segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Thomas Merton e o feminino

 Thomas Merton e o feminino

 

Faustino Teixeira

IHU / Paz e Bem

 

 

O tema da presença feminina no mundo dos religiosos católicos é fundamental. Por razões ligadas ao dever do celibato, essa questão vem permanentemente ocultada ou camuflada nas reflexões teológicas, o que é uma pena. O clássico livro de Eugen Drewermann, sobre os Funcionários de Deus[1], trata da delicada questão da “angústia” que envolve o enquadramento do religioso no sistema da castidade. Faz parte de um histórico conhecido, o dado da “separação da família” que acompanha a trajetória dos religiosos. Trata-se do encerramento do “vocacionado” nos seminários, que são destituídos da provocação feminina, ao menos no que vem externamente visualizado.

 

Drewermann faz menção ao “refúgio no trabalho” como um dos aparatos utilizados pelos religiosos para enfrentar ou sublimar a questão: 

 

“Quando deixou de haver uma saída para o futuro, para a liberdade e para o processo evolutivo da personalidade, ficou ainda outra saída possível, prevista mesmo: é o refúgio no aumento da despersonalização, o refúgio no serviço destinado, no trabalho portanto”[2].

 

O teólogo e psicoterapeuta alemão fala também do medo da ligação e da solidão que envolvem os religioso no caminho de sua opção. O que se percebe, por toda parte, é a presença de sentimentos que são ocultados, o que são interditados, “sob a pressão esmagadoras das prescrições inerentes ao papel que se desempenha”[3]. Ocorre, em verdade, um tremendo medo das ligações, resultando muitas vezes na emergência de doenças psicossomáticas. 

 

Ainda, segundo Drewermann, é decisivo no caminho que acompanha a vida eclesiástica

 

“a circunstância de na Igreja Católica intervir um sistema de valores que interpreta essas formas de inibição como uma forma ideal de pureza, e até mesmo como um primeiro sinal de uma possível ´vocação` de sacertote ou religiosa. É este ideal neurótico da própria Igreja Católica que fornece o álibi das neuroses juvenis, a sua legitimação e até mesmo a sua transfiguração divina; em vez de, inspirando-se na humanidade de Jesus, encorajar os jovens a superarem tanto quanto possível as suas angústias e inibições, a Igreja Católica faz na realidade todo o possível por mais ainda as atiçar”[4].

 

Aqui em Juiz de Fora, nas clássicas aulas de Moral Sexual ministradas por Jaime Snoek, conhecido sacerdote e pesquisador redentorista, ele falava sempre da importância fundamental dos candidatos ao sacerdócio poderem viver uma experiência sadia com as mulheres, em proveito mesmo da sanidade da vida a ser escolhida.

 

Quando buscamos abordar esta questão do “feminino” na vida religiosa, nos damos conta de uma realidade que vem pontuada por experiências de amor que adornam a vida de muitos religiosos ou religiosas. Temos exemplos singulares de fortes amizades com o outro sexo, como ocorreram com Karl Rahner, Teilhard de Chardin, João Paulo II, Ernesto Cardenal, Thomas Merton etc. Outros tantos casos não chegam a ser publicizados ou conhecidos por meio de fortes estratégias de ocultamento.

 

Em sua obra sobre O coração da matéria[5], Teilhard de Chardin dedica uma seção do livro ao tema do feminino. Recorda que seu itinerário de vida, desde a infância, levou-o à descoberta da Matéria, mas também o estar diante do Feminino. A seu ver, sem essa presença do Feminino sua “visão interior” perderia em grandeza e sentido. É ela que faculta o elemento singular, a atmosfera precisa para o seu amadurecimento pessoal. Reconhece que nada ocorreu no acabamento de sua personalidade sem o olhar e influxo femininos. Ele diz:

 

“Parece-me indiscutível (de jure come de facto) que, no homem – ainda que voltado ou inclinado ao serviço de uma Causa de Deus – nenhum acesso à maturidade e à plenitude espiritual é possível fora de qualquer influxo ´sentimental` que venha a sensibilizar nele a inteligência e excitar, ao menos no início, as sua potências de amor”[6].

 

Teilhard partilhou em sua vida a amizade de muitas mulheres, entre as quais Lucille Swan, com quem viveu a experiência de grande proximidade. Hoje conhecemos a longa correspondência entre os dois, que durou de 1932 a 1955[7].

 

Teilhard chegou a propor, sem sucesso, a possibilidade de uma “terceira via” na vida sacerdotal, que pudesse incluir a presença do feminino. Para ele seria, sem dúvida, uma proposta de transformação revolucionária na vida da igreja. Em seu projeto, a castidade ganha um sentido bem mais profundo daquela que está em curso. Assim também assinala Leonardo Boff, em reflexão alvissareira. Para ele, a castidade consiste em “desenvolver um modo de ser, capaz de ser sensível ao outro, como é sensível a brisa leve no trigal dourado”. A castidade não é privação ou carência,  mas “superabundância de amor”[8].

 

Gostaria, porém, de me deter aqui na experiência do monge trapista, Thomas Merton, e a relação de amor que viveu com M. e que está relatada no sexto volume de seus diários: Learning to LoveThe Journal of Thomas Merton. Volume six 1966-1967. San Francisco: Harper Collins, 1997.

 

O biógrafo de Thomas Merton, Michael Mott, em volumoso trabalho biográfico sobre o monge trapista, relata que Merton “amou muito e foi muito amado”[9].

