Os mistérios do Amor
Faustino Teixeira
Tenho refletido muito esses tempos sobre o mistério do amor, de sua complexidade, mas também delicadeza; dos ritmos que marcam a sua narrativa; dos medos e riscos que envolvem sua tessitura. Ao longo de minhas reflexões, fui me deparando com rebentos que despertaram ainda mais forte a minha observação.
Quando pesquisei sobre a mística de Gilberto Gil ganhei novos aprendizados, como o de estar atento para a dimensão feminina que nos habita. Observar com muita atenção o que está por trás dos dizeres de Gil quando sublinha que sua “porção mulher” é o que ele traz de melhor em si[1]. Ao explicar a canção, sinaliza que este aprendizado se deu com Caetano Veloso, do feminino como complementação do masculino. Falou que a mudança que ocorrera foi proporcionada por Caetano, com quem teve a felicidade de encontrar num “momento crucial” de sua vida. E diz Gil: “O mundo que aprendi com ele foi de uma arte e de uma cultura mais doce, o mundo de ternura e leveza”[2].
Essa mudança também se passou em mim, podendo perceber mais a fundo esta dimensão essencial do ser humano. Um jeito também feminino de olhar o mundo, com sua peculiar ternura e também cortesia e cuidado. No mesmo mundo de Gil aprendi tantas outras coisas, como igualmente algo de essencial: que o amor vai tomando formas distintas, mas igualmente belas. Refiro-me aqui ao influxo maravilhoso da canção, A faca e o queijo, de 1995, onde ele aborda as mudanças na experiência do amor:
E o amor produz transformações
A velha chama
Acende novas ilusões
Com mãos bem mais sutis
Novos desejos
Vão tornando nossos beijos
Mais azuis, menos carmins
Fui tocado pela força imagética desta letra, que me proporcionou vislumbrar com clareza singular esses toques de mudança na experiência que perdura, com igual maravilha, ainda que de forma mais distinta e sutil. Com sua arte, Gil foi indicando novas veredas, sinalizando que poesia “é leveza, é delicadeza, mesmo quando ela está falando do peso bruto, da brutalidade; porque ela quer fazer com que o pesado voe”[3].
Esse aprendizado com Gil foi para mim um REBENTO, no sentido que o próprio Gil confere à expressão, como tudo que nasce, que brota, que vinga e que medra. Rebento raro “como flor na pedra” e como o “trigo ao vento”[4].
Em seguida veio a experiência fortíssima da releitura do Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, durante uma travessia do Oceano Atlântico. Foi uma leitura abissal, reveladora de horizontes impensados. Dali surgiu a ideia de um curso sobre o tema, que se realizou no segundo semestre de 2019, no programa de pós-graduação em ciência da religião da UFJF. Foram momentos de muita alegria, riqueza, descobertas, numa turma realmente especial.
Um dos temas recorrentes nos debates daquele semestre foi o amor entre Riobaldo e Diadorim. As discussões foram vivas, mas também difíceis. Pudemos verificar como nem tudo é tão simples no amor. Em torno dele podem se firmar também a violência, o ciúme doentio... e não sou poucos os casos de feminicídio ao nosso redor para exemplificar experiências doentias de amar. No livro de Guimarães Rosa, o personagem Diadorim busca todo o tempo se proteger do assédio de Riobaldo, mesmo tendo por ele um amor inesgotável. Como mostra Kathrin Rosenfield, “Diadorim nunca manifesta um amor feminino ou sensual que visaria no amigo um corpo sexuado, mas articula apenas saudades de parentesco”[5]. Na expressão de seu amor, resistente às relações eróticas evidentes, Diadorim evita dar forma e significação ao seu amor mediante a dimensão física e sexual. Com isso se protege e mantem acesa a amizade com seu grande amigo, Riobaldo.
O tema do amor volta à ribalta por ocasião da defesa doutoral de minha orientanda, Elisângela Alves, que trabalhou o tema do amor na poesia do místico nicaraguense Ernesto Cardenal. O poeta viveu permanentemente o drama de ter que escolher entre as muchachas e Deus. Este último acabou vencendo e as muchachas ficaram num segundo plano, se é possível falar assim. Cardenal optou por um “erotismo sem os sentidos”, mas em razão disto clama a Deus: “Me quitaste todo, dáteme todo pues”.
Durante o debate na defesa, o professor Marcus Reis, da UFF, lança uma questão muito pertinente, em torno da “imaturidade” amorosa de Cardenal, incapaz de compreender que o verdadeiro amor perdura mesmo com o passar dos anos. Esta foi, segundo Marcus Reis, a ingenuidade de Cardenal em querer conquistar uma beleza pontuada unicamente pela juventude, um ser amoroso que não envelheça jamais. Na verdade, essa é uma ilusão, uma trápola em que caiu Cardenal. E ele reconhece, fazendo menção a um antigo epigrama, que entre Deus e ele, ele foi quem perdeu mais.
