sábado, 21 de dezembro de 2024

O choque de desenraizamento

 O choque de desenraizamento

 

Faustino Teixeira

 

Há um traço importante destacado no livro de Didier Eribon, “Vida, velhice e morte de uma mulher do povo” (2024 – o original é de 2023), diz respeito ao problema que afeta aqueles que são “internados” pelos filhos ou parentes em casas de repouso durante a velhice. No livro assinalado, o autor está falando de sua mãe, uma mulher simples que passou pelas experiências de faxineira e operária e depois se aposentou. Mais adiante, passou a necessitar de cuidados mais especiais, quando então foi deslocada para uma casa de repouso pelo filho. O grande choque que marcou a internação de sua mãe veio identificado como um “choque de desenraizamento”. É o mesmo choque que esteve presente na personagem do filme “Une belle course”, de Christian Carion, que morre pouco depois da internação. 

 

O livro de Eribon levanta para todos nós uma séria questão, em torno das escolhas que fazemos para os nossos pais. É um livro que se coloca no limite entre o testemunho e o ensaio sociológico. A experiência de internação da mãe de Eribon marcou uma mudança profunda em sua vida, que passa a ficar mais concentrada no quarto da instituição: “prisioneira em um quarto, sozinha, deitada em uma cama, incapaz de se levantar, de andar e de se mexer”. Como assinalou Eribon, “a velhice muito avançada, modifica, depois anula e destrói totalmente essa relação ontológica com o espaço e com o tempo”. Um dado é certo, o processo de envelhecimento produz, de fato, “estranhas alterações na sua relação com a realidade”.

 

Durante os tempos iniciais da internação, a mãe de Eribon manifestou por diversas vezes o seu estranhamento com a instituição, expressando sua revolta com sentimentos de agressividade e raiva: ela “estava zangada com o que lhe acontecia, queixava-se de tudo, mas aparentemente tinha deixado de delirar”. Tratava-se de algo que já se manifestara antes de sua internação. Passava uma boa parte de seu tempo dormindo, em razão também dos medicamentos que começou a tomar. Ao mesmo tempo, para complicar a situação, o número de efetivos para o cuidado com os internados era insuficiente, e a rotatividade grande. A dedicação dos auxiliares aos pacientes tinha um tempo bem reduzido. Relata Eribon:

 

“A verdade é simples: nesses estabelecimentos, o pessoal está permanentemente em número menor do que o necessário, e as auxiliares têm  de correr de um quarto para  outro para cuidar dos residentes que estão especificamente sob seu cuidado, porque, geralmente, dispõem de apenas alguns poucos minutos para se dedicarem a cada pessoa, e têm de correr de um quarto para outro para responder às chamadas de outros residentes que precisam delas...”

 

Eribon sublinha que não é incomum ocorrerem maus tratos e procedimentos realizados para poupar a presença cuidadora, como a diminuição dos banhos, o uso abusivo de fraudas, o gradeamento das janelas, a restrição ao uso de apetrechos particulares, inclusive celulares, e o maior “aprisionamento” dos “clientes” em camas com grades laterais. Era como “as paredes do quarto tivessem se deslocado”.

 

Foi quando então Eribon foi se dando conta da “imoralidade” presente nas instituições voltadas aos cuidados de idosos franceses (os EPHADs). O autor acrescenta que nas instituições privadas a situação ainda é mais precária, e a vontade de lucro predomina, num mercado cada vez mais lucrativo dos assim denominados “ouro cinza”, em referência aos cabelos grisalhos dos idosos. Eribon pôde se dar conta de que as casas de repouso e os hospitais públicos participam da mesma precariedade no acolhimento aos idosos, aos frágeis e doentes, ou seja, a todos aqueles que dependem de cuidados. São em boa parte instituições que estão “muito aquém do minimamente esperado, para não dizer que elas são hoje totalmente inaceitáveis”.

 

No caso da mãe de Eribon, ela não conseguiu viver ali além de sete semanas antes de falecer. E o autor assinala que nos artigos em que leu sobre o tema, pôde verificar que essa experiência de “abandono” dos idosos não são incomuns. E a ocorrência de morte de idosos depois dessas internações é verificada, e alguns médicos a descrevem como sendo um “suicídio inconsciente”. Quando internou sua mãe na instituição, Eribon foi alertado por um dos médicos que os dois primeiros meses nessas instituições são os mais difíceis, em razão do choque de desenraizamento. Muitos não suportam a mudança e morrem pouco tempo depois. 

 

O relato de Eribon é específico para o caso da França, mas não tenho dúvida de que situações similares ocorrem em outras partes do mundo e também no Brasil. Não se trata de um relato antiquado, mas que aborda uma situação recente, num livro de 2023. É mais que urgente tratarmos com seriedade essa questão que envolve os nossos idosos.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

A questão da verdade

 A questão da verdade...

