O amor e a dor em suas diversas paisagens: Cenas de um casamento, de Ingmar Bergman
Faustino Teixeira
IHU / UFJF
Para os que se dispõem a fazer uma grande maratona cinematográfica, fica o convite para enveredar nas longas teias de Cenas de um Casamento, de Ingmar Bergman (1973). A primeira versão não foi destinada ao cinema, mas à televisão, como uma mini série de seis episódios com duração de cerca 49 minutos. São praticamente cinco horas diante da tela, sem que se perceba o tempo passar, dada a beleza e força do enredo desse magnífico diretor.
Para compor a riqueza do que se vê, temos dois grandes intérpretes contracenando: Liv Ulmann, no papel de Marianne e Erlan Josephson, no papel de Johan. Há também o reforço da maravilhosa fotografia, que esteve aos cuidados de um dos melhores diretores de fotografia do cinema universal, um parceiro constante de Bergman: Sven Nykvist.
Depois desta primeira versão para a TV, que veio a público em 1973, Bergman produziu uma versão mais condensada para o cinema, que foi premiada em 1974 com o prêmio de melhor filme estrangeiro no Globo de Ouro.
Os seis episódios têm como títulos: 1. Inocência e Pânico; 2. A arte de fazer como o avestruz; 3. Paula; 4. O vale de lágrimas; 5. Os analfabetos; 6. No meio da noite numa casa escura em algum lugar do mundo.
O sucesso do filme foi favorecido pela preciosa interação de Bergman com os dois intérpretes do filme, e em particular com Liv Ulmann. Também participou das filmagens outra grande e experiente intérprete, que é Bibi Anderson, igualmente presente em outras produções de Bergman.
Na ocasião das filmagens, Bergman estava casado com Liv Ulmann, depois de quatro casamentos fracassados. Os dois permaneceram juntos por cinco anos e tiveram uma filha. Moravam no Ilha de Farö, que se situa entre a Rússia e a Suécia. Bergman escolheu esse lugar diferente para morar, modelado por uma paisagem árida, de vegetação estranha, com solo cinzento e marrom. Só uma vez ao ano é que a paisagem ali ganha cores esplêndidas e animadoras.
Foi em Farö que ocorreram as filmagens de Cenas de um Casamento, num estúdio que Bergman montou junto à sua casa, depois transformado em seu cinema particular. Apesar de seu temperamento difícil, Bergman conseguiu achar um ponto de equilíbrio fabuloso nas filmagens, abrindo um espaço singular para a criatividade dos atores. Liv Ulmann chegou a dizer em entrevista, que Bergman era o diretor ideal, que favorecia aos atores uma singular possibilidade de expressão criativa dos sentimentos. Alguém que tinha o dom de ouvir e o carisma para desvendar os segredos mais íntimos de seus intérpretes.
Outro dado importante que ocorreu no filme, foi o recurso a belos e longos close-ups. A atriz Liv Ulmann apreciava muito essa técnica do diretor de fotografia. Constituía um grande desafio para ela. Disse a respeito: “Quanto mais perto chega a câmara, mais ansiosa fico para mostrar um rosto completamente nu, desvendar o que está atrás de pele, dos olhos: dentro da cabeça. O conjunto dos recursos, somados à habilidade do diretor, favoreciam o empreendimento fantástico de uma viagem situada no interior mais profundo do ser.
O tema do filme gira em torno de um relacionamento afetivo, com toda a sua complexidade, com suas dores e alegrias. Como personagens, um casal que celebra dez anos de casamento, e que até então tinham uma relação bem adaptada. Os dois provinham de uma vida burguesa, ele professor e ela advogada, envolvida em questões relacionadas ao divórcio. O roteiro gira em torno dessa relação, cobrindo os vinte anos de amizade entre os dois, seja nos momentos de união ou separação. Os dois tem duas filhas, mas a ocular do diretor não se fixa nelas em nenhum momento. Toda a trama ocorre na trajetória do casal.
Nos dois primeiros episódios, o casal ainda vive uma condição de regularidade no casamento. Já começam a se deparar com o inferno que preside a relação de amigos ou, no caso de Marianne, de uma cliente que relata para ela a profunda solidão que vive no matrimônio. O confronto com tais situações começa a provocar no casal algumas interrogações sobre o viver juntos. Johan, que é mais frio e racional, chega mesmo a pensar que a solução para o casamento seria um contrato de cinco anos, com direito a prorrogação. Sua preocupação, diferentemente de Marianne, é com os domínios de seu “quintal”, embora tenha consciência de que o mundo afunda-se numa grande crise.
