Um mundo cindido pelo fogo do amor
Faustino Teixeira
Escrevi em meu blog um breve texto sobre os mistérios do amor. O texto foi também motivado pela segunda versão cinematográfica de Lolita, dirigido magnificamente por Adrian Lyne, com roteiro de Stephen Schiff, baseado no romance de Vladimir Nabokov. O filme é de 1997, a cores. Nos papeis principais, os atores Dominique Swain (Lolita) e Jeremy Irons (Humbert). Para coroar a beleza do filme, a trilha sonora de Ennio Morricone.
Depois vi a primeira versão, mais antiga, de 1962, dirigida por Stanley Kubrick, em preto e branco. Além de Peter Sellers, temos no elenco James Mason (Hubert) e Sue Lyon (Lolita). O filme não tem a mesma pujança e sensibilidade da versão mais nova, mas algumas imagens são muito belas, envolvendo a personagem Lolita, cuja intérprete, aliás, foi indicada pelo próprio Nabokov. Ele dizia que Sue Lyon, na época com 14 anos, era a única que podia interpretar a personagem na telona. A cena inicial, com o professor Humbert pintando suas unhas, é de rara delicadeza; bem como a cena clássica de Lolita à beira da piscina, chupando pirulito, com óculos escuros. Vale lembrar que Sue Lyon foi premiada com o Globo de Ouro, como atriz revelação, por sua interpretação de Lolita. A artista faleceu recentemente, no final de dezembro de 2019. No ano de 1997, quando a nova versão de Lolita de Adrian Lynne estreou nos cinemas, Sue Lyon disse à Reuters: “Estou horrorizada com a ideia de que querem ressuscitar o filme que causou minha destruição como pessoa”.
Das cenas mais bonitas do filme na segunda versão é quando o professor Hubert revê Lolita para atender uma solicitação de ajuda financeira. Ele estava casada com outro homem e grávida. Quando os dois se encontram, destaca-se o olhar adolorado e singele dele para ela:
Eu a olhava intensamente
sabia, com tanta certeza
como sei que hei de morrer...
que a amava mais do que tudo
que eu jamais vira ou imaginara.
Ela era só o eco débil
da ninfeta de outros tempos...
mas eu a amava, esta Lolita
pálida e poluída...
grávida do filho de outro homem.
Ela podia fenecer, murchar...
não fazia diferença.
Ainda assim me inundaria
De ternura...
Sempre que lhe olhasse
o rosto.[1]
No livro, a passagem vem descrita com cores vivas por Nabokov:
“Para além do barranco de Bill, um rádio depois do expediente começara a cantar sobre o destino e a dor, e lá estava ela com a beleza arruinada e as estreitas mãos adultas de veias engrossadas, os braços brancos arrepiados, e as orelhas rasas, e as axilas malcuidadas, lá estava ela (minha Lolita!), definitivamente acabada aos dezessete anos, com aquele bebê que já sonhava dentro dela com um destino de ricaço e a aposentadoria lá por 2020 d.C. – e eu não conseguia parar de olhar para ela, e soube tão claramente como sei agora, que estou prestes a morrer, que a amava mais que tudo que já vi ou imaginei na Terra, ou esperei descobrir em qualquer outro lugar. Ela era só um eco de aroma tênue de violeta e folhas mortas da ninfeta sobre quem eu rolara no passado com tantos gritos; um eco à beira de uma ravina rubra, com um arvoredo esparso sob um céu branco, folhas castanhas entupindo o leito do riacho, e um último grilo perdido em meio à relva ressecada... mas graças a Deus não era só esse eco que eu adorava. O que antes eu acalentava nos cipós emaranhados do meu coração, mon grand pêche radieux, minguara de volta à sua essência: o vício estéril e egoísta, tudo aquilo eu cancelava e maldizia. Podem rir de mim, podem ameaçar esvaziar o tribunal, mas enquanto não me amordaçarem e garrotearem insistirei em proclamar minha pobre verdade. Faço questão de que o mundo saiba o quanto amei minha Lolita, aquela Lolita pálida e poluída e prenhe de um filho alheio, mas com os olhos ainda cinzentos, os cílios ainda fuliginosos, ainda acaju e amêndoa, ainda Carmencita, ainda minha; Changeons de vie, ma Carmen, allons vivre quelque part où nous ne serons jamais séparés; Ohio? As matas de Massachusetts? Não fazia diferença, mesmo que os olhos dela desbotassem transformando-se em peixes míopes, que seus mamilos inchassem e rachassem e seu jovem e delicado delta de veludo se corrompesse e se rasgasse – mesmo assim eu sempre enlouqueceria de ternura à mera visão de seu querido rosto muito branco, ao mero som de sua jovem e rouca, minha Lolita”.
(Vladimir NABOKOV. Lolita. Rio de Janeiro: Objetiva/Alfaguara, 2011, p. 323-324 – tradução de Sergio Flaksman)
Ele sugere então que ela o acompanhe, mas ela recusa. E sublinha com os “traços do rosto convulsionados”: “Você é louco”. É quando então ele entrega um envelope com quatrocentos dólares em dinheiro, além de um cheque de mais três mil e seiscentos. Incerta, ela pega o envelope, e seu rosto “adquiriu um lindo matiz rosado”. O professor derramou-se em lágrimas, as mais quentes que jamais verteu. Foi quando ela tentou tocar o seu pulso e ele rechaçou:
“Se você me tocar eu morro”
Mais uma vez sugeriu que ela o acompanhasse e recebeu como resposta: “Não, meu amor, não”.
Citei esse última frase dele, pois me fez lembrar vivamente a expressão de Layla, ao se aproximar, finalmente, de Majnum no clássico romance de Nizami (século XII), Layla & Majnum. Layla interrompe sua caminhada em direção ao Amado. Seu corpo inteiro tremia e “parecia que ela estava profundamente enferma. Não mais que vinte passos separavam-na de seu amado, mas era como se um feiticeiro tivesse delineado um círculo mágico no chão cujo limite ela não deveria ultrapassar”.
O velho que a acompanhava, tentou conduzi-la pelo braço e ela recusou: “Nobre senhor, nem tão longe, mas nem tão perto. Agora sou igual a uma vela ardente; um passo mais perto do fogo e eu serei consumada completamente. A proximidade traz o desastre, pois os amantes só estão seguros separados”. O amante, Majnum, permaneceu quieto sob a palmeira, totalmente pálido, “mirando com os olhos vidrados, as lágrimas escorrendo pelas faces”.
A visão do filme sobre Lolita e a leitura de Nabokov fizeram-me lembrar desta passagem do livro de Nizami, que nunca mais deixou minha memória, provocando reflexões profundas sobre esse complexo mistério do amor.
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