sábado, 27 de maio de 2023

A eutanásia em questão: reflexões a partir da Travessia de Rita Lee

 A Eutanásia em questão: reflexões a partir da Travessia de Rita Lee

 

 

Faustino Teixeira

UFJF/IHU

 

 

“Se por acaso morrer do coração
É sinal que amei demais
Mas enquanto estou viva
Cheia de graça
Talvez ainda faça
Um monte de gente feliz!”

 

Rita Lee

 

 

 

Em sua Outra Biografia, publicada no Brasil em 2023 pela GloboLivros, Rita Lee relata o seu sentimento ao saber do diagnóstico de câncer, em abril de 2021. Era um câncer de vinte centímetro de perímetro no pulmão esquerdo. Assim ela relata o começo de sua jornada pela doença e a dinâmica de seu tratamento. 

 

Foi uma situação que ocorreu durante a pandemia da Covid, o que complicou o processo. Com a retirada dos remédios tarja preta, a situação psicológica se complexificou, com relatos difíceis sobre as insônias no hospital. Chegou a passar três dias e três noites sem dormir. 

 

Na conversa dela com seu médico oncologista narrou o trauma daquele início de internação e solicitou ao profissional que intervisse terminando logo com a história de sofrimentos que começava e se anunciava cada vez mais difícil. 

 

Em sua narrativa ela desejava que tudo aquilo ali acabasse logo de uma vez, e que por ela “tomava o ´chazinho da meia-noite` para ir desta para melhor”[1]. Solicitou a ele  que a “deixassem fazer uma passagem digna, sem dor, rápida e consciente; queria estar atenta para logo recomeçar” seu “caminho em outra dimensão”. 

 

Expressou com clareza para o especialista que era “totalmente favorável à eutanásia” e que era preciso “morrer com dignidade”. A reflexão de Rita vinha corroborada pela triste memória do sofrimento de sua mãe durante o tratamento contra o câncer, que não significou para ela um horizonte diferente daquele vivido por tantas outra pessoas que morreram com a doença.

 

Diante da proposta da cantora, o médico contra-argumentou defendendo outro caminho, buscando explicar a ela as grandes mudanças sofridas pela medicina nos últimos 45 anos, e argumentando em favor da imunoterapia, “um tratamento relativamente novo que rendeu o prêmio Nobel de Medicina em 2018 ao estadunidense James P. Allison”[2].

 

Sugeriu ainda que ela fizesse o tratamento conjugando-o com a radioterapia. Rita Lee só aceitou submeter-se ao tratamento pelo amor de seus queridos “boys Carvalho/Lee”, que a aconselharam a fazer o tratamento indicada, mas reitera que por ela a cerimônia de adeus ao “mundo cruel” estaria decidida.

 

Como a imunoterapia não surtiu o efeito esperado, Rita Lee teve que se submeter à quimioterapia, que denominou de “ceifadora Cruela”, e outros sofrimentos vieram se somar às crises de pânico, como o caroço que apareceu perto de sua costela direita e que apelidou de Jair. 

 

Tudo tão difícil, apesar do carinho imenso concedido pela família. Ainda com esperança, Rita passou a “invocar força para os soldados da Luz curadora que enfrentariam os inimigos mocozeados” dentro de si[3]. Nas sessões de quimio lembrava-se sempre de sua mãe, que ao final foi se tornando “uma flor cada vez mais murcha e amarronzada”. 

 

Rita se deu conta de que todo aquele procedimento químico era a expressão viva de que ainda estávamos na “Idade Mérdia”, com medicamentos cada vez mais onerosos e que alimentavam a sede voraz da indústria farmacêutica[4], que, aliás, continua a financiar os congressos de profissionais da área. Após as sessões de químio, Rita sentia a pegada do medicamento. Dizia que no dia seguinte o corpo ficava de tal forma dolorido, que era como se ela “tivesse lutado com Mike Tyson”[5]. E vinha, às vezes, com densidade, a vontade de “fazer a passagem em casa e sem dor”[6].

 

Em outros momentos era tomada por um fenômeno bonito, quando batia “um estado de graça” que a fazia agradecer a Deus os “segundos de epifania e bênção existencial, uma espécie de kundalini que dura uma brisa”[7]. Eram pequenos “jorros de luz”, que não duravam senão segundos[8]. Era, por exemplo, a sensação bonita que sentia ao estar no banho, sob o chuveiro, podendo agradecer ao Plano Divino “por estar naquele lugar”  que a fazia lembrar de uma generosa cachoeira[9].

 

Era uma vida que mesclava sofrimento e réstias frágeis de alegria. Às vezes, comenta Lee, baixava “uma deprê, uma angústia, uma melancolia captada” por sua “antena paradiabólica” e então largava-se “debaixo de uma cabaninha feita de lençol, debaixo da cama ou de dentro de um armário”[10].

 

Ao ler essa passagem veio-me imediatamente a imagem do filme Melancolia, de Lars von Trier, com aqueles sobreviventes tentando se proteger do violento planeta que vinha ao encontro deles numa frágil cabaninha improvisada de bambus. É o que ocorre muitas vezes com os doentes de câncer, que buscam se amparar em frágeis esperanças. Alguns têm sorte, mas outros são vencidos pela flecha da realidade.

 

Rita Lee sofria igualmente ao pensar “nos doentes entubados vegetando e que ninguém desligava os aparelhos dos coitados para eles terem uma morte digna”[11]. Era igualmente difícil para ela, uma mulher que sempre foi independente e livre, estar agora dependendo dos outros para fazer coisas simples, e ver anexadas ao seu corpo as sondas que propiciavam sua alimentação. 

