terça-feira, 15 de outubro de 2024

Ismael e Isaac, dois irmãos do espírito

 Ismael e Isaac, dois irmãos do espírito

 

A minha leitura bíblica hoje pela manhã, 14 de outubro de 2024, fez destacar um traço do etnocentrismo presente no texto de Paulo, na carta aos Gálatas. A forma como o apóstolo trata de Ismael, reflete, na prática o jeito que certos israelitas vêem os seus herdeiros no mundo do Islã. O nome Ismael, é de beleza única, “isma-el”, ou seja: “Deus o escuta”.

 

Infelizmente, Paulo nesta carta, passa-nos uma imagem sombria de Ismael. O apóstolo diz, primeiramente, que Ismael é filho da escrava enquanto Isaac é filho da livre. O filho da escrava, diz a carta, “nasceu segundo a carne”, enquanto Isaac nasceu “em virtude da promessa”. E porque Ismael também não traz consigo uma bonita promessa? Paulo sublinha que Hagar gerou “filhos para a escravidão”.  E a convicção paulina se firma em palavra que são duras: “Irmãos, não somos filhos de uma escrava; somos filhos da mulher livre”, e finaliza: “Não vos deixeis amarrar de novo ao jugo da escravidão” (Gl 4)

 

Em tempos que anseiam por diálogo, ler essa leitura foi difícil para mim. Viva Isaac e Ismael, os dois com a mesma dignidade. Isaac não pode sobreviver em nós “amputado de um irmão”, e não de um irmão qualquer, mas de “um garoto decidido a procura-lo onde quer que esteja, debaixo da terra ou no céu”. Os dois devem estar juntos na vida e no coração de todos, e não apenas no momento do enterre de seu pai Abraão, aquele que os trouxe à vida.

Considerações em torno do conto de Clarice: A imitação da rosa

 Considerações em torno do conto de Clarice:

“A imitação da rosa”

 

Faustino Teixeira

 

Estou seguindo o mini curso ministrado por Yudith Rosenbaum (USP) sobre alguns contos de Clarice e também o romance Paixão Segundo GH. Ontem, 09 de outubro de 2024, foi a segunda aula do curso, onde ela abordou o maravilhoso conto “A imitação da Rosa”. A beleza e profundidade da aula serviram de inspiração para uma releitura do conto, favorecendo uma reação dialogada.

 

É sabido que esse conto de Clarice exerceu um impacto muito forte em algumas pessoas, como por exemplo Caetano Veloso e Marina Colassanti. Essa escritora narrou, em breve apresentação do conto, no livro “Clarice Lispector na cabeceira”, que Laura provocou nela “um abismo”. Foi um conto que, segundo Colassanti, a fez vislumbrar a loucura. O mesmo ocorreu com Caetano Veloso, para quem a leitura do conto indica um convite à “entregar-se com ela (a personagem Laura) à indizível luminosidade da loucura” (cf. B.Moser, Clarice, p. 341).

 

Trata-se de um conto longo, mas de profundidade quase inalcançável. No início, somos apresentados ao tema, sem que a personagem principal, Laura, apareça. Isso já nos evidencia, a sua situação de “invisibilidade” na sociedade. O que vemos na primeira página, logo no início, é a presença de seu marido, Armando. Depois fala-se na casa, e, por fim, no “vestido marrom” da personagem que ainda não vem nomeada. Ela só será nomeada na segunda página do conto. 

 

O “vestido marron” já nos indica a posição “marginalizada” da personagem: um vestido sem brilho. O conto nos dá a entender que Laura tinha vivido anteriormente um momento muito difícil na sua vida: talvez uma internação psiquiátrica. Agora, segundo o conto, “ela estava de novo ´bem`”. Esse colocar entre aspas o “bem”, significa que a situação não estava assim tão sob o seu controle.

 

No conto, Laura estava aguardando a chegada de seu marido, Armando, e os dois iriam jantar com Carlota e João. A narradora nos diz que os dois iriam de ônibus visitar a amiga, e ela estaria ali “olhando como uma esposa pela janela”, com seu braço pousado no braço do marido. Esse olhar “enquadrado”, que não vê o mundo de fora, mas de dentro do ônibus, é também uma expressão da situação vital de Laura. 

 

Na descrição da narradora, o encontro dos dois casais colocaria novamente em cena a dinâmica de submissão de Laura. Armando conversaria com Luis, como geralmente ocorre, e ela “falaria com Carlota sobre coisas de mulheres”, e indica que ela estaria na conversa em posição submissa, diante da rudeza e autoritarismo da amiga. A palavra “insignificância” marca na primeira página do conto, a situação efetiva que Laura ocupava no mundo.

 

Quando começa a pensar em se preparar para o jantar com os amigos, Laura se vê diante do espelho: “seu rosto tinha uma graça doméstica, os cabelos eram presos com grampos atrás das orelhas grandes e pálidas”. No seu rosto, enfim, “um ar modesto de mulher”. Ela sequer se preocupava em engordar, pois o principal para ela “nunca fora a beleza”. E seu marido, Armando, não se incomodava com as mudanças em sua silhueta, e dizia: “De que me adiantaria casar com uma bailarina”.