 

Em sua tese doutoral, publicada em 2014, Sibélius Cefas Pereira faz menção à experiência de amor vivida por Thomas Merton, com a enfermeira M. (que alguns nomearam como Margie Smith). Sua experiência teve início em janeiro de 1966, quando conheceu M. no hospital em que estava internado para tratamento. Foi ela quem cuidou dele no período de sua convalescença. Sibélius reconhece que o fato “mereceria uma pesquisa específica com necessária leitura atenta e detalhada desse diário em particular”[10].

 

No livro, A sinfonia feminina (incompleta) de Thomas Merton[11], María Cristina Inogés Sanz aborda no capítulo sexto o tema das mulheres na vida de Thomas Merton. A autora sublinha que este é um tema “evitado” quando se aborda a vida de Thomas Merton. Não há, porém, como omitir essa reflexão quando trabalhamos a mística de Merton. A importância das mulheres em sua vida é hoje um dado inquestionável. Desde sua infância, as mulheres ocupam um lugar de destaque. Foi alguém sempre muito amado: “Todas elas deixaram uma marca em sua vida”[12]. A presença feminina sempre esteve presença no itinerário de Merton, e foi algo que “ajudou-o a fazer uma reflexão diferente, a questionar ideias e até uma certa linguagem que jamais entrara na sua realidade literária, pelo menos no modo como se viu motivado a fazê-lo”[13].

 

Merton conviveu com um círculo significativo de mulheres, que está igualmente presente em suas correspondências, com menções diversificadas em seus diários. Podemos mencionar a presença de sua agente literária, Naomi Burton Stone, com quem viveu uma bonita amizade: ela tornou-se em certo momento sua confidente íntima. Outras tantas presenças femininas estiveram presentes, como Dorothi Day, Rosemary Ruether, Juan Baez etc. Mas o grande amor de sua vida foi M., que marcou presença singular no sexto volume dos diários de Merton. 

 

Merton conheceu M. quando ainda era estudante de enfermagem, e foi convocada para cuidar de Merton quando ele esteve internado em janeiro de 1966. Ele tinha na ocasião 51 anos e ela cerca da metade de sua idade. Seu relato a respeito no seu diário começa em abril de 1966. Ele menciona, em 10 de abril, a chegada de M., e sua tarefa de trocar as compressas no local em que sofreu a intervenção cirúrgica. A relação entre os dois transformou-se em grande afeição. Dizia: “Já estamos talvez ficando amigos demais”. Relata que sua presença e cuidado significaram naquele momento algo de essencial para despertar o seu retorno para a vida[14]. Pontuava igualmente, na mesma página do diário, que sentia “uma profunda necessidade emocional de companhia e amor femininos”[15].

 

O despertar do amor em Thomas Merton não se deu sem conflitos interiores, tensões e resistências bem precisas. Todo o período que vai de janeiro de 1966 a outubro de 1977 será “tumultuoso e perturbador” para o monge trapista. Mesmo a sua situação na Trapa não era fácil. Confidenciava seus dilemas com o seu noviço, Ernesto Cardenal. Demonstrava para ele seu desconforto com o regime vivido ali, que mais parecia algo de ordem militar, com muitos artificialismos. Chegou mesmo a comparar o mosteiro a um “circo”, e os monges a “asnos” que davam voltas sempre no mesmo lugar[16].

 

Ele relata em seu diário, em 19 de abril de 1966, que necessitava pensar com muita calma no modo de lidar com o problema daquela ternura que nascia e provocava tumultos interiores[17]. Apesar das tensões e dificuldades, Merton avançou corajosamente pelos meandros desse amor que irrompia quebrando fronteiras tradicionais. Entendia que tal experiência não estava fora do âmbito da vida contemplativa. A seu ver, como também expressou em seu diário, em 14 de abril de 1966, “a verdadeira solidão abarca tudo, pois é a plenitude do que não rejeita nada e ninguém”[18].

 

Merton, no início, acreditou profundamente na vitalidade do amor que surgia, e se dispôs a enfrentar todos os obstáculos e assumir as consequências de sua decisão amorosa, reagindo com vigor às consequências, críticas e injúrias que começaram a emergir, dentro e fora de sua comunidade, visando obstaculizar a experiência novidadeira[19]. As pressões vindas do mosteiro foram cada vez mais se acentuando, com o controle sobre os telefonemas, a correspondência e as saídas de Merton. O abade na ocasião era James Fox, que reagiu com vigor à nova experiência de Merton.

 

No calor da experiência, Merton reconhecia em página de seu diário (25/04/1966), que via no amor a grande resposta realista para a sua busca. E desabafa:

 

“Tenho de me atrever a amar, a aguentar a ansiedade de autoquestionamento que o amor desperta em mim, até que ´o perfeito amor afaste o medo! ”[20]

 

Reconhece que o amor de M. desperta nele uma “avassaladora gratidão”, e sente-se tocado pela vontade imorredoura de atirar-se em seus braços. Ao mesmo tempo, porém, vem igualmente tomado pelo “pânico, dúvida, medo de estar sendo enganado e de ferir”[21]. E tais dúvidas o assaltam durante as noites de insônia.