 

O que a mantinha firme no desejo de continuar viva era estar diante da beleza do amor dos queridos que a acompanhavam, apesar de seus 38 quilos. E certo dia escreveu na porta de um banheiro do hospital: “Foda-se, o que vier eu traço”[12].

 

Não era, porém, nada fácil lidar com a dura realidade, como, por exemplo estar nu diante do espelho. Diz Rita: “Outro dia fui tomar banho e me deparei comigo pelada na frente do espelho e enxerguei uma franga depenada, perninhas de graveto, pele amarelada da rádio, coxas drapeadas, ou seja, uma galinha velha que nem bom caldo daria”[13].

 

Há cenas muito duras no livro, quando por exemplo Rita descreve as “coisas” que saíram de seu organismo durante seu tratamento. Ela menciona um impressionante episódio que ocorreu com ela, quando viu sair de seu corpo  “uma tripa cor de carne crua” de cerca dez centímetros. Pensou até em fotografar a coisa estranha, mas acabou logo jogando aquilo no vaso e deu descarga[14]. E como era difícil lidar com o xixi com cheiro de Chernobyl[15].

 

Fiquei impressionado com a tranquilidade e a maturidade de Rita Lee diante desta hipótese ainda sem nenhuma cidadania no Brasil. É duro perceber que ela passou por momentos muito difíceis em seu tratamento, com crises tremendas de pânico, insônias e outra situações. 

 

Na última página de sua autobiografia, Rita Lee, depois de saber que no último Pet Scan as notícias não eram nada favoráveis, revela a importância de viver a partir daí “um dia de cada vez”. Tudo ao seu redor foi se acalmando, até seus bichinhos mais queridos. E na última frase, revela: “Tudo bem. Quando eu morrer, não levo nenhum abajur, só o amor dos bichos”[16].

 

Na linda entrevista concedida por Roberto de Carvalho no Fantástico de 14 de maio de 2023, ele revelou para Renata Ciribelli que em verdade Rita não queria partir, pois amava muito a vida. Ela tinha consciência clara de que sua Outra Autobiografiaera mesmo o seu “último ato”. 

 

Roberto, em momento singular da entrevista, narra que os momentos finais da cantora foram de grande leveza, calma e doçura. Já consciente da gravidade de sua situação, foi se apagando levemente, como a luz da vela, sem perder o brilho. Seu grande amor revelou que ela ao final parecia uma criancinha, um passarinho, que foi sossegando até partir em paz[17].

 

Ainda sobre esse complexo tema da Eutanásia gosto de mencionar um livro em particular, de autoria Irvin D. Yalom e Marilin Yalow: Uma questão de vida e morte. Amor, perda e o realmente importa no final. São Paulo: Planeta 2021. 

 

É a história de um casal que passou toda a vida numa união bonita e profunda, e que enfrenta com coragem e seriedade o desafio da morte, a “indesejada das gentes” que acabou separando um enlace de sessenta e cinco anos. No prefácio da edição brasileira, escrito por Alexandre Coimbra Amaral, ele sublinha que o melhor mérito do livro foi desvendar a verdade desconcertante com que o casal lidou e escreveu sobre a proximidade da morte[18].

 

Digo a vocês, que a cada dia que passa venho refletindo com seriedade sobre esta questão da eutanásia, da ortotanásia e da distanásia. A eutanásia ocorre quando a morte vem antecipada com a finalidade de interromper o sofrimento de doentes terminais, sem chance alguma de recuperação. 

 

A eutanásia envolve a presença de um agente externo. Há casos também de suicídio assistido, quando o próprio paciente em estado terminal solicita a interrupção da vida. A ortotanasia respeita a morte no tempo certo. É um procedimento que que busca resguardar ao máximo a humanização do paciente na sua dinâmica de travessia. A distanásia busca prolongar ao máximo a vida do paciente, mediante o recurso de instrumentos artificiais.

 

A prática da eutanásia é permitida em alguns países como a Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Suiça (no caso, o suicídio assistido), Canada e alguns lugares dos Estados Unidos, como os estados da Califórnia, Montana e Oregon. A prática não vem permitida no Brasil, sendo proibida por lei.

 

São vários os argumentos que vêm a meu favor, sobretudo no caso de pessoas mais idosas, que são forçadas a viverem situações de muito dor e solidão nos momentos derradeiros de sua vida, sobretudo diante de casos que são comprovadamente terminais. E numa sociedade onde talvez sejamos os últimos casos em que os filhos ainda cuidam dos pais nesses momentos duros de passagem.

 

Há também outro agravante, com a mudanças em planos de saúde, que acabam não cobrindo gastos pesados com o tratamento oncológico, por exemplo. De médicos que aceitam a cuidar dos pacientes durante as consultas clínicas com a cobertura de planos de saúde, mas que nas cirurgias cobram por seus procedimentos. 

 

Tem também a ciranda das opiniões de especialistas, cada qual dando o seu pitaco, com referências fundadas nos periódicos mais avançados, e opiniões contrastantes que deixa o paciente e sua família num grande atordoamento face às sérias decisões a serem tomadas. Em sua recente autobiografia, Rita Lee desabafa: “Estou cansada de chutes dos tais especialistas, que um dia dizem uma coisa e no outro desdizem na cara dura”[19].

 

Além da luta dos pacientes para conseguirem cobertura para os medicamentos de altíssimo custo para o tratamento. Quando ocorre a decisão legal favorável, que demanda tempo, nem sempre estão mais em condições de saúde de responder ao medicamento.  São situações concretas que quebram financeiramente qualquer família. É claro que ainda temos o SUS que é a salvação de muito gente nesse país do descaso.