 

Talvez pudéssemos captar mesmo no início do conto, algum toque de luz, como mostrou Yudith, quando a narradora fala no “vestido marron com gola de renda creme” que Laura iria vestir. O passo da “renda creme” quebra o embaçamento do vestido marron.

 

Nos tempos em que Laura estudou no colégio Sacré Coeur ela chegou a tentar ler a obra A imitação de Cristo, que tinha sido indicado para ela. E ela fez esse exercício, diferentemente de Carlota, buscando ler a obra com “ardor de burra”. Leu sem entender... e pedia a Deus para perdoá-la. Pressentia que uma tal leitura talvez pudesse dar a entender para ela que imitar a Cristo é se perder na luz, e se perder perigosamente.

 

Aliás, a luz é uma expressão que aparece muitas vezes no conto, fazendo contraponto às sombras, mas também indicando o salto da loucura. Na luz também se pode perder.

 

Naquele seu momento, Laura estava mais “tranquila” quando amparada por seu sofá, “arrumada e fria”, como se estivesse numa “casa alheia”. E se dava conta igualmente que o tempo passava... A narradora sublinha: “Se uma pessoa perfeita do planeta Marte descesse e soubesse que as pessoas na Terra se cansavam e envelheciam, teria pena e espanto”.  

 

Era uma situação que se aplicava a Laura, que não sabia bem o que significava ser gente, “sentir-se cansada, em diariamente falir”. Não tinha grande ambição: apenas aquela ambição rotineira de “ser a mulher de um homem” e poder agradecer “sua parte diariamente falível”.

 

O que ela sentia, em verdade, como tantas outras mulheres de tantas partes do mundo, era a fadiga de cada dia e a dinâmica de impermanência da vida: a percepção de que todo ser humano é “perecível”.

 

Laura até conseguia abrir seus olhos, e quem sabe vislumbrar um horizonte diverso, mas logo se dava conta de que eles estavam “pesados de sono”. Deixava-se render “com um sorriso confortável de cansaço” na “água familiar e ligeiramente enjoativa”. Ainda assim, como uma boa esposa, passou as camisas de Armando. 

 

Na manhã, Laura tinha ido à feira, tendo se demorado lá... E essas saídas de Laura vinham sempre acompanhadas de certo constrangimento, pois significava certa ruptura com seu “lugar discreto e apagado” de dona de casa. A saída para a feira significava igualmente uma mexida naquela familiaridade , na sua “intima riqueza da rotina”.

 

Tinha adquirido na feira “miúdas rosas silvestres” que as colocou num jarro de flores. A intenção era presentear a amiga Carlota na visita para o jantar. Foi com muito cuidado que Laura arrumou de manhã mesmo as rosas no jarro. Na luz da sala, elas revelavam todo o seu esplendor, “estavam em toda a sua completa e tranquila beleza”.

 

E Laura imaginou, com curiosidade, nunca ter visto “rosas tão bonitas”! Olhou as rosas com atenção e surpresa: “Sinceramente, nunca vi rosas tão bonitas”. E a atenção transformou-se logo em “suave prazer, e ela não conseguia mais analisar as rosas, era  obrigada a interromper-se com a mesma exclamação de curiosidade submissa: como são lindas”.

 

Numa experiência de prazer que envolvia certo toque de eroticidade, refletiu: “Eram algumas rosas perfeitas, várias no mesmo talo. Em algum momento tinham trepado com ligeira avidez umas sobre as outras mas depois, o jogo feito, haviam se imobilizadas tranquilas”, como num jogo sexual.

 

Aquelas rosas eram “perfeitas na sua miudez, não de todo desabrochadas, e o tom rosa era quase branco”. A beleza era assim tamanha que pareciam artificiais. Podia-se sentir “o rubor circular dentro delas”, numa beleza indescritível. A beleza era tão extrema a ponto de incomodar Laura. E ela repete a expressão “incomodar” duas vezes. Na verdade, tudo o que traduzia luz em intensidade era motivo de perplexidade de Laura.

 

Aquilo era de tal modo precioso para Laura que a experiência de entregá-la a amiga passou a ser um motivo de muitas interrogações. Chegou a pensar em dispor para a sua empregada, Maria, recomendando-lhe deixar o presente antes para Carlota. Talvez fosse uma decisão “refinada”, a de entregar o presente para a amiga antes mesmo do jantar. Dar as rosas, pensou Laura, seria “quase tão bonito como as próprias rosas”.

 

Movida pela decisão, Laura buscou uma “velha folha de papel de seda” e, com muito cuidado, tirou as rosas do jarro, “tão lindas e tranquilas,  com os delicados e mortais espinhos. Queria fazer um ramo bem artístico. E ao mesmo tempo se livraria delas. E poderia se vestir e continuar o seu dia”. Aquela emoção diante da beleza das rosas acabou paralisando o projeto de Laura.

 

Foi quando então levantou um questionamento: dar ou não dar as rosas. Depois de reunir as rosas no buquê, hesitou... “afastou a mão que as segurava, olhou-as a distância, entortando a cabeça e entrefechando os olhos para um julgamento imparcial e severo”. E em si mesma, suave,  insinuou: “Não dê as rosas, elas são lindas”. E de forma mais suave ainda, seu pensamento revelou: “Não dê, elas são suas”. Aquela Laura, sempre submissa, podia agora expressar algo que vinha do fundo de si, ela, cujas coisas “nunca eram dela”. Aquelas rosas... sim: “Olhou-as com incredulidade: eram lindas e eram suas. Se conseguisse pensar mais adiante, pensaria: suas como nada até agora tinha sido”.

