda disposição é a abertura, ou seja, perceber que o outro com o qual eu entro em relação é alguém marcado por um mistério que eu não consigo jamais englobar, é alguém que experimenta a sua vida num espaço sagrado e que por isso tenho de respeitar a alteridade. Reconhecer que o outro é alguém que merece confiança, que tem uma dignidade e que sua convicção religiosa deve ser respeitada. Uma terceira disposição é a consciência do meu valor, da minha dignidade.

O diálogo deve ser feito por alguém que ama e acredita na sua identidade. Não pode dialogar quem não conhece os traços fundamentais da sua própria identidade. Tenho que dialogar com as minhas convicções para ser respeitado e respeitar as convicções do outro. O diálogo não é feito para abafar as individualidades. Não há diálogo verdadeiro quando eu escondo a minha identidade. Preciso levar ao interlocutor com quem dialogo aquilo que eu acredito. Uma quarta disposição é o sentimento comum de busca da verdade. Os interlocutores devem estar intimamente animados pela ideia de que caminham juntos em busca de um horizonte que só Deus conhece. Nunca um interlocutor está em posse radical do mistério. Somos itinerantes, estamos a caminho, ninguém está em sua pátria. Estamos envolvidos por uma verdade que nos ultrapassa. E é na dinâmica inter-relacional, dialogal, que a verdade vai florescendo. A verdade é a expressão de uma sinfonia inter-religiosa. Uma última disposição é a ecumene da compaixão, o exercício da compaixão. As religiões se unem animadas por uma compaixão comum de luta em favor do outro, da dignidade da terra, do criado, na luta contra o sofrimento, numa disposição de misericórdia.

Vivemos num tempo favorável ao diálogo, por outro lado percebemos um endurecimento das relações com o surgimento de fundamentalismos e extremismos. Como explicar isso?

Essa é a grande estranheza que a gente sente. Apesar de vivermos num tempo marcado pela abertura dialogal, vivenciamos simultaneamente um apego identitário muito forte, identidades que às vezes se revelam mortíferas que não só se fecham nos seus guetos como atacam, não abrindo espaços nas pessoas e comunidades para a percepção do valor. Vivenciamos essa dupla dialética, pelo fato do pluralismo balançar as nossas identidades, colocando-nos diante dum desafio aberto que está relacionado com o mistério do outro que provoca em nós um certo temor e a necessidade de mudar a nossa auto-compreensão. Todo o diálogo autêntico provoca mudança na nossa perspectiva de inserção no mundo e na nossa compreensão da identidade. Mas, nem todos estão preparados, e queremos uma transformação no nosso modo de ser.

Em seus escritos você fala num "pluralismo de princípios". O que seria esse conceito?

Deveríamos distinguir entre um pluralismo de fato e um pluralismo de princípios ou de direito. O pluralismo de fato significa que existe a diversidade religiosa como um fato e não há como driblar essa realidade. Pluralismo de princípio é que existe em nós uma perspectiva diferente; não apenas aceitar isso como um dado histórico, mas perceber essa realidade como algo adquirido por Deus. A diversidade é um dom que se insere na dinâmica misteriosa dos desígnios divinos. Então o pluralismo de princípio significa não apenas apurar a diversidade, mas reconhecer a diversidade como um valor, como uma riqueza fundamental, como parte do mistério de Deus que nós não conseguimos compreender na sua totalidade. O importante é perceber que há uma riqueza nessa diversidade e que ela manifesta a diversificação de um mistério que é sempre maior.

Em que as igrejas e religiões poderiam contribuir para garantir a sobrevivência da humanidade ameaçada?

As religiões têm um potencial garantidor do sentido, de resgatar o sentido ameaçado. Todas as religiões trabalham com elementos de profundidade, com um toque de espiritualidade. Elas têm uma tarefa fundamental de fazer valer essas entranhas do mistério misericordioso. A de rejeitar radicalmente uma situação de sofrimento humano, da terra e têm o papel de se unir em favor da paz mundial como afirmou Hans Küng: "não haverá paz no mundo sem paz entre as religiões". Então as religiões são convocadas a se unir contra o sofrimento do mundo. Talvez esse seja um dos mais fortes dinamizadores do diálogo inter-religioso.

Muitos conflitos são gerados por motivos religiosos. Qual é a relação entre guerra e religião?