 

Ainda comentando o livro de Didier Eribon, sobre “a vida, velhice e morte de uma mulher do povo” (2024), ele aborda em certo momento a questão das casas de repouso, destino quase certo de muitos de nossos idosos pelos mundo afora. Ele observa:

 

“Em dado momento, temos ciência de que vamos viver em um quarto como esse, provavelmente em uma casa de repouso semelhante. Não há como não temer isso. Não sabemos quando nem como chegaremos a esse lugar. Em que veículo? E quem nos levará até lá (...). Por isso, juramos a nós mesmos que, quando esse dia chegar, preferiremos ouvir a verdade”.

 

Num conto de J.M. Coetzee (1940 -) – Nobel de Literatura em 2003, nomeado “Mentiras” (no livro Contos Morais -2021), ele aborda o tema de um filho e filha de uma escritora que tentam convencer a mãe, já idosa, a ir morar numa casa de repouso. Ela resiste à investida dos filhos com firmeza. Em visita à mãe, certa tarde, o filho John constatou que o estado dela era delicado. Já não conseguia andar sem bengala e tinha dificuldade de subir as escadas da casa, onde estava o seu escritório.

 

Não vivia sozinha, tinha a companhia de Pablo, um ajudante que dormia na cozinha. Preocupado com os “arranjos de sobrevivência” da mãe, o filho tenta, de toda forma, convencê-la a sair de casa. E a ameaça: “Você sofreu uma queda séria e é só questão de tempo sofrer outra”.  A mãe reage, sublinhando a presença de Pablo na retaguarda. O filho insiste na ideia, dizendo que se ela não tivesse conseguido ligar para o hospital, poderia estar hoje em outro local... E a mãe responde: “Você parece saber a resposta, então para que perguntar? Debaixo da terra, sendo devorada pelos vermes, acredito. É isso que você quer dizer?”. O filho pede a mãe para ser razoável, e assinala que sua irmã – Helen – já tinha sondado um lugar onde a mãe poderia ser bem cuidada, sentindo-se em casa (sic!). A mãe rebate, ironizando sobre a ideia de que naquela instituição ela poderia sentir-se em casa... O filho, então, retoma o argumento, sublinhando para ela que seu estado não tende a melhorar, e que seria complicado para ela permanecer numa cama em aldeia esquecida, contando apenas com a ajuda do Pablo. E o filho conclui dizendo que é assim que se faz quando se ama alguém... E se dispõe a ajudá-la a empacotar o que for importante para ela. Reconhece que tais instituições não constituem a melhor solução, mas revela-se como um meio-termo entre o que se pode desejar e que se revela bom diante de tal situação. Revela ainda que lá na instituição ela poderá ter seu próprio “apartamentinho” e inclusive um pequeno jardim.

 

Já desacreditata, a mãe lança uma questão ao filho: “Quero, só para variar, como um exercício apenas, me diga a verdade. E ele responde: “A verdade é que você é uma mulher idosa que precisa de cuidados”. Não contente, ela volta a perguntar: “Me diga a outra verdade, a verdade verdadeira”. A pergunta fica sem resposta. Talvez a verdade que ela gostaria de ouvir é que ela estivesse talvez morrendo. Isso o filho, já impaciente, não conseguiu dizer.

 

Mais tarde, o filho escreve para a mulher, Norma, propondo um “pacto de sinceridade”. Diz a ela que vai chegar um dia em que os dois terão que dizer a verdade verdadeira, e escreve: “A verdade verdadeira é que você já está incapaz no mundo, e amanhã pode estar ainda mais incapaz, e assim por diante dia após dia, até chegar o dia em que não vai dar mais. A verdade verdadeira é que você não está em posição de negociar. A verdade verdadeira é que você não pode dizer Não (...). Aprenda a dizer Sim (...). Deixe para trás as coisas familiares, venha e more – sim – numa instituição, onde uma enfermeira de Guadalupe vai te acordar de manhã com um copo de suco de laranja e uma saudação alegre (Quel beau jour, Madame Costello!), você não feche a carranca, não finque os pés. Diga Sim. Diga, eu concordo. Diga, eu estou em suas mãos. Faça o que for melhor”.

 

Simplesmente...

Você vai ficar bem...

 “Você vai ficar bem...”

 

Faustino Teixeira

 

Bem impactante o livro de Didier Eribon, o clássico filósofo e sociólogo francês, com o título: “Vida, velhice e morte de uma mulher do povo” (Belo Horizonte: Âyiné, 2024 – o original é de 2023). Ele relata no livro o delicado processo de internação de sua mãe numa instituição de cuidados contínuos. É doloroso todo o processo que envolve o acompanhamento de sua mãe para a “casa de repouso”. 

