quinta-feira, 23 de abril de 2020

Fragmentos de estrelas

Fragmentos de estrelas

As músicas escoam, ecoam em nossa vida e a atenção paralisa diante de questões que elas nos apresentam. Uma delas é a colocada por Caetano Veloso em sua bela canção "Oração ao Tempo". Eu a ouvia na tarde de 20 de abril (2020), no repertório do show Ofertório. Caetano coloca para nós algo complexo, com uma visão de baixa definição, para não dizer pessimista, quanto ao futuro do humano. A frase enigma é esta: "Quando eu tiver saído para fora do teu círculo, não serei nem terás sido".
Depois de assistir a Live de Ailton Krenak com Macelo Gleiser e ouvir atentamente o que Gleiser disse sobre nossa íntima relação com a terra, com o tempo, indicando que estamos enredados numa teia de vida, num domínio de emaranhamento, como lembra também Ingold, a reflexão sobre essa parte da letra de Caetano ganha outra figura.

Na live com Krenak, Gleiser fala da cadeia de vida em que estamos enredados, mas que dela nos esquecemos com frequência. O ser humano, diz Gleiser, entrou bem atrasado numa festa que tem 14 bilhões de anos. E cada ser humano carrega consigo em cada átomo de seu corpo fragmentos de estrelas, de estrelas que viveram há bilhões e bilhões de anos. Somos simplesmente “poeira de estrelas”, e nossa mãe é uma bactéria. O nosso ancestral comum é uma bactéria que viveu há três bilhões de anos, composta de uma célula só. Estamos embrenhados nessa conexão de vida, da qual ninguém escapa. E hoje somos convocados a celebrar essa memória comum. Ninguém sai do círculo do tempo. Como aponta Gleiser, 25% de nossos genes revelam-se iguais às árvores. 

A textura do mundo é o entrelaçamento, antes e depois da morte. Ninguém escapa desta reverberação, que é nexo e inter-relação.

E aí entra a sabedoria de Gilberto Gil, fazendo um contraponto positivo com a visão de Caetano. É cada vez mais problemático dizer que estaremos um dia fora do círculo do tempo. Aliás, com a canção "Tempo Rei", Gil sinaliza seu contraponto a Caetano, encaminhando-se nessa linha da mais ousada antropologia:
"Não me iludo
Tudo permanecerá do jeito que tem sido
Transcorrendo
Transcorrendo
Tempo e espaço navegando todos os sentidos"
Gil assinala é o que é essencial, a TRANSFORMAÇÃO por que todos sempre passamos e passaremos, mesmo nos caminhos diversos que a vida oferecerá para nós depois.

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