Isso, infelizmente, porque as religiões não são somente portadoras de paz. As religiões estão na história e são marcadas por essa precariedade, são fragmentárias. Portanto, nem sempre, necessariamente as religiões desdobram na sua prática os elementos positivos do mistério. Muitas vezes elas expressam a vontade de determinados grupos ou setores. Penso que a tarefa profética que deve animar todas as religiões é o de lutar contra essas ambiguidades e fazer com que transpareçam como sinais vitais na história, o mistério de um Deus de misericórdia. Nem sempre as religiões são isentas dessa ambiguidade, portanto, elas podem ser tanto portadoras de paz como provocadoras da violência na medida em que elas se deixam levar pela vontade da arrogância de humanos.

Como entender e situar a Missão no horizonte do pluralismo religioso?

Sob o ponto de vista do cristianismo, nós temos como centro de referência fundamental Jesus Cristo. Não há como apagar para nós e para os outros com os quais entramos em contato esse sonho de Jesus, o significado de Jesus como curador da vida, como portador de alegria e como recuperador dos sonhos mais fundamentais. O trabalho da Missão eu vejo muito mais como um exercício de amor e não como um mandato. A Missão não pode ser vista como uma obrigação, mas como uma experiência de amor daqueles que viveram de forma profunda a experiência de contato e de sedução por Jesus Cristo e querem transmitir aos outros essa experiência de amor. Não só de Jesus Cristo como pessoa, mas dos valores que ele trouxe; da cortesia, da hospitalidade, da abertura, da delicadeza, da alegria... Nós somos convocados a partilhar com os outros o significado fundamental desses valores que ele deixou pra nós. Ou seja, nós somos convidados a não deixar apagar esse sonho do Reino de Deus na história. É uma missão respeitosa dos outros.

Que avaliação faz das iniciativas do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs - CONIC, como a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos e a Campanha da Fraternidade Ecumênica?

São iniciativas brilhantes. Os ganhos que se têm no diálogo inter-religioso não obstaculizam os trabalhos feitos no campo do ecumenismo. Inclusive, o trabalho ecumênico prepara o campo para uma abertura inter-religiosa. Todas as iniciativas no Brasil e no mundo são peças de grande importância na sensibilização do respeito ao outro, do respeito à consciência do outro. O meu diálogo com o outro é capaz de oferecer percepções da verdade que eu não capto na minha comunidade de fé. O outro é capaz de revelar pra mim elementos inéditos da minha experiência de Deus. Isso abre possibilidade mais ampla para um diálogo inter-religioso que não diminui a importância e o valor do diálogo ecumênico.


(Publicado na Revista Missões, Ano XXXVII, nº 7, setembro 2010, pp. 26-27)

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A presença dos espíritos no imaginário da sociedade brasileira

A presença dos espíritos no imaginário da sociedade brasileira

 

Faustino Teixeira

Entrevista ao IHU Online

 

 

1. Como explicar a presença e aceitação do espiritismo num país de marcada presença católica ?

 

O campo religioso brasileiro vem sofrendo mudanças substantivas nas últimas décadas. O catolicismo vai perdendo aos poucos sua tranquila hegemonia, tendo que conviver com uma dinâmica religiosa marcada pela presença crescente dos pentecostais e dos “sem religião”. Um fenômeno recorrente a partir dos anos 1980 é o “trânsito religioso”. Pesquisas realizadas por Ronaldo de Almeida, indicam que uma em quatro pessoas mudou de religião no Brasil nos anos 1990 e uma em cada três na Grande São Paulo, nos anos 2000. Outra pesquisa realizada em 1994, desenvolvida pelo ISER, sobre a presença dos evangélicos, apontou que “cerca de 70% dos evangélicos do Grande Rio não nasceram, nem foram criados num lar evangélico. Entraram na igreja por adesão voluntária, rompendo com a religião dos pais”. A pesquisa constatou que a maior parte desses evangélicos vieram do catolicismo (61%), que é o maior “doador” de fiéis, e em seguida aparece a umbanda ou candomblé (16%) e o espiritismo kardecista (6%). Os dados do ultimo Censo IBGE (2000) indicam que o catolicismo ainda responde por 73,8% da declaração de crença. Trata-se, porém, de um catolicismo marcadamente plural. Como assinala Carlos Brandão, o nosso catolicismo é uma religião que abraça a diversidade e possibilita diversas alternativas de viver a crença e a fé. Uma religião “em que Deus pode ter muitos rostos”. Pierre Sanchis vai ainda mais longe, ao afirmar que “há religiões demais nesta religião”. A plasticidade é uma marca característica da religião no Brasil. Como diz o personagem Riobaldo Tartarana, no Grande Sertão: Veredas,

 

“Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces do compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca”.