 

Ao abordar o tema, María Cristina Inogés Sanz sublinha que o amor vivido por Merton “foi uma experiência nova e revigorante que o reconciliou com aquele elemento feminino que tanto fervilhou na sua vida, sem assentar totalmente e sem assentar nele aquilo que realmente era”[22]. Ela pondera que “não foi um amor procurado, foi um amor encontrado; não foi uma desgraça, foi uma sorte; não foi o destino, foi a graça”[23].

 

Para M. Merton escreveu lindos poemas de amor, registrados no livro de poemas: Eighteen Poems (dezoito poemas). Encontramos esse precioso registro no livro: Thomas Merton. Oh corazón ardiente. Poemas de amor y de disidencia (Trotta, 2015). No poema, “seis cartas de amor”, Merton canta:

 

“Esta é a manhã em que Deus

te cria da minha costela 

para seres minha companheira,

adoração e glória (...).

A luz brilha

nos nossos dois corpos

quando caminhamos atentos pelo paraíso,

imaginando

um mês de maio de amor (...).

Agora podemos

nos amar

livres do mundo

e ninguém nos pode deter

estamos libertos

de sua prisão”.

 

Esse amor, porém, teve um fim doloroso. Em página de seu diário, com data de 22 de junho de 1966, Merton relata que M. queria fazer amor completo com ele, e que em seu coração, ele também queria isso. Reconhece que o amor vivido foi “a coisa mais importante” para ele, mas via, por outro lado, que “toda a situação” envolvia “um erro”, tanto no campo psicológico como espiritual. Ele estava, na verdade, embaraçado por toda a situação... E reconhece com tristeza, que apesar da beleza que regia o enlace, tudo veio “interrompido, bombardeado, arrasado”[24]. Porém, a seu ver, nos corações o amor continuava vivo e intenso.

 

Como está expresso em seu diário, naquela ocasião, Merton vivia dúvidas tremendas quanto ao seu caminho e itinerário espiritual. Ela relata, em 05 de setembro de 1966: “Aqui estou ´eu` - esta colcha de retalhos, esse monte de perguntas e dúvidas e obsessões, esta gravitação em torno do silêncio, das matas e do amor”[25].

 

Dias depois, em 10 de setembro, Merton fala do “incrível jogo de dados do amor”,  e sublinha ter então assumido o compromisso de levar adiante a vida de trapista, e de “viver em solidão” pelo resto da sua vida. Reitera sua afeição por M., mas agora sem o desejo de antes[26]. Porém, logo sinaliza a dúvida sobre o seu conhecimento de si. Até onde poderia estar “brincando ?”. No dia anterior, em Louisville, estava tomado pela canção de Bob Dylan, “I Want Yoy” (“Eu quero você”), e isso é significativo. Num dos trechos da canção, ele diz:

 

“ (...) Mas não é assim

Eu não nasci para te perder

Eu  quero você, eu quero você

Eu te quero tanto

Querida, eu quero você”.

 

A “tranquilidade” volta a reinar na Trapa, para a alegria de Dom James, o abade. Merton, porém, continuou a viver sob o marco da presença de M. em sua vida, mesmo com todo o seu trabalho interior voltado para o retorno à sua vida de solidão. Em 21 de setembro sonhou com M., e foi algo que o impressionou. Ele relata:

 

“Um sonho. Sei que M. está nadando sozinha num dos nossos lagos. Estou por perto, se bem me tenha refreado de juntar-me a ela por medo das consequências. Mas agora eu me aproximo do lago e a vejo andando na água pela beira (...). Ela se mostra muito desconsolada e só, como se tivesse perdido a tarde ali sem objetivo, já que eu não apareci. Mas desço para o lago, vestido em meu hábito, e aceno-lhe que estou chegando. Sem acreditar, ela ainda se mostra desconsolada. Quero juntar-me a ela, penso mesmo que eu tenha de nadar nu. Não parece haver ninguém em volta. Porém, quando vou em sua direção pela margem, dou com um dos monges sentado em meu caminho. Não tenho como alcança-la. E com isso acordo em grande aflição.[27]

 

O sonho de Merton é profundamente simbólico, e expressa toda a angústia que vivia naquele momento, e as tensões que decorreram de sua decisão em abandonar M., seguindo como monge solitário. A dura decisão foi amadurecendo até o mês de dezembro de 1966.

 

Quando o primeiro encontro de Merton com M. completou um ano, em 31 de março de 1967, Merton relembra com alegria aquele novidadeiro evento que deu início a uma linda história de amor[28]. Em 23 de dezembro de 1967, Merton recebe um cartão de M. A noite no eremitério se anunciava fria, e as estrelas brilhavam no céu, como ele relata. Lembra que tinha pensado em M. dias antes, a experiência tinha sido tão forte para ele, que teve a sensação viva de a ter visto verdadeiramente. Curiosamente, esse dia coincidiu com a data do envio do cartão por parte de M. E Merton relatou:

 

“Sem dúvida  eu me sinto menos real, de alguma forma, sem nossa comunicação constante, nossa impressão de estar em comunhão (tão intensa no ano passado). A monotonia, os silêncios fúteis dessa vida artificial, com todas suas tensões e pretensões, embora eu saiba que seria pior noutro lugar. O casamento, para mim, seria terrível! De todo modo, está tudo acabado”[29].

 

Ainda na mesma página de seu diário, Merton relata que estava por completar 53 anos de vida, e que ninguém em sã consciência poderia se casar numa idade dessas. E durante a tarde lançou para si uma decisiva pergunta: Até que ponto teria perdido o sentido da vida, o que para ele era “uma ideia terrível”[30].