 

Acho que o tema mereceria um debate mais digno por parte dos profissionais de saúde, e de outros segmentos do saber como filósofos, teólogos, antropólogos, profissionais da saúde, literatos e outros estudiosos de temas relacionados às doenças terminais e aos tratamentos paliativos em curso e a preparação da morte. 

 

Na minha visão pessoal, não tenho dificuldade alguma com a eutanásia, embora admita que a ortotanásia surta efeitos positivos para certos casos. Temos, sim, que oferecer condições mais dignas para o morrer e superar preconceitos ou teses de fundo teológico ou religioso que obstaculizam uma reflexão mais ousada e séria sobre a questão. 

 

O teólogo que mais me ajudou a refletir sobre o tema foi o suíço Hans Küng em seu brilhante livro: “Uma batalha ao longo da vida. Ideias, paixões, esperanças. A minha recordação do século (Editora Rizzoli de Milão, 2014, sendo o original de 2002). Ele aborda ao final de seu longo livro a questão do envelhecimento. 

 

Narra com pormenores o seu caso pessoal de deteriorização de sua condição de saúde. Fala das moléstias que começaram a prejudicar os seus órgãos fundamentais: as artroses nas mãos, o prejuízo na audição, os problemas na vista e sobretudo o mal de Parkinson. 

 

Ele lança na ocasião uma pergunta fundamental: “Por quanto tempo continuarei a estar bem?”. Fala também da sua vontade de morrer em casa e não internado e isolado num hospital ou casa de cura. 

 

Ele reflete com seriedade sobre o tema, contrabalançando sua posição em favor da eutanásia com os argumentos em contrário. E levanta uma questão muito séria: 

 

“Onde está escrito que o ser humano tenha que perder a responsabilidade de sua própria existência quando se depara com o fim da vida?”[20]

 

Na leitura do evangelho de João, se diz em certo momento: 

 

Em verdade, em verdade, te digo:

Quando eras jovem

tu te cingias

e anda por onde querias;

quando fores velho,

estenderás as mãos

e outro te cingirá

e te conduzirás aonde não queres ir” (Jo 21, 18)

 

O teólogo Hans Küng acerta em ao levantar uma questão que é decisiva: “O ser humano tem o direito de morrer quando não vê mais esperança de uma vida humana conforme os próprios critérios pessoais”[21].

 

Relata pormenorizadamente sobre o modo como gostaria de morrer e seus planos de adesão a uma organização suíça em favor da eutanásia. No seu caso, morreu antes, em abril de 2021, mas deixou para nós essa importante reflexão, que não pode ser relegada. 

 

Na ocasião em que escreveu o livro, publicado em 2002, ele fala da experiência de uma forma bonita, digna e séria: 

 

“Entro assim no infinito da pessoa finita. Embarco numa última e decisiva estrada, totalmente diversa, não em direção ao cosmos e nem além de seus confins, mas para o núcleo da realidade”[22]

 

Fala também do retorno ao Mistério de Deus. Reconhece com dignidade, como cristão, que ao final da vida não estará diante do nada, mas do “tudo que é Deus”. E acrescenta: “Justamente na hora da tristeza e do adeus, que celebramos com gratidão, devemos encontrar a fé e a força para afrontar também o futuro, o nosso futuro, sem ter muito medo da morte”[23].

 

No epílogo do livro, Hans Küng  reflete sobre o seu “último amém”, quando passa a enfrentar a gravidade de sua degeneração macular e o mal de Parkinson, que provocam graves empecilhos ao que ele mais gosta de fazer que é escrever. Sublinha que nesse tempo derradeiro vem brindado com a alegria da leitura livre e prazerosa, da escuta gratuita das músicas que o apetecem e do encontro com os amigos. 

 

Revela sua emoção ao poder contemplar o que há de belo e maravilhoso ao seu redor. Reitera a consciência de que ele é sujeito da complexa decisão de quando e como morrer É algo que diz respeito à sua responsabilidade. E confirma com serenidade que no horizonte de sua vida estará entregue nas misericordiosas mãos de Deus[24].

 

Fui muito tocado pelo maravilhoso filme franco canadense, dirigido por Denys Arcand, “As invasões bárbaras”, onde esse argumento vem abordado de forma simplesmente maravilhosa. 

 

Penso que nossa morte tinha que ocorrer num momento em que pudéssemos ainda estar conscientes, afinados com a dinâmica da vida e do amor ao cosmos, e que a cerimônia de Deus, dentre de parâmetros muito bem estabelecidos pela ciência médica, podia ser precedida de uma linda festa com os amigos queridos e os parentes próximos, sem precisar entrar num túnel de escuridão, solitário e penoso, com os pesados gastos da medicina paliativa, mas destituído do germe da alegria.  Viva a Vida!

 

Para concluir, partilho essa linda oração de um mestre tibetano que era objeto da meditação diária de Rita Lee. O seu nome: “A grande invocação”:

 

“Do ponto de Luz na mente de Deus, que flutua Luz à mente

dos homens, que a Luz desça à Terra.

Do ponto de Amor no coração de Deus, que flua Amor

ao coração dos homens, que Cristo retorne à Terra.

Do centro onde a vontade de Deus é conhecida, que o 

Propósito guie as pequenas vontades dos homens, o Propósito

que os mestres conhecem e servem.

Do centro a que chamamos a raça dos homens, que

se realize o Plano de Amor e de Luz e feche a porta onde

se encontra o mal.

Que a Luz e o Amor e o Poder restabeleçam o Plano Divino

sobre a Terra.

 

 

 



[1]Rita Lee. Outra autobiografia. São Paulo: Globo Livros, 2023, p. 23.

[2]Ibidem, p. 23

[3]Ibidem, p. 63.

[4]Ibidem, p. 82.