 

Laura vivia, assim, um impasse. Teria que em breve privar-se delas, “e nunca mais então pensaria nelas pois elas teriam morrido - elas não iam durar muito, por que então dá-las? O fato de não durarem muito parecia tirar-lhe a culpa de ficar com elas, numa obscura lógica de mulher que peca. Pois via-se que iam durar pouco (ia ser rápido, sem perigo)”.

 

Mesmo antes de mudar de roupa, ainda destinou um olhar derradeiro sobre as rosas. Olhar “aquela tranquila isenção das rosas”. Pensava: “Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para ter. E, sobretudo, nunca para se ´ser`. Sobretudo nunca se deveria ser a coisa bonita”.

 

As flores, naquela “luminosa tranquilidade” acabam passando para as mãos de Maria, mas antes foram retidas nas mãos de Laura, que buscou mantê-las “ um segundo mais consigo”. Eram, na verdade, a primeira coisa linda e sua que guardava nas maõs. E no segundo seguinte, as flores já estavam nas mãos de Maria, “sem nenhuma transição”. Elas “não eram mais suas”. E Laura não pôde sequer “tirar para si uma rosa”. Foi quando então a porta da rua bateu, e Laura, devagar, sentou-se “calma  no sofá. Sem apoiar as costas”. As rosas agora “faziam-lhe falta, Havia deixado um lugar claro dentro dela”. Esse lugar claro dava a entender uma ausência... uma loucura! “Na verdade, como a falta. Uma ausência que entrava nela como uma claridade. E também ao redor das marcas das rosas a poeira ia desaparecendo”.

 

Ela deveria estar pronta para receber Alfredo e com ele sair para o jantar: “Quando estivesse pronta ouviria o barulho da chave de Armando na porta”. A chave que penetraria “com familiaridade no buraco da fechadura”. Não adiantava mais ouvir o conselho de seu médico, que disse para ela não se esforçar por fingir que estava bem, pois na verdade ela “fugiu” dali embalada pela claridade das rosas. Armando não precisava mais disfarçar com seu “rosto expectante”. Ao adentrar em seu lar, Armando não encontrou mais a “mulher sua”. Não mais precisava recorrer à linguagem arranjada, “onde o medo e confiança se comunicavam”. Ele então, percebe de forma inesperada, e com horror, “que a sala e a mulher estavam calmas e sem pressa”.

 

Armando encontrou Laura “sentada com o seu vestidinho de casa. Ele sabia que ela fizera o possível para não se tornar luminosa e inalcançável”. Mas isso, de fato, aconteceu. Com a porta ainda aberta se deu conta de que Laura, sua mulher, “estava sentada no sofá sem apoiar as costas, de novo alerta e tranquila como num trem. Que já partira”

Cuidar até o fim

Cuidar até o fim: em defesa dos cuidados paliativos

 

Faustino Teixeira

 

 

Estou terminando a leitura do excelente livro de Ana Claudia Quintana Arantes: Cuidar até o fim (Rio de Janeiro: Sextante, 2024). Ela é uma das profissionais de saúde mais competentes para lidar hoje no Brasil com a experiência do morrer. Sua proposta de trabalho é encantadora, a de cuidar dos enfermos até seus dias finais, sempre com o intuito de levar a viver a morte como experiência de paz. 

 

Gosto em particular dos capítulos 9 e 10, que abordam, sucessivamente as questões: “Como é o morrer?” e “Futilidades”. No capítulo 9 ela desenvolve a singular questão da dissolução dos elementos que ocorrem no processo do morrer.

 

O primeiro elemento que se dissolve, segundo Ana, é a Terra, o corpo. Ela sublinha: “O paciente pode pesar 30 quilos, mas ao vivenciar a dissolução da Terra, terá a sensação de que carrega 5 toneladas. É como se o corpo se fundisse com o mundo, e mobilizá-lo fosse tão pesado quanto empurrar o planeta”. A fraqueza, como lembra Ana, “não está relacionada com a falta de nutrientes. Está relacionada à morte, porque ninguém morre forte, só quem é assassinado ou morre de uma causa súbita”.

 

O segundo elemento que se dissolve é a Água. Nesse momento, como lembra a autora, o paciente vive uma fase de introspecção. Ele “fica mais pacífico e reservado, silencioso, às vezes até mantém os olhos fechados. Ele está num profundo mergulho interior”. É alguém que vai “em busca da essência da vida”. Nesse caso, para a nossa surpresa, “é mais confortável estar discretamente desidratado”. Infelizmente, dado o despreparo dos profissionais de saúde, nas nossas UTIs, não se respeita esse processo, e se faz recurso à hidratação indevida.

 

Em seguida vem a dissolução do Fogo: “Nesse momento o paciente começa a mostrar o que há de mais bonito dentro dele. A nível celular, é como se cada uma das células tomasse consciência de que seu tempo está acabando e se empenhasse em mostrar o melhor de si. Por vezes o paciente melhora tanto que parece nem estar doente”. Algo semelhante acontece com determinadas árvores, que no momento derradeiro favorecem a florada mais linda, e depois fenecem. Para Ana, essa melhora constitui “a manifestação simbólica da nossa expressão no mundo; cada pedaço de nós está determinado a deixar sua mensagem” e se despedir. 