 

No dia 20 de agosto de 1968, dia de São Bernardo, Merton relata que queimou todas as cartas de M., sem voltar seu olhar a nenhuma delas[31]. Todas queimadas nas ardentes chamas dos galhos dos pinheiros ao sol. E falava da “estupidez” daquele ano de 1966. Completava então três anos em seu eremitério, e preparava-se para a sua jornada final, com sua viagem à Ásia, onde perderia a vida.

 

O ex-noviço de Merton, Ernesto Cardenal, no segundo volume de suas memórias, relembra essa experiência amorosa de Merton, e reage criticamente. A seu ver, foi a história de um bonito amor que se apagou. E relata que para Merton, 

 

“o amor a Cristo e a ela eram o mesmo. Não tinha que escolher entre a fidelidade ao amor e a fidelidade aos votos, mas o que havia era uma fidelidade única, mais além e acima dessas duas, que era a fidelidade a Deus”[32].

 

O que Merton fez – continua Cardenal – foi deixar acabar o amor gradualmente. Para Cardenal, o que ocorreu com Merton foi uma infidelidade à sua vocação. Deveria, em verdade, ter partido com ela, deixando o mosteiro, o sacerdócio e tudo mais. Na visão de Cardenal, Merton poderia ter inaugurado algo inaudito, a experiência de ser um eremita casado, coroando assim a sua vocação contemplativa.[33]



[1] Eugen Drewermann. Os funcionários de Deus. Mira-Cintra: Editorial Inquérito, 1994 (o original é de 1989).

[2] Ibidem, p. 127.

[3] Ibidem, p. 147.

[4] Ibidem, p. 305.

[5] Pierre Teilhard de Charin. Il cuore dela matéria. 3 ed.  Brescia: Queriniana, 2007 (o original é de 1976).

[6] Ibidem, p. 50.

[7] Pierre Teilhard de Chardin & Lucille Swan. Correspondance. Bruxelles: Lessius, 2009.

[8] Leonardo Boff. Brasa sob cinzas. Estórias do anti-cotidiano. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1996.

[9] Michael Mott. The seven mountains of Thomas Merton, Boston: Houghton Mifflin Company, 1984.

[10] Sibélius Cefas Pereira. Thomas Merton. Contemplação no tempo e na história. São Paulo: Paulus, 2014, p. 395.

[11] María Cristina Inogés Sanz. A sinfonia feminina (incompleta) de Thomas Merton. Prior Velho (Portugal): Paulinas, 2023.

[12] Ibidem, p. 83.

[13] Ibidem, p. 83.

[14] Thomas Merton. Learning to love. The Journal of Thomas Merton. Volume Six 1966-1967. San Francisco: Harper Collins, 1997, p. 38.

[15] Ibidem, p. 38.

[16] Ernesto Cardenal. Las ínsulas extrañas. Memorias 2. Trotta: Madrid, 2002, p. 87.

[17] Thomas Merton. Learning to love, p. 41.

[18] Ibidem, p. 40.

[19] Ibidem, p. 47.

[20] Ibidem, p. 44.

[21] Ibidem, p. 44.

[22] María Cristina Inogés Sanz. A sinfonia feminina (incompleta) de Thomas Merton, p. 100.

[23] Ibidem, p. 96.

[24] Patrick Hart & Jonathan Montaldo (Ed.).  Merton na intimidade.  Sua vida em seus diários. Rio de Janeiro: Fisus, 2001, p. 336 (Tradução de Leonardo Fróes).

[25] Thomas Merton. Learning to love, p. 125.

[26] Ibidem, p. 129.

[27] Ibidem, p. 140. A tradução, com as anteriore, é de Leonardo Fróes.

[28] Thomas Merton. Learning to love, p. 211.

[29] Thomas Merton. The other side of the montain. The Journal of Thomas Merton – Volume seven 1967-1968. San Francisco: Harper Collins, 1998, p. 29.

[30] Ibidem, p. 29.

[31] Ibidem, p. 

[32] Ernesto Cardenal. Las ínsulas extrañas, p. 116.

[33] Ibidem, p. 117.

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Fernando Pessoa e o enraizamento do real

 

Fernando Pessoa e o enraizamento no real. Entrevista especial com Faustino Teixeira

Para o professor e pesquisador, a arte cumpre um papel fundamental nos dias difíceis que vivemos. Ela nos recorda a todo tempo de nossa humanidade e de possibilidade de se conectar com o outro

Fotos: reprodução da obra de Malak Mattar, Divulgação/Labiennale e Wikimedia Commons | Arte: Marcelo Zanotti / IHU

Por: IHU e Baleia Comunicação | 15 Junho 2024

Embora a arte não seja capaz de salvar a humanidade de sua própria miséria – da guerra, da fome, da desigualdade –, ela é, por outro lado, a dimensão mais sublime da existência humana. “A arte é luz e saúde, e tem o dom de recompor a integridade do sujeito num mundo fraturado e em dispersão. A arte é um potente dossel protetor. Com ela estamos mais amparados para enfrentar as adversidades da vida”, afirma Faustino Teixeira em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. A arte “é uma forma lúdica de saber 'dançar sobre os escombros'. A arte tem igualmente um valor de gratuidade, sem ter que necessariamente existir para uma determinada intencionalidade”, acrescenta.