Marianne, com 35 anos naquela ocasião, tinha uma preocupação maior com a humanidade. Via também no casamento, a possibilidade de expressão de amor, ternura e carinho. Aos poucos, porém, vai percebendo o ritmo da solidão na vida a dois. Eles falam entre si sobre amor e fidelidade. Ela acredita ser possível a vida em comum, desde que haja uma preocupação e atenção mútua entre os parceiros. Vislumbra também no casamento a possibilidade de companheirismo, humor e tolerância. Ele, Johan, com 42 anos, é mais pragmático ainda que profundamente carente. Em sua visão a fidelidade deve ser algo natural: “Ou ela existe ou ela não existe”.
A tensão entre os dois começa a se fazer presente quando ela anuncia que está grávida, e ele acolhe a notícia com indiferença. Ela não esperava uma tal reação, e se entristece. Ele, sempre pragmático, fica preocupado em resolver logo o assunto, através do recurso do aborto. Ela acaba aderindo à proposta, mas arrepende-se profundamente depois. Acreditava que os dois poderiam receber a criança com alegria, mas era pura ilusão.
Aos poucos, a partir do segundo episódio, já começa a emergir mais forte em Marianne uma angústia indefinida, mas dolorosa. Aquela angústia que Heidegger bem definiu, como o “puro ser-ai no estremecimento”, ou seja, como o estar diante de um perigoso “nenhum”, que corta qualquer dicção do eu.
Entre o casal começa a brotar uma “atmosfera de desentendimento”. Os dois buscam explicações para o desencontro, e chegam a aventar o influxo dos compromissos familiares, com os pais, aos finais de semana, que acabavam por encolher o tempo de amadurecimento e enriquecimento da vida do casal. Chegam a dizer que um tal compromisso deveria ser um divertimento e não uma obrigação.
Com o tempo, o desentendimento vai se acirrando e o tema da hospedagem do amor entra em crise. Como dizia com razão Frida Kahlo: “Onde não puderes amar, não te demores”. A cisão ocorreu em seguida, quando Johan revela para Marianne, no terceiro episódio, que estava apaixonado por outra mulher, Paula, uma garota de apenas 23 anos. Acrescentou ainda que estava partindo com ela para Paris, por sete ou oito meses. A reação de Marianne foi de estupefação. Não sabia como reagir diante daquele outro, que agora se revelava um estranho. É um momento bonito do filme, quando Marianne expressa com o olhar suplicante, toda a sua dor diante da crua revelação.
A reação de Johan é fria e calculista. Diz a ela, sem rodeios, que depois os dois encontrariam um caminho para resolver a nova situação. E ainda arremata mandando-a para o inferno. Diz não querer levar nada consigo, a não ser alguns livros, e pretende acalmá-la dizendo que nada faltará a ela e as crianças. Diz ainda que está cansado da relação, e que tudo que agora o interessa é sair do inferno em que se viu enredado: “sair de tudo isto, dar o fora”. Revela a Marianne que ainda a continua amando, mesmo depois do encontro com Paula, e que a ama com mais intensidade, mas que precisa desse tempo seu.
Marianne ainda busca argumentar em favor de uma nova tentativa na relação, mas sem sucesso. Ela reconhece que pode ter errado todo o tempo, mas que ainda acredita num reatamento em novas bases. Pede a ele para adiar a viagem por alguns meses e sublinha que os dois poderiam na sequência encontrar um novo modo de reparar o casamento e uma forma diversa para a vida sexual.
Depois de toda a conversa, regada a dor, os dois se deitam na cama de casal e ficam ali silenciosos e mudos. Ela ainda busca informações sobre Paula, de como ela é e qual a sua idade e de como ela reage na cama. Está angustiada. Ele não deixa de revelar dados sobre a vida da nova amante. Marianne e Johan fazem amor ao raiar do dia, olhando um para o outro “com carinho e angústia”. Permanecem ali, juntos, “mudos, nus, estranhos um para o outro.
Johan finalmente a deixa “com suas aflições” logo após o café da manhã. E “sem que Marianne o queira, as lágrimas começam de repente a correr-lhe pelo rosto, mas ela funga, assoa o nariz e recompõe-se”. Desesperada, ela liga para um amigo comum, Fredrik, para relatar o acontecido, e se surpreende ao saber que ele e outros amigos já estavam a par da situação.