 

Por fim, a dissolução do Ar. É quando o sopro vital que nos foi doado no nascimento vem “devolvido ao Universo porque nossa missão se cumpriu”. É quando a respiração fica estranha, com muitas variações, e  se dá o “parto da alma”. Segundo Ana, “não é incomum que nesse momento ocorra algo singelo: uma lágrima cai, mesmo que o paciente esteja desidratado e vivenciando um processo de morte absolutamente natural”. Aquela lágrima talvez represente a hora em que a alma nasceu, e o último suspiro, o ponto final de uma trajetória de vida.

 

O capítulo 10 traz logo no início uma questão bem importante. Trata-se da tentativa que muitos fazem em forçar a alimentação para quem está padecendo. Não é necessário ficar assustado com isso, pois a alimentação não adiciona nenhuma regeneração ao corpo que está adoecido. Muitas vezes, o corpo só diz não à alimentação quando ela deixa de ser necessária. Em casos precisos, diz Ana, “interromper o uso de sonda para alimentação é uma ação ética”, e que corresponde ao desejo do paciente. E essa autonomia merece o devido respeito.

 

Ana reage também a determinadas situações onde os familiares querem manter o controle do caso, questionando inclusive a utilização de certos medicamentos paliativos. Tendem, por exemplo, a relacionar a morte à utilização de recursos como a morfina ou outros medicamentos. E diz, com acerto: “sabemos que a causa da morte foi a doença; a morfina apenas tornou o processo menos doloroso”. E acrescenta algo fundamental: apenas “90% das dores humanas físicas se resolvem com medicamentos”.

 

Ana argumenta: “A morte é a nossa maior experiência de decisão sobre renunciar ao controle. Entregar o controle, deixando claro para quem cuida qual é o nosso limite, pode ser a única decisão que precisamos tomar. Decidir como será a nossa cena final pode ter mais relação com tudo o que fizemos ao longo da vida, e não se limitar a escolher como será o nosso último respiro”.

 

A grande questão para nós que nos interessamos por tema assim tão fundamental, é a visão dominante na medicina a favor da distanásia, ou seja, “todo procedimento de intervenção diagnóstica e terapêutica que promove o prolongamento ou o aprofundamento da experiência do sofrimento”. É algo que, sinceramente, ninguém deveria experimentar... Trata-se, em verdade, do “uso obsessivo de recursos, resultando no aumento do sofrimento do paciente”. São diversos procedimentos que ocorrem, que na prática, são inúteis ou desnecessários.

 

A tarefa do cuidador, lembra Ana, é de estar profundamente atento a toda a dinâmica do paciente: “Quem está cuidando de uma pessoa em seu tempo final sempre deve estar atento ao sofrimento causado pelos tratamentos inúteis e se preparar para fazer perguntas difíceis à equipe médica, como ´De que serve colocar meu pai na UTI? Ele vai voltar à vida se for para a UTI?”. Não é incomum encontrar profissionais de saúde que nesses casos falam em milagres...

 

E Ana volta ao seu argumento fundamental, que se baseia na tese dos cuidados paliativos: “A meu ver, desaconselhar ou até suspender tratamentos fúteis que só prolongam o sofrimento de um ser humano é uma conduta profundamente ética e compassiva”. Sem dúvida, estou profundamente de acordo com ela.

 

Com sua ênfase na defesa dos cuidados paliativos, Ana se contrapõe àqueles que defendem a eutanásia. A eutanásia “é a eliminação do sofredor, enquanto o cuidado paliativo é o alívio do sofrimento.” A autora justifica sua opção: entre o alívio e a eliminação, ela prefere ficar com o alívio. Não que ela seja contra a eutanásia. Ela não se diz nem contra nem a favor. E argumenta: “Não cabe a mim dizer a um paciente que deseja a eutanásia que isto é um absurdo, porque não sei o fardo que ele carrega”. 

 

Ela sublinha, porém, que não faz eutanásia, e que mês que ela fosse liberada no Brasil, também provavelmente não faria. E argumenta que que a sociedade brasileira não tem ainda a “maturidade humana para discutir um tema tão complexo”. Para ela, um, debate mais honesto sobre o tema só poderia, de fato, ocorrer quando pelo menos 90% dos brasileiros pudessem ter acesso aos cuidados paliativos.

 

O grande problema, a meu ver, está no despreparo dos profissionais de saúde no Brasil em lidar com a questão dos cuidados paliativos. É duro ouvir de Ana a confirmação de que apenas 0,3% da população que precisa de alívio para o sofrimento recebe algum tipo de cuidado paliativo. O que significa, na prática, que a maioria dos pacientes terão que lidar com as dores da distanásia.

 

Eu concordo com Ana, em sua defesa da ortotanásia: que se traduz pelo “ pelo respeito pelo tempo da morte”. Ou seja, o trabalho efetivo para que os pacientes possam receber todos os cuidados para aguardar esse tempo com a serenidade possível, sem dor, sem incômodos”. 