A Bienal de Arte de Veneza tem como mote o tema do estrangeiro, da alteridade. Ainda que inicialmente pareça abstrato, o tema é radicalmente contemporâneo, sobretudo quando nos damos conta que ele está associado às justificações da guerra, especialmente no Oriente Médio. “O que vemos hoje, com tristeza, na Faixa de Gaza, é expressão viva da violência e do ‘desgaste da compaixão’. O mote da Bienal de Veneza nos convoca a uma nova atitude face aos ‘outros’, aos estranhos e estrangeiros. Trata-se do exercício essencial do cuidado e da hospitalidade”, salienta Teixeira.

“A presença palestina na Bienal de Veneza é dos fatos mais significativos e importantes desse evento artístico. Uma presença que traduz um sol de resistência num tempo marcado por um dos mais violentos genocídios de nossa história, envolvendo a morte de quase 35 mil pessoas, incluindo mais de 12 mil crianças”, sublinha o entrevistado.

Na literatura Fernando Pessoa, talvez o mais conhecido poeta de língua portuguesa, é um farol de luz civilizatório em meio ao caos e a desesperança. “Fernando Pessoa é um poeta que tem o dom de trazer para nós os enigmas mais profundos do mundo interior. Daí a grande identificação das pessoas com a sua rica narrativa. É também uma reflexão que nos proporciona entender a diversidade que nos habita. Assim como Pessoa se identificava com uma ‘multidão’, dada a riqueza da heteronomia, nós também somos habitados pela riqueza da diversidade, embora nem sempre consigamos traduzir tal diversidade em palavras”, descreve Faustino Teixeira.

Faustino Teixeira está ministrando o curso Mística em Fernando Pessoa, que segue com atividades quinzenais até o dia 28-08-2024. Confira aqui a programação completa. 

Faustino Teixeira (Foto: Ricardo Assis/UFJF/divulgação)

Faustino Teixeira é colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Possui graduação em Ciência das Religiões pela Universidade Federal de Juiz de Fora, graduação em Filosofia pela mesma instituição, mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e doutorado em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana. É professor emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora, no PPG em Ciência da Religião.

Confira a entrevista.

IHU – Qual o papel da arte no mundo atual?

Faustino Teixeira – Vivemos tempos muito difíceis nessa primeira metade do século 21. São tempos marcados por muitos problemas. Alguns falam em “tempos de ruína”, ocasionados pela uma tremenda e perturbadora ação humana sobre a Terra. As catástrofes já começam a acontecer, anunciando um futuro ainda mais sombrio para a humanidade e demais espécies que habitam no planeta.

Nesse contexto, a arte ganha um papel essencial, pois está instrumentada para reagir ao momento com rigor, beleza e delicadeza. Há um lado de denúncia bem importante presente na arte: ela é um grito estético contra a ordem estabelecida. Ela comporta igualmente uma força dinamogênica, fornecendo uma rede essencial de amparo contra as intempéries e dificuldades. Como diz a artista Denise Fraga, “a arte serve para livrar a gente da mediocridade dos dias”. A arte é luz e saúde, ela tem o dom de recompor a integridade do sujeito num mundo fraturado e em dispersão. A arte é um potente dossel protetor. Com ela estamos mais amparados para enfrentar as adversidades da vida. Ela também “embeleza o sofrimento”, como indica Denise Fraga. Ter nos momentos de dor ou percalço a presença de obras, como as de Clarice ou Chico Buarque, o sofrimento ganha um significado que aponta para um nomos reestruturador do caminho.

A jovem poeta portuguesa Matilde Campilho sublinha que a arte tem o dom não de salvar o mundo, mas o minuto. É uma forma lúdica de saber “dançar sobre os escombros”. A arte tem igualmente um valor de gratuidade, sem ter que necessariamente existir para uma determinada intencionalidade. Não entender esse traço de nobreza, autofinalizado, é também deixar escapar um de seus ângulos mais bonitos e revigoradores. A arte nos convida “à demora”, à experiência de estar ali, simplesmente, para sorver a tessitura do belo. Deixar-se habitar pela beleza é deixar-se habitar por uma energia secreta, que lentamente se infiltra no nosso campo visual e revela sonhos possíveis e inauditos.

IHU – O Papa Francisco, em visita à Bienal de Veneza no fim de abril, afirmou que a arte tem um papel profético na construção do “bem comum”. O que significa a perspectiva trazida pelo pontífice?

Faustino Teixeira – Sem dúvida, Francisco toca numa dimensão que é muito importante na arte, que traduz o seu potencial profético e transformador. A arte tem esse dom de abrir os nossos olhos e os nossos corações. Como diz o papa, a arte “é a voz dos sonhos e das angústias humanas”. Quando estamos enriquecidos por esse olhar, alimentamos nossos sonhos e somos capazes de ampliar a nossa visão e imaginação para perceber os mais ricos contornos que nos envolvem, fornecendo pistas concretas para caminhos inusitados. Com o olhar banhado pela arte, somos capazes de desentranhar no mundo brechas reveladoras, em que o ar adentra pelas frestas.