 

Estudiosos e observadores do campo religioso no Brasil destacam a presença de uma “impregnação espírita”, ou “querela dos espíritos” na sociedade brasileira que escapam à percepção do Censo. O Censo de 2000 indicou que a declaração de crença espírita envolve cerca de 1,4% da população, em torno de 2.337.432 adeptos. Mas não há dúvida de que o “imaginário espírita” tem uma abrangência muito maior. Em entrevista concedida ao IHU On-Line (nº 169 – dezembro de 2005), Bernardo Lewgoy sublinhou a “alta ressonância social” das crenças espíritas no Brasil, que escapa de sua vinculação exclusiva aos centros espíritas. Para ele “o kardecismo é um caso de importância qualitativa muito superior à quantitativa”. Vale também lembrar que o povo brasileiro tem uma familiaridade particular com os “espíritos”. Como assinala com razão o antropólogo José Jorge de Carvalho, “são dezenas de milhões de brasileiros que entram em transe regularmente, recebem entidades ou estabelecem relações personalizadas (de perturbação ou apoio) com a mais variada gama de espíritos”. E deixar-se habitar pelos “espíritos” é também fator de afirmação de uma dignidade singular, de intensificação da qualidade do ser sujeito, como mostrou Roger Bastide em sua bela reflexão sobre a dança dos deuses:

 

“Não são mais costureirinhas, cozinheiras, lavadeira que rodopiam ao som dos tambores nas noites baianas; eis Omolu recoberto de palha, Xangô vestido de vermelho e branco, Iemanjá pentenando seus cabelos de algas. Os rostos metamorfosearam-se em máscaras, perderam as rugas do trabalho cotidiano, desaparecidos os estigmas desta vida de todos os dias, feita de preocupação e de miséria; Ogum guerreiro brilha no fogo da cólera, Oxum é toda feita de volúpia carnal. Por um momento, confundiram-se África e Brasil; aboliu-se o oceano, apagou-se o tempo da escravidão (…). Não existem mais fronteiras entre natural e sobrenatural; o êxtase realizou a comunhão desejada”.

 

A forma de viver a religiosidade no Brasil é bem mais alargada do que aquela declarada no Censo. Há no Brasil o fenômeno recorrente da dupla pertença. Em pesquisa realizada por Luiz Eduardo Soares e Leandro Piquet Carneiro, em 1990, por solicitação e patrocínio do Centro João XXIII (IBRADES), com base nos dados do Gallup, constatou-se que 46% dos católicos praticantes acreditam na reencarnação. Dado também confirmado por outra pesquisa realizada no mesmo ano na Arquidiocese de Belo Horizonte. Em levantamento feito com paroquianos de frequência regular nas missas da Arquidiocese, com aplicação de 270.000 fichas, verificou-se que 54,8% dos entrevistados declararam acreditar na reencarnação.

 

2. Há ainda outros elementos que ajudam a compreender essa aproximação ?

 

Não há como tratar dessa familiaridade que aproxima a tradição espírita do catolicismo, bem como da receptividade peculiar que a tradição kardecista vem alcançando no Brasil, sem assinalar a sua interface com o catolicismo. Como mostrou José Jorge de Carvalho, “o espiritismo é também cristão ou neo-cristão, na medida em que reintroduz, revaloriza noções cristãs tais como a de caridade. Ele não só ressemantiza aspectos do cristianismo como introduz o mundo dos espíritos de uma forma agora muito mais ampla, complementando a doutrina equivalente praticada pelas tradições esotéricas e pelas religiões afro-brasileiras”. Alguns pesquisadores que se dedicam ao estudo do espiritismo no Brasil, como Bernardo Lewgoy e Sandra Stoll, falam de um “ethos católico do espiritismo brasileiro”. O exemplo mais claro disso é a presença de Chico Xavier. Em seu livro sobre o espiritismo à brasileira (2003), Sandra Stoll assinala que “esse modo católico de ser espírita, concretizado por Chico Xavier através do exemplo de vida, parece ser responsável, em larga medida, pela transformação dessa que era uma doutrina estrangeira em religião integrante do ethos nacional. Da moda de salão, da atividade de cunho terapêutico, o Espiritismo passou a integrar o imaginário brasileiro”. Esse imaginário vem reforçado por uma impressionante literatura espírita e sua presença nos meios de comunicação social, particularmente nas telenovelas de caráter espírita. Só Chico Xavier contribui com mais de 400 livros psicografados, em 70 anos de produção. Para Sandra Stoll, “num momento em que a inserção na mídia, em especial a televisão, se destaca como fator de divulgação doutrinária, constituindo um novo campo de disputa no espaço público, o Espiritismo vem allargando sua inserção social, especialmente entre os segmentos de classe media, por meio de investimento no campo literário”. Vale também ressaltar o sucesso de bilheteria de filmes como “Chico Xavier” e o mais recente, “Nosso lar”.