Depois de um ano sem se verem, os dois amigos voltaram a se encontrar. Johan buscava conviver com Paula na nova situação, mas enfrentado agora dificuldades precisas e um ciúme crescente por parte dela. No início as coisas estavam melhores, e Paula teve um papel importante como companheira de Johan, trazendo alegria e carinho para a sua vida. No momento em que encontra com Marianne, Johan já demonstra viver com dificuldades na outra relação. Por sua vez, Marianne já dava sinais de recuperação na sua vida pessoal.
Os dois se encontram, e reconhecem a existência de um grande carinho mútuo. Eles se abraçam e se beijam com alegria e ternura. Johan relata que tinha conseguido um contrato de três meses numa universidade americana, mas que iria viajar sem a Paula. Durante o encontro, Marianne retoma a conversa sobre o divórcio, mas Johan desconversa. Ela lamenta o fato dos dois terem se separado, e deixado de lado o carinho que era tão importante para eles. Johan reage sinalizando com clareza para Marianne que o que existe na base de qualquer relação é uma “solidão absoluta”. Reitera o fato de que ninguém consegue quebrar essa barreira, e que em verdade a coexistência equilibrada é uma miragem. Por mais que se busquem palavras, elas não servem senão para esconjurar um grande vazio.
Mesmo com toda a distância, que reverbera na relação com as filhas, Marianne demonstra acreditar no grande carinho que tem por Johan. Revela que sempre se lembra dele, todos os dias e várias vezes por dia. Continua a manifestar surpresa com uma separação que não estava em seu horizonte. Era um traço bonito de amor que escapou pelas mãos. Em resposta, Johan diz a ela que seria oportuno ela buscar ajuda com um psiquiatra. E ela responde dizendo que vem sendo atendida duas vezes por semana, em conversas que vão além das que ocorrem no consultório.
Na verdade, Johan não consegue escamotear o carinho que sente por Marianne, que é também um tesão criativo. Mas quando na ocasião ele busca uma aproximação, visando colocar sua mão em seu peito, Marianne, delicadamente, desvia-se e evita o contato mais íntimo. Revela, porém, a ele que não consegue entender sua vida e a das crianças com outro homem. Sente-se atrelada a um vínculo profundo com Johan, que não consegue entender. Diz a ele que os outros homens a aborrecem. Na sequência, os dois se beijam, sem se arrojarem em carinhos mais íntimos. Os dois passam a noite juntos, com o sentimento comum da beleza de estarem juntos, ainda que simplesmente dando as mãos. Ela revela a ele que a separação foi um golpe muito duro, e que gostaria de ter ficado “terrivelmente zangada com ele”. Mas como ocorre com os suecos, ela ponderou as reações. E diz: “Quando você me deixou, eu tinha apenas um pensamento na cabeça: eu queria morrer. Fiquei andando às voltas naquela manhã, e estava justamente amanhecendo, e só pensava: não vou sobreviver”.
Marianne conseguiu sobreviver à crise e foi aos poucos se recompondo e retomando a vida. Encontrou outros homens pelo caminho, mas deles se cansou, até que encontrou Davi, alguém que se mostrou diferente, carinhoso e atencioso com as meninas. Disse a Johan que não sabia se era ele, David, que respondia às demandas de seu afeto. Diferentemente da visão de Johan, Marianne não acreditava numa vida solitária, mas queria alguém a seu lado, e intuía que essa pessoa não era Davi. E se lamenta com Johan: “Eu não entendo como você vai poder aguentar o mundo sem mim (...). A gente não pode viver só e ser forte. A gente precisa ter alguém a quem segurar a mão”. E retoma sua vontade de reatar com Johan: “Acho que você deveria se esforçar como um louco para reparar o nosso casamento”. Johan reconhece que gosta de Marianne e se indaga sobre o que há de errado em sua vida. Sublinha também que sente “saudades terríveis”. Em resposta, Marianne diz que os dois poderiam simplesmente ficar ali, “deitados juntos, segurando a mão um do outro”.
No penúltimo episódio, ocorre a explosão da violência entre os dois. É quando se firma para eles a vontade de assinar o divórcio. Os dois se encontram num local de trabalho, já com os papeis na mesa para serem assinados. Ela insiste com ele para assinar antes de partir para América. Não sabe ainda que a viagem não iria vingar. Não assinam de imediato, reconhecendo a dificuldade de colocar um fim na relação. Marianne revela então a Johan que começa a sentir-se livre, com um sentimento novo de felicidade. Indica, porém, que os dois anda têm uma noite para beber e amar. Johan confidencia a ela que ainda se sente ligado a ela de uma forma muito profunda e inexplicável.