No caso da presença de Francisco na Bienal de Veneza, inaugurando algo que nunca havia ocorrido antes no papado, ele quis igualmente chamar a atenção para a importância da arte no mundo dos excluídos, por isso ter optado por instalar o Pavilhão da Santa Sé na mesma Bienal no interior de um presídio feminino, na Ilha da Giudecca (28/04/2024). Com seu gesto queria indicar que os presídios podem ser lugares de arte, oferecendo “novas oportunidades”, e singulares, para delinear um campo de “renascimento moral e material, onde a dignidade das mulheres e dos homens não seja 'isolada', mas promovida através do respeito mútuo e do cuidado com os talentos e habilidades” de pessoas que foram privadas de sua liberdade. Um trabalho semelhante tem sido realizado aqui no Brasil pelo escritor Marco Lucchesi, favorecendo o incentivo às bibliotecas nos presídios. O livro é, sem dúvida, um “passaporte para o futuro”. Ele oferece uma oportunidade única de abrir o mundo da arte para os excluídos, e a literatura, não há dúvida, é “irmã gêmea da liberdade”.

IHU – O tema da Bienal veneziana era, precisamente, “Estrangeiros em todos os lugares”. O que esse mote nos inspira diante do mundo que vivemos?

Faustino Teixeira – No encontro com os artistas em abril de 2024, Francisco sublinhou que o mundo precisa, cada vez mais, dos artistas. A seu ver, “a arte tem o estatuto de 'cidade-refúgio'” e guarda um potencial bonito também para os estrangeiros.

Vivemos uma situação bem peculiar no século XXI, onde nunca se viu e conviveu tanto com o “outro”, em todos os lugares. Os espaços estão repletos de estrangeiros, num cosmopolitismo excludente, onde a presença do ódio e a repulsa conformam a relação entre as pessoas. E o mais perturbador nisso tudo é que esses “outros” abandonam os seus lugares de origem não por vontade própria, mas por fatores adversos como as guerras, a fome, a intolerância e as condições climáticas.

No prefácio de seu livro Êxodos (2000), Sebastião Salgado indica que esses exilados são todos “forçados a viver com que aprenderam acerca da natureza humana. Viram amigos e familiares ser torturados, assassinados ou desaparecerem, esconderem-se em porões enquanto suas cidades eram bombardeadas, viram seus lares sendo queimados até o chão”. O que vemos hoje, com tristeza, na Faixa de Gaza, é expressão viva da violência e do “desgaste da compaixão”.

O mote da Bienal de Veneza nos convoca a uma nova atitude face aos “outros”, aos estranhos e estrangeiros. Trata-se do exercício essencial do cuidado e da hospitalidade. O que marca a atitude do hospedeiro e a capacidade de doação: o gesto de oferecer comida e bebida. É o que podemos observar na bela passagem do livro do Gênesis, quando Abraãoacolhe com dignidade os três estranhos que se acercaram dele. Trata-se do episódio conhecido como “aparição de Mambre” (Gn 18,1-15) Seu gesto não foi de repulsa, mas de recepção positiva, oferecendo-lhes água e um pedaço de pão. Seu objetivo era confortar o coração dos que estavam ali.

IHU – Como pensar a Bienal de Veneza sob o signo da guerra no Oriente Médio?

Faustino Teixeira – A presença palestina na Bienal de Veneza é dos fatos mais significativos e importantes desse evento artístico. Uma presença que traduz um sol de resistência num tempo marcado por um dos mais violentos genocídios de nossa história, envolvendo a morte de quase 35 mil pessoas, incluindo mais de 12 mil crianças. Nada menos do que uma morte de criança a cada 10 minutos. Nessa implacável violência, inúmeros hospitais e unidades habitacionais foram destruídos sem pesar. Trata-se de “uma crise humanitária sem precedentes”. Como diz Leonardo Boff com razão, o Herodes de hoje tem um nome bem definido: Benjamin Netanyahu. Em janeiro passado, Edgar Morin destacou no Le Monde essa trágica lição da história, que evidenciou para nós como os descendentes de um povo perseguido é capaz de se tornar perseguidor e bastião avançado da intolerância. Tudo expressando, de forma triste, que a globalização não tem sido capaz de criar solidariedade e compaixão. E aqui no Brasil assistimos passivamente nomes de nossa intelligenziaafirmarem sem escrúpulos que o que ocorre, na verdade, é um processo que visa “depenar Israel e ajudar a geopolítica do Hamas”. E vamos dormir com um barulho desses!!!

Uma das peças mais impactantes da Bienal de Veneza em 2024 retratou o conflito atual em Gaza. Trata-se de uma grande pintura em preto e branco, que faz lembrar a Guernica de Picasso. É um trabalho de autoria da jovem pintora palestina, de 24 anos, Malak Mattar. A exposição dedicada à Palestina teve como nome “O cavalo caiu do poema”, título baseado num dos poemas de Mahmoud Darwish (1941-2008), que foi um dos mais destacados nomes na literatura palestina. Talvez a obra de Mattar tenha sido o maior destaque numa das três exposições sobre a Palestina na Bienal deste ano. Em sua presença destacada em Veneza, Mattar sublinhou que a arte tem o papel essencial de “documentar e gravar na memória” todas as ferocidades que desfiguram o ser humano. E isto para que tais atos nunca possam ser esquecidos. E acrescenta: “Daqui a algumas décadas, nos perguntaremos: qual foi o meu papel durante o genocídio mais bárbaro de nossa história moderna? Eu era apenas um observador passivo ou pedi um cessar-fogo, uma ação?” Em outro momento, a artista tinha expresso de forma viva o grande projeto de sua vida: “Quando a paz morre, abrace-a. Ela viverá novamente”. Como lembrou uma vez Edward Said, um dos mais importantes nomes do pensamento palestino, a causa palestina não é algo que toca apenas ao mundo árabe ou islâmico, mas diz respeito a tantos outros mundos diferentes. É, portanto, uma causa nossa.

