quinta-feira, 23 de abril de 2020

Um mundo cindido pelo fogo do amor

Um mundo cindido pelo fogo do amor

Faustino Teixeira

Escrevi em meu blog um breve texto sobre os mistérios do amor. O texto foi também motivado pela segunda versão cinematográfica de Lolita, dirigido magnificamente por Adrian Lyne, com roteiro de Stephen Schiff, baseado no romance de Vladimir Nabokov. O filme é de 1997, a cores. Nos papeis principais, os atores Dominique Swain (Lolita) e Jeremy Irons (Humbert). Para coroar a beleza do filme, a trilha sonora de Ennio Morricone. 

Depois vi a primeira versão, mais antiga, de 1962, dirigida por Stanley Kubrick, em preto e branco. Além de Peter Sellers, temos no elenco James Mason (Hubert) e Sue Lyon (Lolita). O filme não tem a mesma pujança e sensibilidade da versão mais nova, mas algumas imagens são muito belas, envolvendo a personagem Lolita, cuja intérprete, aliás, foi indicada pelo próprio Nabokov. Ele dizia que Sue Lyon, na época com 14 anos, era a única que podia interpretar a personagem na telona. A cena inicial, com o professor Humbert pintando suas unhas, é de rara delicadeza; bem como a cena clássica de Lolita à beira da piscina, chupando pirulito, com óculos escuros. Vale lembrar que Sue Lyon foi premiada com o Globo de Ouro, como atriz revelação, por sua interpretação de Lolita. A artista faleceu recentemente, no final de dezembro de 2019. No ano de 1997, quando a nova versão de Lolita de Adrian Lynne estreou nos cinemas, Sue Lyon disse à Reuters: “Estou horrorizada com a ideia de que querem ressuscitar o filme que causou minha destruição como pessoa”.

Das cenas mais bonitas do filme na segunda versão é quando o professor Hubert revê Lolita para atender uma solicitação de ajuda financeira. Ele estava casada com outro homem e grávida. Quando os dois se encontram, destaca-se o olhar adolorado e singele dele para ela:

Eu a olhava intensamente
sabia, com tanta certeza
como sei que hei de morrer...
que a amava mais do que tudo
que eu jamais vira ou imaginara.
Ela era só o eco débil
da ninfeta de outros tempos...
mas eu a amava, esta Lolita
pálida e poluída...
grávida do filho de outro homem.
Ela podia fenecer, murchar...
não fazia diferença.
Ainda assim me inundaria
De ternura...
Sempre que lhe olhasse
o rosto.[1]

No livro, a passagem vem descrita com cores vivas por Nabokov:

“Para além do barranco de Bill, um rádio depois do expediente começara a cantar sobre o destino e a dor, e lá estava ela com a beleza arruinada e as estreitas mãos adultas de veias engrossadas, os braços brancos arrepiados, e as orelhas rasas, e as axilas malcuidadas, lá estava ela (minha Lolita!), definitivamente acabada aos dezessete anos, com aquele bebê que já sonhava dentro dela com um destino de ricaço e a aposentadoria lá por 2020 d.C. – e eu não conseguia parar de olhar para ela, e soube tão claramente como sei agora, que estou prestes a morrer, que a amava mais que tudo que já vi ou imaginei na Terra, ou esperei descobrir em qualquer outro lugar. Ela era só um eco de aroma tênue de violeta e folhas mortas da ninfeta sobre quem eu rolara no passado com tantos gritos; um eco à beira de uma ravina rubra, com um arvoredo esparso sob um céu branco, folhas castanhas entupindo o leito do riacho, e um último grilo perdido em meio à relva ressecada... mas graças a Deus não era só esse eco que eu adorava. O que antes eu acalentava nos cipós emaranhados do meu coração, mon grand pêche radieux, minguara de volta à sua essência: o vício estéril e egoísta, tudo aquilo eu cancelava e maldizia. Podem rir de mim, podem ameaçar esvaziar o tribunal, mas enquanto não me amordaçarem e garrotearem insistirei em proclamar minha pobre verdade. Faço questão de que o mundo saiba o quanto amei minha Lolita, aquela Lolita pálida e poluída e prenhe de um filho alheio, mas com os olhos ainda cinzentos, os cílios ainda fuliginosos, ainda acaju e amêndoa, ainda Carmencita, ainda minha; Changeons de vie, ma Carmen, allons vivre quelque part où nous ne serons jamais séparés; Ohio? As matas de Massachusetts? Não fazia diferença, mesmo que os olhos dela desbotassem transformando-se em peixes míopes, que seus mamilos inchassem e rachassem e seu jovem e delicado delta de veludo se corrompesse e se rasgasse – mesmo assim eu sempre enlouqueceria de ternura à mera visão de seu querido rosto muito branco, ao mero som de sua jovem e rouca, minha Lolita”.
(Vladimir NABOKOV. Lolita. Rio de Janeiro: Objetiva/Alfaguara, 2011, p. 323-324 – tradução de Sergio Flaksman)

Ele sugere então que ela o acompanhe, mas ela recusa. E sublinha com os “traços do rosto convulsionados”:  “Você é louco”. É quando então ele entrega um envelope com quatrocentos dólares em dinheiro, além de um cheque de mais três mil e seiscentos. Incerta, ela pega o envelope, e seu rosto “adquiriu um lindo matiz rosado”. O professor derramou-se em lágrimas, as mais quentes que jamais verteu. Foi quando ela tentou tocar o seu pulso e ele rechaçou:

“Se você me tocar eu morro”

Mais uma vez sugeriu que ela o acompanhasse e recebeu como resposta: “Não, meu amor, não”.

Citei esse última frase dele, pois me fez lembrar vivamente a expressão de Layla, ao se aproximar, finalmente, de Majnum no clássico romance de Nizami (século XII), Layla & Majnum. Layla interrompe sua caminhada em direção ao Amado. Seu corpo inteiro tremia e “parecia que ela estava profundamente enferma. Não mais que vinte passos separavam-na de seu amado, mas era como se um feiticeiro tivesse delineado um círculo mágico no chão cujo limite ela não deveria ultrapassar”.

O velho que a acompanhava, tentou conduzi-la pelo braço e ela recusou: “Nobre senhor, nem tão longe, mas nem tão perto. Agora sou igual a uma vela ardente; um passo mais perto do fogo e eu serei consumada completamente. A proximidade traz o desastre, pois os amantes só estão seguros separados”.  O amante, Majnum, permaneceu quieto sob a palmeira, totalmente pálido, “mirando com os olhos vidrados, as lágrimas escorrendo pelas faces”. 

A visão do filme sobre Lolita e a leitura de Nabokov fizeram-me lembrar desta passagem do livro de Nizami, que nunca mais deixou minha memória, provocando reflexões profundas sobre esse complexo mistério do amor.

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[1]No roteiro cinematográfico.

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