 

Ele relata que hoje se arrepende profundamente de ter dito para a sua mãe na ocasião: “Não se preocupe. Eles vão cuidar bem de você aqui. Você vai ver, você vai ficar bem”. Isso faz lembrar uma dura canção de Jean Ferrat: “Tu verras, tu seras bien” (Você vai ver, você vai ficar bem). Os velhos, coitados, chegam a um momento em que são privados de liberdade. Como diz o texto bíblico: 

 

“Quando eras jovem

tu te cingias

e andava por onde querias;

quando fores velho,

estenderás as mãos

e outro te cingirá

e te conduzirá aonde não queres” (Jo 21,18)

 

Doce a ilusão de se imaginar que alguém que vai para um “asilo” receberá com frequência a visita de seus queridos, seja parentes ou amigos. Como indicou Eribon, su mãe tinha a ilusão de que os filhos e parentes iriam visitá-la sempre. Não foi o que ocorreu, e o que ocorre com frequência. As visitas só se realizaram de vez em quando, e com o passar do tempo os encontros foram se desvanecendo.

 

Por mais esforço que Eribon tenha feito para levar para o “quarto” as coisas de que sua mãe gostava, incluindo seus quadros e sua velha televisão, aquele lugar nunca tinha o mesmo acolhimento e ternura de sua casa... Foi ainda mais difícil para ele sinalizar para a sua mãe, que a situação iria apenas piorar dali em diante. Nas casas de repouso vale o ditado: “A morte é certa, mas a hora é incerta”. 

 

Numa frase cortante dita por meu terapeuta, nós somos a última geração que cuidaremos dos pais. O destino de todos nós, infelizmente, é viver no futuro num quarto de “asilo”, cercado de atividades lúdicas, fraudas e desencanto (sic!). Como diz com acerto Eribon, “quem entra em uma casa de repouso sabe, e não tem como deixar de saber, apesar dos rituais de denegação e de fingimento mútuo, que este será o último lugar em que vai morar”. 

 

A dura verdade é que nossa sociedade e nossos parentes não estão aparelhados para lidar com a questão da velhice. Igualmente, nossas instituições de saúde não estão preparadas para lidar com os cuidados paliativos. Como vem mostrando a doutora Ana Claudia Arantes, “apenas 0,3 % das pessoas que precisam de cuidados paliativos têm acesso a eles”no Brasil. E nossa população envelhece a cada dia. A expectativa de vida também vem aumentando no Brasil, alcançando agora a idade de 78 anos. Por volta de 1950, um em cada cinco pessoas no Brasil terá mais de 60 anos. E um dado ainda mais alarmante, aos 85 anos de idade, de duas pessoas, uma terá algum tipo de demência complexa, sobretudo o Alzheimer. O que também preocupa é o crescimento de índice de suicídios entre idosos, com taxa mais elevada entre aqueles que têm 80 ou mais anos. São dados divulgados pela doutora Ana Claudia, e que traduzem um sério alarme.

 

Retornando ao livro de Eribon, ele sugere a leitura de dois livros importantes para lidar com o tema da velhice, que para ele foram fundamentais: “A velhice”, de Simone de Beauvoir e “A solidão dos moribundos”, de Norbert Elias. O autor também comenta o precioso romance de Shichirô Fukazama, Narayama, que relata a delicada situação de uma aldeia japonesa, onde as pessoas que alcançavam a idade de 70 anos, eram levadas para uma montanha, e ali iriam aguardar a morte. Todas tinham que abandonar o aconchego familiar e se direcionarem para um lugar sem retorno. O romance serviu de base para o precioso filme: “A balada de Narayama” (1983). De Shôwei Imamura, um clássico do cinema mundial. A primeira adaptação do romance para o cinema ocorreu antes, em 1958, com o diretor Keisuuke Kinoshital

 

Recentemente, no Festival Varilux, pudemos apreciar o delicado filme de Christian Carion, “Une belle course” (2023 – em português saiu com o título: Conduzindo Madeleine), que aborda o tema da ida de uma senhora de 92 anos, Madeleine, para o asilo derradeiro. No filme, ela solicita ao motorista de táxi, Charles, uma pessoa bem mal humorada, para conduzí-la pelos lugares de Paris que marcaram a sua vida. Ao longo do périplo, os dois vão ganhando intimidade e vivem uma bonita experiência de amizade. Depois de um longo percurso, ela chega finalmente à casa de repouso, e sua estadia ali dura pouco tempo.