[5]Ibidem, p. 111.

[6]Ibidem, p. 51

[7]Ibidem, p. 51.

[8]Ibidem, p. 111.

[9]Ibidem, p. 100.

[10]Ibidem, p. 100

[11]Ibidem, p. 64.

[12]Ibidem, p. 70.

[13]Ibidem, p. 92.

[14]Ibidem, p. 81.

[15]Ibidem, p. 99

[16]Ibidem, p. 184.

[18]Irvin D. Yalom & Marilyn Yalom. Uma questão de vida e morte. Amor, perda e o que realmente importa no final. São Paulo: Planeta, 2021. Podemos ainda citar: Vitor Hugo Brandalise. O último abraço. Uma história real sobre eutanásia no Brasil. São Paulo / Rio de Janeiro: Record, 2017.

[19]Ibidem, p. 91.

[20]Hans Küng. Una battaglia lunga una vita. Idee, passioni, speranze. Il mio racconto del secolo. Milano: Rizzoli, 2024 (O original alemão é de 2002),

[21]Hans Küng. Una battaglia lunga una vita,  p. 1085.

[22]Ibidem, p. 1086.

[23]Ibidem, p. 1088.

[24]Ibidem, p. 1110.

quarta-feira, 24 de maio de 2023

A ortotanásia em questão

 A Ortotanásia em questão

 

Faustino Teixeira

UFJF/IHU

 

 

Em matéria da UOL de hoje, 24/05/2023, relata-se a passagem do livro em que Rita Lee considerou depois do diagnóstico de seu câncer a possibilidade da Eutanásia. A matéria diz:

 

“Crises de pânico após descobrir câncer. No livro, a rainha do rock conta o câncer descoberto em 2021 lembrou a morte da sua mãe, também vítima de câncer. Rita teria enfrentado o impacto entre crises de pânico. 

 

´Contei [ao chefe da área de oncologia do hospital] do trauma que ficou em mim por ter visto sofrimento da minha mãe fazendo esses dois procedimentos quando teve câncer`. 

 

Terror pela mesma situação que a sua mãe viveu anos atrás. ´Eu disse a ele [ao médico] que minha vida tinha sido maravilhosa e, que por mim tomava o 'chazinho da meia-noite' para ir desta para melhor. Que me deixassem fazer uma passagem digna, sem dor, rápida e consciente; queria estar atenta para logo recomeçar meu caminho em outra dimensão. Sou totalmente favorável à eutanásia. Morrer com dignidade é preciso.`”

 

Fiquei impressionado com a tranquilidade e a maturidade de Rita Lee diante desta hipótese ainda sem nenhuma cidadania no Brasil. É duro perceber que ela passou por momentos muito difíceis em seu tratamento, com crises tremendas de pânico, insônias e outra situações. Não tenho ainda outros dados precisos pois não Lee sua “tanatografia” que acaba de sair. Impressiono-me com sua coragem ao descrever com serenidade tudo o que passou.

 

Digo a vocês, que a cada dia que passa venho refletindo com seriedade sobre esta questão da ortotanásia, que é a forma que eu prefiro dizer quando abordo o tema da morte com dignidade. São vários os argumentos que vêm a meu favor, sobretudo no caso de pessoas mais idosas, que são forçadas a viverem situações de muito dor e solidão nos momentos derradeiros de sua vida, sobretudo diante de casos que são comprovadamente terminais. E numa sociedade onde talvez sejamos os últimos casos em que os filhos ainda cuidam dos pais nesses momentos duros de passagem.

 

Há também outro agravante, com a mudanças em planos de saúde, que acabam não cobrindo gastos pesados com o tratamento oncológico, por exemplo. De médicos que aceitam a cuidar dos pacientes durante os procedimentos clínicos com a cobertura de planos de saúde, mas que nas cirurgias fazem procedimentos sem a cobertura do plano vinculado. Além da luta dos pacientes para conseguirem cobertura para os medicamentos de altíssimo custo para o tratamento. São situações concretas que quebram financeiramente qualquer família. É claro que ainda temos o SUS que é a salvação de muito gente nesse país do descaso.

 

Acho que o tema mereceria um debate mais digno por parte dos profissionais de saúde, e de outros segmentos do saber como filósofos, teólogos, antropólogos, literatos e outros estudiosos de temas relacionados às doenças terminais, aos tratamentos paliativos em curso e a preparação da morte. 

 

No minha visão pessoal, não tenho dificuldade alguma com a ortanásia. Temos, sim, que oferecer condições mais dignas para o morrer e superar preconceitos ou teses de fundo teológico ou religioso que obstaculizam uma reflexão mais ousada e séria sobre a questão. 

 

O teólogo que mais me ajudou a refletir sobre o tema foi o suíço Hans Küng em seu brilhante livro: “Uma batalha ao longo da vida. Ideias, paixões, esperanças. A minha recordação do século (Editora Rizzoli de Milão, 2014, sendo o original de 2002). Ele aborda ao final de seu longo livro a questão do envelhecimento. 

 

Narra com pormenores o seu caso pessoal de deteriorização de sua condição de saúde. Fala das moléstias que começaram a prejudicar os seus órgãos fundamentais: as artroses nas maõs, o prejuízo na audição, os problemas na vista e sobretudo o mal de Parkinson. 

 

Ele lança na ocasião uma pergunta fundamental: “Por quanto tempo continuarei a estar bem?”. Fala também da sua vontade de morrer em casa e não internado e isolado num hospital ou casa de cura. 

 

Ele reflete com seriedade sobre o tema, contrabalançando sua posição em favor da ortanásia com os argumentos em contrário. E levanta uma questão muito séria: 

 

“Onde está escrito que o ser humano tenha que perder a responsabilidade de sua própria existência quando se depara com o fim da vida?”