 

Ana fala também da presença em nosso país da mistanásia, ou seja, a “total ausência de cuidados” no tratamento das doenças terminais. São situações dolorosas onde os pacientes não têm acesso “a diagnóstico, a nenhum tratamento e muitas vezes sequer obtêm uma consulta ou um exame para avaliar a gravidade atual de sua doença”. E ela cita casos de médicos que simplesmente decretam a irreversibilidade da doença e tiram o time de campo, recorrendo a desculpas diversificadas, como a dificuldade de agenda...

 

Segundo Ana, “simbolicamente, a morte de um ser humano pode acontecer quando ele perde a capacidade de estar presente na própria vida e se torna um zumbi existencial”. É duro observar o dado levantado por Ana, com respeito à taxa de suicídio entre os idosos, que se torna mais elevada entre aqueles que estão na faixa dos 80 anos. São questões difíceis, que merecem uma reflexão mais apropriada e aprofundada.

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Thomas Merton e o feminino

 Thomas Merton e o feminino

 

Faustino Teixeira

IHU / Paz e Bem

 

 

O tema da presença feminina no mundo dos religiosos católicos é fundamental. Por razões ligadas ao dever do celibato, essa questão vem permanentemente ocultada ou camuflada nas reflexões teológicas, o que é uma pena. O clássico livro de Eugen Drewermann, sobre os Funcionários de Deus[1], trata da delicada questão da “angústia” que envolve o enquadramento do religioso no sistema da castidade. Faz parte de um histórico conhecido, o dado da “separação da família” que acompanha a trajetória dos religiosos. Trata-se do encerramento do “vocacionado” nos seminários, que são destituídos da provocação feminina, ao menos no que vem externamente visualizado.

 

Drewermann faz menção ao “refúgio no trabalho” como um dos aparatos utilizados pelos religiosos para enfrentar ou sublimar a questão: 

 

“Quando deixou de haver uma saída para o futuro, para a liberdade e para o processo evolutivo da personalidade, ficou ainda outra saída possível, prevista mesmo: é o refúgio no aumento da despersonalização, o refúgio no serviço destinado, no trabalho portanto”[2].

 

O teólogo e psicoterapeuta alemão fala também do medo da ligação e da solidão que envolvem os religioso no caminho de sua opção. O que se percebe, por toda parte, é a presença de sentimentos que são ocultados, o que são interditados, “sob a pressão esmagadoras das prescrições inerentes ao papel que se desempenha”[3]. Ocorre, em verdade, um tremendo medo das ligações, resultando muitas vezes na emergência de doenças psicossomáticas. 

 

Ainda, segundo Drewermann, é decisivo no caminho que acompanha a vida eclesiástica

 

“a circunstância de na Igreja Católica intervir um sistema de valores que interpreta essas formas de inibição como uma forma ideal de pureza, e até mesmo como um primeiro sinal de uma possível ´vocação` de sacertote ou religiosa. É este ideal neurótico da própria Igreja Católica que fornece o álibi das neuroses juvenis, a sua legitimação e até mesmo a sua transfiguração divina; em vez de, inspirando-se na humanidade de Jesus, encorajar os jovens a superarem tanto quanto possível as suas angústias e inibições, a Igreja Católica faz na realidade todo o possível por mais ainda as atiçar”[4].

 

Aqui em Juiz de Fora, nas clássicas aulas de Moral Sexual ministradas por Jaime Snoek, conhecido sacerdote e pesquisador redentorista, ele falava sempre da importância fundamental dos candidatos ao sacerdócio poderem viver uma experiência sadia com as mulheres, em proveito mesmo da sanidade da vida a ser escolhida.

 

Quando buscamos abordar esta questão do “feminino” na vida religiosa, nos damos conta de uma realidade que vem pontuada por experiências de amor que adornam a vida de muitos religiosos ou religiosas. Temos exemplos singulares de fortes amizades com o outro sexo, como ocorreram com Karl Rahner, Teilhard de Chardin, João Paulo II, Ernesto Cardenal, Thomas Merton etc. Outros tantos casos não chegam a ser publicizados ou conhecidos por meio de fortes estratégias de ocultamento.

 

Em sua obra sobre O coração da matéria[5], Teilhard de Chardin dedica uma seção do livro ao tema do feminino. Recorda que seu itinerário de vida, desde a infância, levou-o à descoberta da Matéria, mas também o estar diante do Feminino. A seu ver, sem essa presença do Feminino sua “visão interior” perderia em grandeza e sentido. É ela que faculta o elemento singular, a atmosfera precisa para o seu amadurecimento pessoal. Reconhece que nada ocorreu no acabamento de sua personalidade sem o olhar e influxo femininos. Ele diz:

 

“Parece-me indiscutível (de jure come de facto) que, no homem – ainda que voltado ou inclinado ao serviço de uma Causa de Deus – nenhum acesso à maturidade e à plenitude espiritual é possível fora de qualquer influxo ´sentimental` que venha a sensibilizar nele a inteligência e excitar, ao menos no início, as sua potências de amor”[6].

 

Teilhard partilhou em sua vida a amizade de muitas mulheres, entre as quais Lucille Swan, com quem viveu a experiência de grande proximidade. Hoje conhecemos a longa correspondência entre os dois, que durou de 1932 a 1955[7].