Por fim, ao ver recentemente o belíssimo filme Lolita, de Adrian Lyne, baseado no perturbador romance do escritor russo Vladimir Nabokov (1997), vejo o tema aflorar novamente, com uma perspectiva interessante. O tumultuado amor que une um professor de meia idade, Humbert, com uma ninfeta, Lolita. O filme ganha ainda maior beleza com a trilha sonora de Ennio Morricone. A paixão do professor pela menina nasceu logo no início, naquela “gloriosa primeira manhã em que ela se estirou em seu tapete de grama, em seu mar de luz solar”[6]. Entre os dois nasceu um amor frenético, mas também doído.
Não é meu objetivo aqui abordar o romance em suas ricas nuances, mas sinalizar algo que percebi ao final do filme, quando o professor Humbert, já separado de Lolita, agora casada com outro homem e grávida de uma criança, vai ao seu encontro para levar uma ajuda financeira, mas não só isso... Não estava mais diante da espevitada Lolita, mas diante da senhora Dolly Schiller que habitava então num casebre em Coalmont. Sigo aqui o relato de Nabokov. Depois de aberta a porta, vagarosamente,
“lá estava ela com a beleza arruinada e as estreitas mãos adultas de veias engrossadas, os braços brancos arrepiados, e as orelhas rasas, e as axilas malcuidadas, lá estava ela (minha Lolita!), definitivamente acabada aos dezessete anos... e eu não conseguia parar de olhar para ela, e soube tão claramente como sei agora, que estou prestes a morrer, que a amava mais que tudo que já vi ou imaginei na Terra, ou esperei descobrir em qualquer outro lugar”[7].
No filme o texto do roteiro é de uma beleza impar e a cena onde se dá a descrição é maravilhosa. O olhar penetrante do professor, interpretado magnificamente por Jeremy Irons, voltado para aquela menina-adulta, interpretada por Dominique Swain. Ocorre um enlace simbólico, desapegado, quando então ela renuncia com tranquilidade a seguir com o professor. A trilha sonora de Morricone insere-se como o selo na cera. O texto diz:
Eu a olhava intensamente
sabia, com tanta certeza
como sei que hei de morrer...
que a amava mais do que tudo
que eu jamais vira ou imaginara.
Ela era só o eco débil
da ninfeta de outros tempos...
mas eu a amava, esta Lolita
pálida e poluída...
grávida do filho de outro homem.
Ela podia fenecer, murchar...
não fazia diferença.
Ainda assim me inundaria
De ternura...
Sempre que lhe olhasse
o rosto.
Tudo se enriquece com o poder narrativo de Nabokov, o mestre da observação, da alegria e da felicidade. Como diz Lila Azam Zanganeh, “a felicidade em Vladimir Nabokov é um modo singular de ver, de maravilhar-se e entender, ou, em outras palavras, de enredar as partículas de lucidez piscando ao nosso redor”. Em verdade, “mesmo na escuridão e na queda, Nabokov nos diz, as coisas se agitam com o brilho da beleza”[8].
Na narrativa do professor no filme, vemos algo bem diferente da reflexão poética de Cardenal: o reconhecimento do valor irrenunciável do amor, seja em que fase estiver. Como mostra tão bem o livro do Cântico dos Cânticos, o coração vem roubado com um único olhar. Depois de cativado, não há como escapar desta sedução, que fica gravado como um selo: “o amor é forte, é como a morte (...). As águas da torrente jamais poderão apagar o amor, nem os rios afogá-lo” (Ct, 8, 6-7).
O que escrevi foi expressão desses flashes que marcaram momentos de minha reflexão sobre o amor, no aprendizado de cada dia, de cada experiência e de cada leitura. Cada parágrafo abre margens importantes para meditação pessoal e o debate. Fica, porém, marcada essa ideia da complexidade do tema, da ampla variedade de possibilidades de sua abordagem. Mas sobretudo a convicção da riqueza, da ternura e da delicadeza que envolve essa experiência enigmática e saborosa.
Juiz de Fora, 11 de abril de 2020, um sábado de páscoa
[1]Super-Homem – a Canção (1979).
[2]Carlos RENNÓ (Org.). Gilberto Gil. Todas as letras. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 268.
[3]Ibidem, p. 433.
[4]Ibidem, p. 269.
[5]Kathrin H. ROSENFIELD. Os descaminhos do demo. Rio de Janeiro/São Paulo: Imago/EDUSP, 1993, p. 97.
[6]Lila Azam ZANGANEH. O Encantador. Nabokov e a felicidade. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p. 88.
[7]Vladimir NABOCOV. Lolita. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.
[8]Lila Azam ZANGANEH. O Encantador, p. 21.
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