Num impulso amoroso, Marianne chega a pensar em rasgar todos os papeis que estão sobre a mesa. Foi apenas um impulso. Tomados por um grande estranhamento os dois entram em conflito corporal violento, que deixou marcas de sangue no tapete. São cenas tremendas! Ambos queriam destruir-se mutuamente. Acabam esgotados e tristes... Ela, imóvel, com o corpo recolhido de dor. Johan então toma a iniciativa de assinar os papéis, num gesto que foi acompanhado por Marianne. Já ao final do encontro, Marianne ainda diz para ele: “Devíamos ter começado a bater um no outro há muito tempo. Teria sido muito melhor”. E quem sabe...
Apesar da virulência do conflito que marcou o último encontro dos dois, eles ainda voltam a se encontrar mais tarde. Vivem então um momento diverso, como se inaugurassem uma nova forma de ser, agora mais serenos e maduros. Os dois estavam bem nas suas respectivas relações. Ressurgiam agora, como das cinzas anteriores, com um clamor de vida alternativo. Johan estava diferente, sem a barba e de óculos. Revela a Marianne que vivia então o casamento como uma “comodidade” que era recíproca. Marianne também convivia bem com seu novo par, Henrik.
Eles aproveitaram uma viagem de seus cônjuges para marcar um novo encontro. Os dois estavam ansiosos para reverem-se com alegria. Estariam fazendo, naquele mesmo mês de agosto, 20 anos de casados. O encontro tinha sido marcado na casa de campo de Marianne, mas o plano foi alterado, depois que Johan pediu a um amigo próximo para emprestar sua casinha que ficava junto à praia. Foi ali, naquele lugar distante, que os dois se encontraram novamente. A casa estava meio revirada, e os dois juntos se ajudaram para colocar tudo em ordem e montar o ninho do encontro.
Num momento de grande beleza, os dois estão ali, “no meio da noite, numa casa escura em algum lugar do mundo”. A emoção toma conta dos dois e ela o acolhe com grande sentimento e lágrimas nos olhos. Depois de tanto tempo, Marianne dá razão a Johan, concordando com a sua visão sombria sobre o mundo. Reconhece a presença dolorosa de um estado geral de inquietação entre as pessoas, e que é contagiante. Revela que de fato as pessoas andam “escorregando para baixo”, tomadas pelo medo, insegurança e incompreensão.
Naquele momento, porém, eles “esquecem” a dor e buscam viver a intensidade do instante, em clima de grande intimidade, aconchego e excitação. Os dois se tratam de forma linda e enamorada. Ele diz: “Meu amor, minha adorada Marianne”. E ela: “Meu querido e adorado Johan”. Apenas isso!
Marianne revela mais uma vez que jamais conseguiu amar alguém da forma como gostaria, e nem sentiu-se amada como desejava. Johan responde de forma curta, simples e realista: “Eu acho que a amo à minha maneira, restrita e bastante egoísta. E, à vezes, acho que você me ama à sua maneira, briguenta e fria”. E acrescenta: “Eu acho, pura e simplesmente, que você e eu nos amamos um ao outro. De uma maneira terrena e restrita”.
Nada mais delicado e simples de entender, bem ao modo Zen, o que significa amar nas condições de contingência do humano. Por fim, Johan complementa o seu argumento: “É assim, com toda a simplicidade, no meio da noite, numa casa escura, em alguma parte do mundo, que eu existo, realmente, e a conservo nos braços. E você me conserva nos seus. Eu não posso afirmar que sinto qualquer espécie de elevação ou de sentimento de humanidade”.
Trata-se, como imagino, de um bonito amor terrenal, marcado pelos limites do tempo e pelos enigmas de cada um, num mistério profundo que ninguém consegue penetrar com agudez. Toda relação vem pontuada por enigmas e interrogações, que jamais serão complementadas e realizadas. O que importa é abraçar com alegria o momento e o instante, sem deixar escapar sua luz e reverberação. Ou, como diz de forma tão linda Rilke, nas Elegias de Duíno, poder “contemplar um dia, somente um dia o espaço puro, onde, sem cessar, as flores desabrocham”.