 

Teilhard chegou a propor, sem sucesso, a possibilidade de uma “terceira via” na vida sacerdotal, que pudesse incluir a presença do feminino. Para ele seria, sem dúvida, uma proposta de transformação revolucionária na vida da igreja. Em seu projeto, a castidade ganha um sentido bem mais profundo daquela que está em curso. Assim também assinala Leonardo Boff, em reflexão alvissareira. Para ele, a castidade consiste em “desenvolver um modo de ser, capaz de ser sensível ao outro, como é sensível a brisa leve no trigal dourado”. A castidade não é privação ou carência,  mas “superabundância de amor”[8].

 

Gostaria, porém, de me deter aqui na experiência do monge trapista, Thomas Merton, e a relação de amor que viveu com M. e que está relatada no sexto volume de seus diários: Learning to LoveThe Journal of Thomas Merton. Volume six 1966-1967. San Francisco: Harper Collins, 1997.

 

O biógrafo de Thomas Merton, Michael Mott, em volumoso trabalho biográfico sobre o monge trapista, relata que Merton “amou muito e foi muito amado”[9].

 

Em sua tese doutoral, publicada em 2014, Sibélius Cefas Pereira faz menção à experiência de amor vivida por Thomas Merton, com a enfermeira M. (que alguns nomearam como Margie Smith). Sua experiência teve início em janeiro de 1966, quando conheceu M. no hospital em que estava internado para tratamento. Foi ela quem cuidou dele no período de sua convalescença. Sibélius reconhece que o fato “mereceria uma pesquisa específica com necessária leitura atenta e detalhada desse diário em particular”[10].

 

No livro, A sinfonia feminina (incompleta) de Thomas Merton[11], María Cristina Inogés Sanz aborda no capítulo sexto o tema das mulheres na vida de Thomas Merton. A autora sublinha que este é um tema “evitado” quando se aborda a vida de Thomas Merton. Não há, porém, como omitir essa reflexão quando trabalhamos a mística de Merton. A importância das mulheres em sua vida é hoje um dado inquestionável. Desde sua infância, as mulheres ocupam um lugar de destaque. Foi alguém sempre muito amado: “Todas elas deixaram uma marca em sua vida”[12]. A presença feminina sempre esteve presença no itinerário de Merton, e foi algo que “ajudou-o a fazer uma reflexão diferente, a questionar ideias e até uma certa linguagem que jamais entrara na sua realidade literária, pelo menos no modo como se viu motivado a fazê-lo”[13].

 

Merton conviveu com um círculo significativo de mulheres, que está igualmente presente em suas correspondências, com menções diversificadas em seus diários. Podemos mencionar a presença de sua agente literária, Naomi Burton Stone, com quem viveu uma bonita amizade: ela tornou-se em certo momento sua confidente íntima. Outras tantas presenças femininas estiveram presentes, como Dorothi Day, Rosemary Ruether, Juan Baez etc. Mas o grande amor de sua vida foi M., que marcou presença singular no sexto volume dos diários de Merton. 

 

Merton conheceu M. quando ainda era estudante de enfermagem, e foi convocada para cuidar de Merton quando ele esteve internado em janeiro de 1966. Ele tinha na ocasião 51 anos e ela cerca da metade de sua idade. Seu relato a respeito no seu diário começa em abril de 1966. Ele menciona, em 10 de abril, a chegada de M., e sua tarefa de trocar as compressas no local em que sofreu a intervenção cirúrgica. A relação entre os dois transformou-se em grande afeição. Dizia: “Já estamos talvez ficando amigos demais”. Relata que sua presença e cuidado significaram naquele momento algo de essencial para despertar o seu retorno para a vida[14]. Pontuava igualmente, na mesma página do diário, que sentia “uma profunda necessidade emocional de companhia e amor femininos”[15].

 

O despertar do amor em Thomas Merton não se deu sem conflitos interiores, tensões e resistências bem precisas. Todo o período que vai de janeiro de 1966 a outubro de 1977 será “tumultuoso e perturbador” para o monge trapista. Mesmo a sua situação na Trapa não era fácil. Confidenciava seus dilemas com o seu noviço, Ernesto Cardenal. Demonstrava para ele seu desconforto com o regime vivido ali, que mais parecia algo de ordem militar, com muitos artificialismos. Chegou mesmo a comparar o mosteiro a um “circo”, e os monges a “asnos” que davam voltas sempre no mesmo lugar[16].

 

Ele relata em seu diário, em 19 de abril de 1966, que necessitava pensar com muita calma no modo de lidar com o problema daquela ternura que nascia e provocava tumultos interiores[17]. Apesar das tensões e dificuldades, Merton avançou corajosamente pelos meandros desse amor que irrompia quebrando fronteiras tradicionais. Entendia que tal experiência não estava fora do âmbito da vida contemplativa. A seu ver, como também expressou em seu diário, em 14 de abril de 1966, “a verdadeira solidão abarca tudo, pois é a plenitude do que não rejeita nada e ninguém”[18].

 

Merton, no início, acreditou profundamente na vitalidade do amor que surgia, e se dispôs a enfrentar todos os obstáculos e assumir as consequências de sua decisão amorosa, reagindo com vigor às consequências, críticas e injúrias que começaram a emergir, dentro e fora de sua comunidade, visando obstaculizar a experiência novidadeira[19]. As pressões vindas do mosteiro foram cada vez mais se acentuando, com o controle sobre os telefonemas, a correspondência e as saídas de Merton. O abade na ocasião era James Fox, que reagiu com vigor à nova experiência de Merton.