 

Acerta em cheio uma questão que é decisiva: “O ser humano tem o direito de morrer quando não vê mais esperança de uma vida humana conforme os próprios critérios pessoais”.

 

Relata pormenorizadamente sobre o modo como gostaria de morrer e seus planos de adesão a uma organização suíça em favor da eutanásia. No seu caso, morreu antes, em abril de 2021, mas deixou para nós essa importante reflexão, que não pode ser deixada de lado. 

 

Na ocasião em que escreveu o livro, publicado em 2002, ele fala da experiência de uma forma bonita, digna e séria: 

 

“Entro assim no infinito da pessoa finita. Embarco numa última e decisiva estrada, totalmente diversa, não em direção ao cosmos e nem além de seus confins, mas para o núcleo da realidade”. 

 

Ele fala do retorno ao Mistério de Deus. E acrescenta: “Justamente na hora da tristeza e do adeus, que celebramos com gratidão, devemos encontrar a fé e também a força para afrontar também o futuro, o nosso futuro, sem ter muito medo da morte”.

 

Fui muito tocado pelo maravilhoso filme franco canadense, dirigido por Denys Arcand, “As invasões bárbaras”, onde esse argumento vem abordado de forma simplesmente maravilhosa. 

 

Penso que nossa morte tinha que ocorrer num momento em que pudéssemos ainda estar conscientes, afinados com a dinâmica da vida e do amor ao cosmos, e que a cerimônia de Deus, dentre de parâmetros muito bem estabelecidos pela ciência médica, podia ser precedida de uma linda festa com os amigos queridos e os parentes próximos, sem precisar entrar num túnel de escuridão, solitário e penoso, com os pesados gastos da medicina paliativa, mas destituído do germe da alegria.  Viva a Vida!

 

domingo, 21 de maio de 2023

As pessoas na sala de jantar

 As pessoas na sala de jantar

 

Faustino Teixeira

 

 

Passei ontem à tarde na Faixa de Gaia, e plantei três árvores, uma das quais um eucalipto azul, que na verdade não se transforma em árvore, mas em arbusto e é muito ornamental. Depois do que ocorreu no Tiguera, resolvi plantar três eucaliptos argentinos, que são muito cheirosos, além de fazer uma cruz com um dos cedros derrubados indevidamente. 

 

Era a minha forma de reagir ao que estava ocorrendo aqui onde vivo. Ao retornar ao Tiguera, vi que os ânimos estavam agitados, por uma atitude impertinente tomada por mim, movida pelo “bicho subterrâneo”, e também em razão de minha dor depois de um passeio matinal pela área devastada, tomada pelo aroma impressionante dos eucaliptos, como chorando o seu momento derradeiro. 

 

Minha atitude provocou reações duras, e reconheço a pertinência de algumas, mas não todas. Fui dormir sob o clima de olhos desconfiados e preocupados, e acordei hoje cedo para assistir ao curso de Marcia Lígia Guidin sobre a mulher em seis contos de Clarice Lispector. O tema da primeira aula era o conto “Amor”, e o desenvolvimento da reflexão foi muito rico. Márcia tinha sido orientanda de José Miguel Wisnik, tendo escrito um livro sobre “A hora da estrela”. Uma pessoa muito simpática e preparada, e foi uma escolha certa para mim.

 

Diante de tudo que vem ocorrendo ao meu redor, sobretudo ao corte de árvores inocentes e não invasoras, sinto com alegria a acolhida benfazeja de Teita, minha companheira, que busca também me ajudar com novos discernimentos sobre a minha atuação aqui. Revendo o conto “Amor”, de Clarice, caiu como pérola uma expressão do conto:

 

“Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver”

 

Sim, foi esse o meu sentimento ontem à noite, com o carinho de Teita, ajudando-me a “afastar” do “perigo de viver”.

 

Para os que estamos lidando com a temática ecológica, os nervos estão à flor da pele, diante de tantos descasos que estamos acompanhando pela Brasil à fora. Os desmatamentos na Amazônia,  no Cerrado e também na Mata Atlântico são hoje o meu principal motivo de atenção e preocupação. Essa falta de zelo ou de “reverência” pela natureza, como diz tão precisamente o querido Ailton Krenak. O que observamos por todo canto é o verbo cair... Como diz Krenak:

 

“A gente não fez outra coisa nos últimos tempos senão despencar. Cair, cair, cair. Então por que estamos grilados agora com a queda? Vamos aproveitar toda a nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos”.

 

É só abrir o jornal O Globo de hoje, 20/05/2023, para ver estampado na primeira página a grande polêmica envolvendo a proposta da Petrobrás em investir na região da foz do Rio Amazonas. Uma proposta tremenda, de nova exploração petrolífera, que vem dividindo a própria esquerda brasileira. Uma questão que coloca em lados opostos o Ministério do Meio Ambiente ao Ministério de Minas e Energia. Ao que nos faz lembrar à atuação complicada de Dilma em sua defesa de Belo Monte. 

 

A saída do senador Randolfo Rodrigues da Rede está ligada ao fato, relacionando-se também à sua oposição à Ministra Marina, que tem clara a sua posição contra a pretensão da Petrobrás. Estamos, novamente, diante da tentação desenvolvimentista que adorna segmentos do PT e de outros núcleos da esquerda. Estamos aguardando um posicionamento de Lula a respeito, com a esperança que seja algo sensato, na linha da decisão crítica do Ibama.