Reprodução da obra de Malak Mattar "No Words", óleo sobre linho preparado, 218x485 cm, 2024 (Imagem cedida pelo artista).

IHU – O pavilhão da Santa Sé na Bienal da cidade italiana foi montado em uma prisão feminina com obras multimídia de detentas. O que esse gesto sinaliza em termos políticos e artísticos?

Faustino Teixeira – A visita de Francisco à Bienal de Veneza foi algo maravilhoso. Ele aproveitou a ocasião para retribuir a visita de um grande grupo de artistas que tinham sido acolhidos por ele em junho de 2023 na Capela Sistina. Para Francisco, como vimos, as diferentes práticas artísticas traduzem na verdade uma “rede de cidades-refúgio”. O projeto de Francisco é antepor a ideia de estrangeiros pela ideia de irmãos. O pavilhão da Santa Sé, intitulado “Com os meus olhos”, foi erguido no cárcere feminino de Giudecca. Ao escolher um presídio feminino, Francisco quis deixar uma mensagem bem clara: as prisões podem vir a ser um lugar singular de renascimento identitário, de reerguimento moral dos excluídos. As prisões podem oferecer oportunidades únicas para o crescimento humano e espiritual.

IHU – Qual a importância da literatura de Fernando Pessoa na contemporaneidade?

Faustino Teixeira – Em novembro deste ano estaremos recordando os 89 anos da morte de Fernando Pessoa. É dos nossos mais importantes nomes da literatura. As publicações sobre ele não param de surgir. Em 2022, pela Companhia das Letras, saiu a mais preciosa biografia sobre Pessoa, com 1.135 páginas, de autoria de Richard Zenith. Também organizado por ele, saiu em 2023 O livro do desassossego (Companhia das Letras), que é das mais importantes obras de Fernando Pessoa. O trabalho veio enriquecido com a numeração dos fragmentos, o que ajuda muito na pesquisa e leitura da obra. No Brasil, uma das grandes especialistas de Pessoa foi Cleonice Berardinelli, que publicou um importante livro: Fernando Pessoa: outra vez te revejo (2004). Ela e Maria Bethânia produziram também um maravilhoso DVD com poemas de Fernando Pessoa (O vento lá fora – Biscoito Fino, 2014).

Fernando Pessoa é um poeta que tem o dom de trazer para nós os enigmas mais profundos do mundo interior. Daí a grande identificação das pessoas com a sua rica narrativa. É também uma reflexão que nos proporciona entender a diversidade que nos habita. Assim como Pessoa se identificava com uma “multidão”, dada a riqueza da heteronomia, nós também somos habitados pela riqueza da diversidade, embora nem sempre consigamos traduzir tal diversidade em palavras. Fernando Pessoa, enquanto escritor “vulcânico”, fez brotar de si, de forma que nem ele mesmo conseguiu decifrar, uma multidão de alter egos, dos quais os mais conhecidos são Alberto Caeiro, que foi o grande mestre, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Temos também Bernardo Soares e o ortônimo Fernando Pessoa mesmo. E a riqueza de sua arte não se traduz só em poesia. Há também a rica prosa, bem como peças de teatro, contos e ficção policial, além de tratados sociológicos, filosóficos e teoria linguística, envolvendo ainda ensaios sobre religião.

A poesia de Fernando Pessoa tem, como diz José Gil, um magnético poder de captura. Não se entra impunemente no universo de Pessoa. Todos saem, de alguma forma, contaminados por suas questões e enigmas. Como mostra José Gil, “entrar em Pessoa é um perigo: eventualmente não mais de lá se sai”. É um poeta que provoca admiração e espanto; exasperação, sufoco e paixão. À medida que navegamos por seus heterônimos, logo vem uma identificação. É uma leitura pegajosa, que nos retém no seu regaço. Aos poucos vamos sendo devorados por suas indagações. Uma delas é fascinante e está presente em Caeiro e Ricardo Reis: o acento na imanência, o predomínio do real, do aqui e do agora. Com Ricardo Reis, em particular, o desafio de ser inteiro em cada coisa, colocando o melhor de si naqueles menores detalhes que tecem a nossa vida. Poder também curtir com alegria e nobreza os momentos fugazes de nossa existência. Como diz Reis em outro poema, devemos viver nossa travessia “sossegadamente”, sabendo que “passamos como o rio”. Viver nossa experiência de comunhão com os outros sem maior correria: “Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro ouvindo correr o rio e vendo-o”, como pagãos inocentes.

IHU – Como Alberto Caeiro mostra a relevância dos sentidos para a compreensão da realidade?

Faustino Teixeira – Alberto Caeiro é o poeta da materialidade, da profunda escuta da natureza, no que ela tem em si. É o poeta da “bambuidade do bambu”, da concentração profunda no mistério em si de cada coisa, sem interpretação ou metafísica. Caeiro é o grande mestre do ver e sentir, do radical despojamento de qualquer representação, de forma a poder mergulhar na materialidade do real, sem por quê.