 

No calor da experiência, Merton reconhecia em página de seu diário (25/04/1966), que via no amor a grande resposta realista para a sua busca. E desabafa:

 

“Tenho de me atrever a amar, a aguentar a ansiedade de autoquestionamento que o amor desperta em mim, até que ´o perfeito amor afaste o medo! ”[20]

 

Reconhece que o amor de M. desperta nele uma “avassaladora gratidão”, e sente-se tocado pela vontade imorredoura de atirar-se em seus braços. Ao mesmo tempo, porém, vem igualmente tomado pelo “pânico, dúvida, medo de estar sendo enganado e de ferir”[21]. E tais dúvidas o assaltam durante as noites de insônia.

 

Ao abordar o tema, María Cristina Inogés Sanz sublinha que o amor vivido por Merton “foi uma experiência nova e revigorante que o reconciliou com aquele elemento feminino que tanto fervilhou na sua vida, sem assentar totalmente e sem assentar nele aquilo que realmente era”[22]. Ela pondera que “não foi um amor procurado, foi um amor encontrado; não foi uma desgraça, foi uma sorte; não foi o destino, foi a graça”[23].

 

Para M. Merton escreveu lindos poemas de amor, registrados no livro de poemas: Eighteen Poems (dezoito poemas). Encontramos esse precioso registro no livro: Thomas Merton. Oh corazón ardiente. Poemas de amor y de disidencia (Trotta, 2015). No poema, “seis cartas de amor”, Merton canta:

 

“Esta é a manhã em que Deus

te cria da minha costela 

para seres minha companheira,

adoração e glória (...).

A luz brilha

nos nossos dois corpos

quando caminhamos atentos pelo paraíso,

imaginando

um mês de maio de amor (...).

Agora podemos

nos amar

livres do mundo

e ninguém nos pode deter

estamos libertos

de sua prisão”.

 

Esse amor, porém, teve um fim doloroso. Em página de seu diário, com data de 22 de junho de 1966, Merton relata que M. queria fazer amor completo com ele, e que em seu coração, ele também queria isso. Reconhece que o amor vivido foi “a coisa mais importante” para ele, mas via, por outro lado, que “toda a situação” envolvia “um erro”, tanto no campo psicológico como espiritual. Ele estava, na verdade, embaraçado por toda a situação... E reconhece com tristeza, que apesar da beleza que regia o enlace, tudo veio “interrompido, bombardeado, arrasado”[24]. Porém, a seu ver, nos corações o amor continuava vivo e intenso.

 

Como está expresso em seu diário, naquela ocasião, Merton vivia dúvidas tremendas quanto ao seu caminho e itinerário espiritual. Ela relata, em 05 de setembro de 1966: “Aqui estou ´eu` - esta colcha de retalhos, esse monte de perguntas e dúvidas e obsessões, esta gravitação em torno do silêncio, das matas e do amor”[25].

 

Dias depois, em 10 de setembro, Merton fala do “incrível jogo de dados do amor”,  e sublinha ter então assumido o compromisso de levar adiante a vida de trapista, e de “viver em solidão” pelo resto da sua vida. Reitera sua afeição por M., mas agora sem o desejo de antes[26]. Porém, logo sinaliza a dúvida sobre o seu conhecimento de si. Até onde poderia estar “brincando ?”. No dia anterior, em Louisville, estava tomado pela canção de Bob Dylan, “I Want Yoy” (“Eu quero você”), e isso é significativo. Num dos trechos da canção, ele diz:

 

“ (...) Mas não é assim

Eu não nasci para te perder

Eu  quero você, eu quero você

Eu te quero tanto

Querida, eu quero você”.

 

A “tranquilidade” volta a reinar na Trapa, para a alegria de Dom James, o abade. Merton, porém, continuou a viver sob o marco da presença de M. em sua vida, mesmo com todo o seu trabalho interior voltado para o retorno à sua vida de solidão. Em 21 de setembro sonhou com M., e foi algo que o impressionou. Ele relata:

 

“Um sonho. Sei que M. está nadando sozinha num dos nossos lagos. Estou por perto, se bem me tenha refreado de juntar-me a ela por medo das consequências. Mas agora eu me aproximo do lago e a vejo andando na água pela beira (...). Ela se mostra muito desconsolada e só, como se tivesse perdido a tarde ali sem objetivo, já que eu não apareci. Mas desço para o lago, vestido em meu hábito, e aceno-lhe que estou chegando. Sem acreditar, ela ainda se mostra desconsolada. Quero juntar-me a ela, penso mesmo que eu tenha de nadar nu. Não parece haver ninguém em volta. Porém, quando vou em sua direção pela margem, dou com um dos monges sentado em meu caminho. Não tenho como alcança-la. E com isso acordo em grande aflição.[27]

 

O sonho de Merton é profundamente simbólico, e expressa toda a angústia que vivia naquele momento, e as tensões que decorreram de sua decisão em abandonar M., seguindo como monge solitário. A dura decisão foi amadurecendo até o mês de dezembro de 1966.