 

Num outro curso que estou seguindo, em torno ao pensamento de Fernando Pessoa, com José Miguel Wisnik, deparo-me com poemas que são proféticos, que mostram a dificuldade tremenda das pessoas em lidarem com conflitos, e que preferem o aconchegante espaço privado do lar, a ter que afrontar os reclames da realidade. Concluo citando quatro passagens que me tocaram: duas de Fernando Pessoa e duas de Caetano Veloso:

 

Panis et Circences  (Caetano e Gil – do álbum Tropicália)

 

Eu quis cantar
Minha canção iluminada de sol
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer

 

Lyrics (Caetano Veloso – do álbum Eles)

 

Em volta da mesa
Longe do quintal
A vida começa
No ponto final

Eles têm certeza do bem e do mal
Falam com franqueza do bem e do mal
Creem na existência do bem e do mal
O florão da América, o bem e o mal

Só dizem o que dizem
O bem e o mal
Alegres ou tristes, são todos felizes durante o Natal

 

O quinto império (Fernando Pessoa – do livro Mensagem)

 

Triste de quem vive em casa,

Contente com o seu lar,

Sem que um sonho, no erguer de asa,

Faça até mais rubra a brasa

Da lareira a abandonar

 

Ouvi contar que outrora, quando a Persia  (Ricardo Reis)

 

"Ardiam casas, saqueadas eram

As arcas e as paredes,

Violadas, as mulheres eram postas

Contra os muros caídos,

Traspassadas de lanças, as crianças

Eram sangue nas ruas...

Mas onde estavam, perto da cidade,

E longe do seu ruído,

Os jogadores de xadrez jogavam

O jogo do xadrez."

 

 

 

 

 

 

segunda-feira, 15 de maio de 2023

"Ele vos dará outro defensor" (Jo 14,16)

 “Ele vos dará um outro defensor” (Jo 14,16)

O evangelho de ontem, 14/05/2023, lido nas comunidades católicas, narra a descrição de João (14,15-21), e é um tema muito caro aos que trabalham o tema do diálogo inter-religioso.

Ele fala de algo extremamente revolucionário: de Jesus Cristo que sai de cena para que o Espírito entre agora como protagonista.

O grande teólogo dominicano, Christian Ducquoc, que para mim é um dos mais audazes, escreveu um maravilhoso livro chamado: “Um Deus diverso”, que infelizmente não foi publicado no Brasil. É um livro de 1977.

Num dos capítulo ele aborda o tema: Deixar Deus livre. Como ele diz de forma exemplar, Deus “é aquele que suscita ´diferenças`, não porque tenha em si a insuficiência, mas porque é ´comunhão`”.

Ele diz ainda que Deus “revelando-se em Jesus não absolutizou uma particularidade; significa, ao contrário, que nenhuma particularidade histórica é absoluta, e que em virtude desta relatividade, Deus pode ser encontrado na nossa história real”.

Uma reflexão que a meu ver é esplêndida, com um conteúdo altamente revolucionário para o diálogo entre as religiões e o diálogo inter-convicções.

A verdade concreta é a figura de Cristo nos orienta ao outro, “cujo nome é indizível". O que faz de Jesus particular e singular, é o fato dele não abolir as outras singularidades, mas “as aponta como fragmentos potenciais de um todo inacabado”.

No evangelho assinalado, o que vemos é um salutar “retraimento” do ressuscitado, que permite a livre ação do Espírito, que agora passa a reger o ritmo da história.

Trata-se de um “retraimento” “Que suscita a providencial ação do Espírito” e que nos previne salutarmente contra uma “integração prematura à instituição que o confessa”.

Caetano Veloso em Juiz de Fora: "Eu não quero morrer tão cedo"

 Caetano Veloso em Juiz de Fora: “Eu não vou morrer tão cedo”

Faustino Teixeira

UFJF/IHU

 

Caetano é sempre uma presença forte em minha vida. Desde muito jovem que ouço suas canções e reflito sobre suas letras. Meu filho, Pedro, dedicou sua tese à presença de Caetano Veloso junto à Banda Cê e ao trabalho de Caetano no CD Recanto, de Gal Costa. 

A leitura de Verdade Tropical exerceu igualmente um impacto impressionante em minha vida. Reli o livro na sua terceira edição, pela Companhia das Letras (2017). Estava curioso para ver o capítulo novo que ele introduziu na nova edição: Carmen Miranda não sabia sambar

Nessa parte introdutória do livro ele narra a motivação que o fez colocar-se à esquerda, onde se mantém até hoje. Era o grito de revolta do compositor e cantor “à horrenda desigualdade da sociedade brasileira. E isso se aguçou em tempos mais recentes, quando “o horror dos conservadores finge se dirigir à corrupção quando é nojo e medo dos pobres, pretos e desorganizados, além de impaciências com estes”.

Ainda no capítulo, narra que foi sob inspiração de Sartre que abraçou com convicção os caminhos da contracultura. Caetano acredita na potência do Brasil, como canta numa das canções do show de Juiz de Fora. Ele acredita que o país “sugere algo diferente do já experimentado e, por fim, negado”.

Diz também o seu grande apreço pela questão ambiental, que hoje urge no Brasil, e manifesta sua apreciação pelo trabalho exercido nesse campo por Eduardo Viveiros de Castro. Chama a atenção para a beleza do texto do antropólogo do Museu Nacional, e relata o impacto exercido nele pelo livro que Eduardo escreveu com sua mulher, Déborah Danowski, em torno da iminência do fim do mundo.

Sua compreensão da inter-relacionalidade é bela, e chama para si a voz de Lévi-Strauss que  mostrou, como poucos, a compreensão do ser vivente como um entre outros seres da Terra. Cita em determinado momento, a letra de um samba de Jorge Mautner, que diz, a certo momento, que “o macaco na selva não é macao, baby, é meu irmão”.