 

3. Comentar as perseguições que os cultos de origem africana sofreram a partir da proclamação da república, cuja inspiração positivista os via como motivo de atraso e por isso tentou proibí-los, inclusive pela força da lei. 

 

Em clássico artigo publicado na revista Religião e Sociedade, de março de 1986, a antropóloga Yvonne Maggie aborda a questão da repressão sofrida pelas religiões mediúnicas no Brasil, e o faz por intemédio de pesquisa realizada nos arquivos de processos judiciais instaurados para julgar acusados de práticias ilegais de medicina, curandeirismo e magia. Serve-se em particular do decreto 847 da Código Penal de 1890, o primeiro grande conjunto de leis a reger a nova ordem juridical associada ao nascente regime republicano. O artigo 157 prescreve prisão e multa para aquele que “praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias, para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade pública”. Estava, assim, configurado um “medo do feitiço”. Esse tema foi também objeto da dissertação de mestrado de Emerson Giumbelli, depois publicada em livro: “O cuidado dos mortos. Uma história da condenação e legitimação do Espiritismo” (1995). Em seu trabalho, Giumbelli destacou que as ações policiais e os processos judiciais contra grupos filiados à doutrina de Kardec antecedem ao Código Penal de 1890, e indica referências a isso já em 1881.

 

4. Por que o espiritismo antes tão condenado pela igreja católica, agora passou a ser perseguido pelas núcleos neopentecostais?

 

O Brasil foi sempre reconhecido como o país do sincretismo religioso, pela rica capacidade de ressemantização das identidades religiosas, mediante processos de relações e aprendizados com os diferentes. Nas últimas décadas temos verificado, com preocupação, expressões crescentes de exclusivismo religioso, com toques de “beligerância iconoclasta”. Em 1995 teve o triste episódio, conhecido como “chute na santa”. Mais recentemente atearam fogo na imagem de Santo Expedito, no interior de São Paulo (Ourinhos). Exercícios de intolerância religiosa ocorrem em templos neopentecostais e mesmo em circuitos da renovação carismática católica. No livro do bispo Macedo, Orixás, caboclos e guias, com inúmeras edições, busca-se identificar o apoderamento do demônio com a participação direta ou indireta nos centros espíritas ou com os trabalhos realizados pelas tradições religiosas afro-brasileiras. Não muito distante, temos também a linguagem etnocêntrica e excludente do padre Jonas Abib, da Canção Nova, em seu livro Sim,sim, Não, não, com mais de 400 mil exemplares vendidos, e que provocou intensa reação na Bahia. Sobretudos algumas igrejas pentecostais que se firmam a partir década de 1970, dando ênfase ao tema da libertação e do exorcismo, os adversários simbólicos são bem definidos: sobretudo as religiões afro-brasileiras, e de forma mais ampla, as crenças que compõem o repertório “católico-afro-kardecista”, povoado por  santos, energias, espíritos, promessas, trabalhos, feitiços etc. Na já mencionada pesquisa realizada pelo ISER em 1994, sobre os evangélicos no Grande Rio, verificou-se que eles “se percebem como militantes de um grande confronto espiritual. 89% acreditam na existência de religiões demoníacas”.  Nas respostas dos evangélicos entrevistados, 95% atribuem este caráter à Umbanda e ao Candomblé; 83% ao Espiritismo Kardecista; 52% ao ateísmo e 30% ao Catolicismo.  A demonização é palavra corrente nos livros doutrinais, nos cultos e rituais desses núcleos neopentecostais e, em especial, da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Mas curiosamente, como mostrou Ronaldo de Almeida, em trabalho sobre a guerra das possessões, a IURD acaba elaborando uma “antropofagia da fé inimiga”. Por mecanismos singulares de “fagocitose religiosa” acaba assimilando traços essenciais das crenças que são combatidas. 

(Publicado no IHU-Notícias de 09/09/2010)