 

Quando o primeiro encontro de Merton com M. completou um ano, em 31 de março de 1967, Merton relembra com alegria aquele novidadeiro evento que deu início a uma linda história de amor[28]. Em 23 de dezembro de 1967, Merton recebe um cartão de M. A noite no eremitério se anunciava fria, e as estrelas brilhavam no céu, como ele relata. Lembra que tinha pensado em M. dias antes, a experiência tinha sido tão forte para ele, que teve a sensação viva de a ter visto verdadeiramente. Curiosamente, esse dia coincidiu com a data do envio do cartão por parte de M. E Merton relatou:

 

“Sem dúvida  eu me sinto menos real, de alguma forma, sem nossa comunicação constante, nossa impressão de estar em comunhão (tão intensa no ano passado). A monotonia, os silêncios fúteis dessa vida artificial, com todas suas tensões e pretensões, embora eu saiba que seria pior noutro lugar. O casamento, para mim, seria terrível! De todo modo, está tudo acabado”[29].

 

Ainda na mesma página de seu diário, Merton relata que estava por completar 53 anos de vida, e que ninguém em sã consciência poderia se casar numa idade dessas. E durante a tarde lançou para si uma decisiva pergunta: Até que ponto teria perdido o sentido da vida, o que para ele era “uma ideia terrível”[30].

 

No dia 20 de agosto de 1968, dia de São Bernardo, Merton relata que queimou todas as cartas de M., sem voltar seu olhar a nenhuma delas[31]. Todas queimadas nas ardentes chamas dos galhos dos pinheiros ao sol. E falava da “estupidez” daquele ano de 1966. Completava então três anos em seu eremitério, e preparava-se para a sua jornada final, com sua viagem à Ásia, onde perderia a vida.

 

O ex-noviço de Merton, Ernesto Cardenal, no segundo volume de suas memórias, relembra essa experiência amorosa de Merton, e reage criticamente. A seu ver, foi a história de um bonito amor que se apagou. E relata que para Merton, 

 

“o amor a Cristo e a ela eram o mesmo. Não tinha que escolher entre a fidelidade ao amor e a fidelidade aos votos, mas o que havia era uma fidelidade única, mais além e acima dessas duas, que era a fidelidade a Deus”[32].

 

O que Merton fez – continua Cardenal – foi deixar acabar o amor gradualmente. Para Cardenal, o que ocorreu com Merton foi uma infidelidade à sua vocação. Deveria, em verdade, ter partido com ela, deixando o mosteiro, o sacerdócio e tudo mais. Na visão de Cardenal, Merton poderia ter inaugurado algo inaudito, a experiência de ser um eremita casado, coroando assim a sua vocação contemplativa.[33]



[1] Eugen Drewermann. Os funcionários de Deus. Mira-Cintra: Editorial Inquérito, 1994 (o original é de 1989).

[2] Ibidem, p. 127.

[3] Ibidem, p. 147.

[4] Ibidem, p. 305.

[5] Pierre Teilhard de Charin. Il cuore dela matéria. 3 ed.  Brescia: Queriniana, 2007 (o original é de 1976).

[6] Ibidem, p. 50.

[7] Pierre Teilhard de Chardin & Lucille Swan. Correspondance. Bruxelles: Lessius, 2009.

[8] Leonardo Boff. Brasa sob cinzas. Estórias do anti-cotidiano. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1996.

[9] Michael Mott. The seven mountains of Thomas Merton, Boston: Houghton Mifflin Company, 1984.

[10] Sibélius Cefas Pereira. Thomas Merton. Contemplação no tempo e na história. São Paulo: Paulus, 2014, p. 395.

[11] María Cristina Inogés Sanz. A sinfonia feminina (incompleta) de Thomas Merton. Prior Velho (Portugal): Paulinas, 2023.

[12] Ibidem, p. 83.

[13] Ibidem, p. 83.

[14] Thomas Merton. Learning to love. The Journal of Thomas Merton. Volume Six 1966-1967. San Francisco: Harper Collins, 1997, p. 38.

[15] Ibidem, p. 38.

[16] Ernesto Cardenal. Las ínsulas extrañas. Memorias 2. Trotta: Madrid, 2002, p. 87.

[17] Thomas Merton. Learning to love, p. 41.

[18] Ibidem, p. 40.

[19] Ibidem, p. 47.

[20] Ibidem, p. 44.

[21] Ibidem, p. 44.

[22] María Cristina Inogés Sanz. A sinfonia feminina (incompleta) de Thomas Merton, p. 100.

[23] Ibidem, p. 96.

[24] Patrick Hart & Jonathan Montaldo (Ed.).  Merton na intimidade.  Sua vida em seus diários. Rio de Janeiro: Fisus, 2001, p. 336 (Tradução de Leonardo Fróes).

[25] Thomas Merton. Learning to love, p. 125.

[26] Ibidem, p. 129.

[27] Ibidem, p. 140. A tradução, com as anteriore, é de Leonardo Fróes.

[28] Thomas Merton. Learning to love, p. 211.

[29] Thomas Merton. The other side of the montain. The Journal of Thomas Merton – Volume seven 1967-1968. San Francisco: Harper Collins, 1998, p. 29.

[30] Ibidem, p. 29.

[31] Ibidem, p. 

[32] Ernesto Cardenal. Las ínsulas extrañas, p. 116.

[33] Ibidem, p. 117.