Caetano fala do ser humano como algo maravilhoso, mas que é também aberração, quando expressa sua gana de violência e sua pegada dura na Terra. Ele, que pode “tanto encher a Terra de luz espiritual como destruí-la de repente ou degradá-la devagar”. Num Brasil em perpétua convulsão, Caetano diz que “há coisas demais sugerindo que não temos por que ser otimistas”. 

Um dos vetores apontados por Caetano, que mostra a possibilidade de um caminho mais generoso para o país, está na presença da pluralidade, e também numa religiosidade que alimenta o povo. A religiosidade que sempre esteve presente no Tropicalismo. Caetano sublinha que gostaria muito de ser “um anunciador das novidades do Brasil”, e ele o faz com sua bela música. 

Caetano nem em seu sangue a alegria e a irreverência criadora, mas guarda também suas dores, como revela no mesmo capítulo. Aponta que quando nasceu seu filho Tom, já com 55 anos de idade, ele se viu diante da morte. E isto foi se impondo a ele aos poucos, criando dificuldades particulares. 

Ele diz: “Parecia que eu estava amarrado  à minha vida pequena e que a grandeza requerida para se ter um filho não me seria mais possível alcançar”. A morte de amigos, trazia o tema para ele de forma irruptora, sobretudo depois do nascimento de seu filho. Sessões de análise foram importantes para trabalhar essa dor e angústia. Recorreu também a tranquilizantes para buscar a harmonia visada, sobretudo o difícil e eterno problema de sua insônia.

A nova turnê de Caetano, Meu coco, veio em bom momento, depois de toda aquele jornada bonita com seus filhos em Ofertório. A experiência anterior tinha sido com o show Abraçaço, que se seguiu ao disco de 2012. A nova empreitada era também um retorno de Caetano para dentro de si mesmo, um olhar singular para o mundo interior.

Tive o privilégio de estar nos dois shows de Juiz de Fora, no belo Cine Teatro Central, lotado nos dois dias: 12 e 13 de abril de 2023. Caetano estava acompanhado por uma banda muito especial, na qual estava presente o músico Lucas Nunes (violão e voz), que hoje faz parte da banda Bala Desejo. Ele esteve também na direção musical do show, junto com Caetano Veloso. Teve igualmente um papel singular na produção do disco de Caetano, nos tempos da pandemia, em estúdio que o compositor tem em sua casa.

Uma coisa que me surpreendeu nas duas apresentações de Juiz de Fora foi o comportamento do público, sobretudo na primeira noite: uma presença leve, tranquila, sem tantas efusões que acabam prejudicando a apreciação do show. 

O figurino de Caetano no primeiro dia, que era uma sexta feira, estava incrível: ele todo de branco, magro, ágil no palco, não se furtando em vários momentos a expressar aquele samba bonito de sua terra natal, na Bahia. Falou por duas vezes de sua alegria em estar ali naquele belo teatro da cidade mineira. 

Surpreendeu-me também sua voz, que está perfeita. Incrível alguém com a sua idade, aos oitenta anos, manter aquela pureza de voz, e seu ágil domínio em harmonizar graves e agudos, sabendo colocar o falsete no seu lugar e de forma perfeita.

O repertório escolhido foi muito bem pensado, mesclando músicas do novo disco, mais desconhecidas do público, como sucessos anteriores, entre os quais Sampa, Menino do Rio, Baby, Leãozinho e Cajuína e outras. Não houve homenagem explícita a Rita Lee e Gal Costa, recentemente falecidas, mas o público se encarregou de vibrar quando os nomes de Rita Lee e Mutantes apareceram na letra de Sampa. Na canção Baby, estava também presente a cantora amiga, Gal Costa.

Para mim, o momento mais emocionante do show, nos dois dias, foi a canção Araçá Azul, daquele disco misterioso e ainda não compreendido, de 1973. Não podia haver letra mais impressionante e apropriada para dizer da dor de Caetano com a perda de seus queridos, incluindo também sua mãe, Dona Canô:

“É sonho-segredo
Não é segredo
Araçá azul fica sendo
O nome mais belo do medo

Com fé em Deus
Eu não vou morrer tão cedo

Araçá azul é brinquedo”

 

sexta-feira, 12 de maio de 2023

Sobre Aros, Iras e Eros

 Sobre Aros, Iras e Eros

 

Faustino Teixeira

UFJF / IHU

 

Houve um tempo em que me dediquei à leitura de Lya Luft. Tinha ficado impactado com o seu livro, O lado fatal (1988). Nessa obra ela abordava a dor da perda de seu companheiro querido, Hélio Pellegrino, conhecido psicanalista, militante e místico. Sua morte tinha ocorrido em 23 de março de 1988. 

 

Como Lya disse, ele teve “a morte de um guerreiro”. Para lidar com a “perda” profunda, a escritora escreveu seu livro de poemas, que é precioso. Ela escreveu pensando nele, visando “reviver um grande amor entre dois pássaros ´varados em pleno voo`”. 

Inicia o livro com uma expressão de dor: “Quando meu amado morreu, não pude acreditar”. Dois anos tinha recebido uma carta dele em que ele falava do amor como coisa curiosa: “por nos aproximar da vida dá-nos uma experiência de eternidade, e por isso mesmo nos mergulha na finitude, para aceitá-la e salvá-la. Morte e amor andam embolados. O amor nos faz famintos de eternidade e a morte é a porta desse indizível barato”.

 

Com sua partida, Lya mergulhou num tempo de sombras e dor que custou a primaverar. O momento de luto exigia silêncio: “Façam silêncio a meu redor. Não me interessa nada o cotidiano nem o místico”. 