Dentre todos os heterônimos de Pessoa, ele é o mais puro, isento de qualquer fabulação. Como ele dizia: “Eu não tenho filosofia, tenho sentidos”. Assim como os grandes místicos, Caeiro participa de uma “hemorragia do sentido”, reconhecendo que uma das mais graves doenças do mundo é a doença metafísica. Aquilo por que mais almeja é o desafio de “Ver”, e que pressupõe a apófase do pensar. O que Caeiro busca em sua poesia é adentrar-se na forma mais primitiva e imediata, que está para além da linguagem. Em sua busca está o desejo da unidade fundamental primitiva, de uma unidade que não prescinde da diversidade, mas que a pressupõe.

Como diz José Gil, o maior mistério de Caeiro é a “coexistência harmoniosa com a multiplicidade diferencial do mundo, com o movimento e a pluralidade das sensações”. Para ficar apenas com um exemplo dessa riqueza narrativa, vamos a um dos poemas:

O luar através dos altos ramos,
Dizem os poetas todos que ele é mais
Que o luar através dos altos ramos.

Mas para mim, que não sei o que penso
O que o luar através dos altos ramos
É, além de ser
O luar através dos altos ramos
É não ser mais
Que o luar através dos altos ramos.

IHU – Alberto Caeiro rejeita a mística tradicional da religião ao não acreditar em um Deus transcendente, mas sim em Deus que se faz presente na beleza da natureza, nas flores, nas árvores, naquilo que é palpável. Poderia nos contar sobre essa percepção mística e como ela se aproxima do Zen Budista, do Esoterismo e da Mística do Cotidiano?

Faustino Teixeira – Sem dúvida, a visão de Caeiro tem uma fina sintonia com a perspectiva Zen, como mostrou com clareza a estudiosa Leyla Perrone-Moisés, que dedicou ao tema reflexões preciosas. Há um capítulo de seu livro, Fernando Pessoa: aquém do eu, além do outro (Martins Fontes, 1982), todo voltado para responder ao tema do Caeiro-Zen. Como indica Perrone-Moisés, “os ensinamentos de Caeiro, como os de um zen-budista, consistem em trazer o homem de volta ao seu cotidiano mais elementar: um outeiro, uma janela, uma 'cadeira predileta', as árvores que dão fruto à sua hora, o rio que corre sempre igual, 'a chuva quando a chuva é preciosa', as estações que se revezam”.

O olhar de Caeiro sobre as coisas é um olhar marcado pela simplicidade e também nitidez, sem qualquer interrogação metafísica. Ele simplesmente olha. É como o olhar singelo de uma criança, que é “pasmo essencial”, de uma criança que a cada momento nasce para “a eterna novidade do mundo”. Não se trata de um olhar de conhecer, mas de um olhar que desvela a naturalidade do ver:

Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.

O materialismo de Caeiro, assim como o de Ricardo Reis, é bem radical. Todo o seu olhar descansa numa perspectiva imanente. Não há, absolutamente, nenhuma transcendência. Se há algum sentido oculto das coisas, diz o poeta, é elas “não terem sentido oculto nenhum”. Caeiro é um argonauta das sensações imediatas, um poeta dos instantes imprescindíveis. Sua narrativa é a de alguém que se deita na erva e sente seu corpo todo tomado pela realidade. É o corpo que se adentra nas entranhas da realidade, enquanto parte dela, “no plano de imanência da natureza”. Como Caeiro diz num de seus poemas, “a borboleta é apenas borboleta e a flor é apenas flor”. O misticismo de Caeiro é simplesmente viver, como o peixe na água: “O meu misticismo é não querer saber. É viver e não pensar nisso”.

IHU – O senhor é um antigo parceiro do IHU e já ministrou diferentes cursos sobre literatura. Qual o significado do curso sobre Mística em Fernando Pessoa? Qual a importância de compreendermos essa mística tão presente na literatura?

Faustino Teixeira – Sinto que é muito prazeiroso e desafiador abordar a mística em Fernando Pessoa. Sobretudo depois de navegar com carinho e cuidado em autores da literatura brasileira como Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Graciliano Ramos. Não é tarefa fácil, mas gosto de lidar com desafios inusitados. Esse meu curso sobre Fernando Pessoa tem suscitado em mim belas sensações e interrogações. E isto vem partilhado pelas amigas e pelos amigos que seguem o meu curso no IHU.

Escolhi abordar o tema a partir de um dedicado trabalho a um dos heterônimos fundamentais, que é Alberto Caeiro. A ele vou dedicar uma parte importante do curso, talvez em razão de sua afinidade com o pensamento Zen. Pretendo, porém, dar também uma atenção particular a Bernardo Soares e o Livro do desassossego. Trata-se de um livro composto por fragmentos de uma densidade única. De todos os textos que compõem o livro, apenas doze foram publicados durante a vida de Fernando Pessoa. Deixou em “variadíssimos estados de elaboração”, cerca de outros 450 trechos, que depois foram reunidos na primeira edição do livro. Como mostrou Richard Zenith, é na desarrumação dos fragmentos que se manifesta a grandeza desse livro de Pessoa. Dos fragmentos colhidos no famoso baú de Pessoa, alguns estão mais polidos, enquanto outros encontram-se em estado mais bruto, favorecendo a riqueza plural de seu conteúdo final. Para Zenith, “nenhuma obra de Pessoa interagiu tão intensamente com o resto de seu universo”. Daí esta minha opção em concentrar minhas energias no curso no olhar mais próximo de Caeiro e Bernardo Soares.