 

Era uma ocasião diferente, onde nem mesmo os “grandes mistérios da eternidade” suscitavam interesse. Era o tempo de levar o amado no peito. Num poema, dizia:

“Não digam que isso passa,não digam que a vida continua,que o tempo ajuda,que afinal tenho filhos e amigose um trabalho a fazer (...).Não digam nada (...)da minha dor sei eu.”

Começo aqui falando de dor e de perda, mas a razão de minha mensagem é outra, está fundada na alegria, que aliás foi o tema da mensagem do evangelho de ontem, 11/05/2023: “Eu vos disse isto, para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena” (Jo15,11). 

 

Em seu livro Rio do meio (1996), Lya Luft fala das meninas que “olham a vida com olhos grandes de admiração”. São vidas tocadas por uma graça especial, concedida pelo tempo, que lhes possibilita a retirada de uma película que impede a explosão e a pureza da alma. 

 

São meninas ensolaradas, cuja “luminosidade se espalha por toda parte”. Elas podem passar por adversidades, como todos nós, mas são movidas por beleza singular, muito além daquela manifestada no corpo, porque vem de dentro, daquele “braseiro” interior de que fala Teresa de Ávila. São meninas habitadas por uma “espécie de obstinado sol que se desprende delas como um perfume”.

 

Falo aqui de uma amiga querida, de uma menina que conheci no Nordeste durante uma assessoria pastoral. Dirigia na Universidade um trabalho maravilhoso, que deixou marcas bonitas naquela cidade. 

 

Ela se chama Tatiana Passos Zylberberg, e veio da Educação Física. Passou por momentos difíceis na caminhada, duros mesmo, mas que venceu com sua resiliência, obstinação e vontade de viver.

 

Hoje, dia 11 de maio de 2023, ela vai falar sobre sua experiência poética para um grupo muito especial, criado há tempos, que trata o tema da literatura e mística. Trata-se de um grupo reduzido, onde cada mês alguém fala de um personagem da literatura, mas com o olhar voltada para a mística. Esse é o desafio proposto. Na sequência, as pessoas partilham suas impressões da leitura escolhida para a ocasião.

 

O texto de hoje, maravilhoso, é da própria Tatiana e fala das Tessituras da vida, ou para ser mais exato, das experiências concretas vividas por Tatiana em sua linda trajetória, feita de três (des) encontros: Aros, Iras e Eros. Foram as singulares expressões que encontrou para relatar a dinâmica de sua vida. 

 

Quando fala de Aros, quer expressar a sua alegria das pedaladas que a ajudaram a redescobrir o seu corpo nublado. Apesar da agitação da vida, encontrava espaços para dedicar-se à exposição ao tempo, deixando o vento invadir seu templo interior. 

Quando fala de Iras, quer apontar os passos difíceis que enfrentou na vida, de tristeza, dor e violência; experiências que a fizeram se isolar de seu ambiente. Ao mesmo tempo, possibilitaram novos caminhos de reverberação, de modo a poder expressar e gritar sua ira num movimento libertador. 

 

Quando fala de Eros, quer revelar aquilo que ficou sufocado na neblina da vida, e que a fez afastar-se daquilo que mais gosta, que são os versos e os palcos. 

Aos poucos, com a ajuda de pessoas queridas, foi encontrando brechas para redescobrir a alegria da vida e os caminhos alternativos para curtir a beleza do mar e o carinho das partilhas. 

 

Tudo começou bem devagarinho, através das correspondências. Foi quando descobriu que os afetos “cabiam em envelopes e viajavam quilômetros”. E, aos poucos, o esplendor da vida rebrotava com ousadia, num desafio bonito de “levantar a cabeça, abrir o peito e soltar a voz”. 

 

Foi seu momento de primavera, a estação da alegria, como tão bem expressa José Miguel Wisnik:

 

"A primavera é quando ninguém mais espera

E desespera tudo em flor

A primavera é quando ninguém acredita

E ressuscita por amor".

 

Nasceram assim momentos novos de quebras de barreiras e resgate de silêncios. Situações difíceis foram superadas com bocados de exercícios interiores, bem ao modo de Etty Hillesum, a grande mística holandesa que morreu em Auschwitz aos 29 anos. 

Como ela diz em seu texto, passou a dedicar rigorosamente 20 minutos diários para se aproximar de si mesma. Era o caminho aberto para poder, de novo, aprender a se amar, e amar os outros ao redor.

 

A poesia estava ali com ela, sempre junto, na cabeceira da vida, a inspirar novos caminhos e horizontes. 

 

E o bonito nisso tudo é que ela não deixava a poesia aprisionada nela mesma, mas busca sua ressonância nos outros. Como muito bem expressou, tomou consciência de que devemos deixar a poesia voar e chegar livre ao outro: o desafio de “fazer-se ler”. 

Compreendeu ao final, e relata lindamente em seu texto, que não se pode privar do sagrado direito de “escolher a vida, o tempo todo, em toda parte”. Ou como diz o personagem do maravilhoso filme, Drive my Car, “temos que continuar vivendo”. 

É maravilhosa a poesia que ela nos brinda ao final de seu texto, quando nos adverte sobre a importância de “desacelerar”, bem como a de “surfar uma onda por vez. Soltar mais a voz e a poesia”. 

 

E também, “sorrir para toda gente”, como aquele menino singular, Momô, do livro de Eric-Emmanuel Schmitt – Seu Ibrahim e as flores do Corão (2001), que aprendeu como o sorriso é capaz de abrir as portas mais importantes para a nossa felicidade. Nas longas conversas com seu Ibrahim, descobriu “que sorrir é que nos faz felizes”.

 

Parabéns, Tatiana, pelo seu lindo texto.