quinta-feira, 23 de março de 2023

O amor e a dor em suas diversas paisagens: Cenas de um Casamento, de Ingmar Bergman

 O amor e a dor em suas diversas paisagens: Cenas de um casamento, de Ingmar Bergman

 

Faustino Teixeira

IHU / UFJF

 

Para os que se dispõem a fazer uma grande maratona cinematográfica, fica o convite para enveredar nas longas teias de Cenas de um Casamento, de Ingmar Bergman (1973). A primeira versão não foi destinada ao cinema, mas à televisão, como uma mini série de seis episódios com duração de cerca 49 minutos. São praticamente cinco horas diante da tela, sem que se perceba o tempo passar, dada a beleza e força do enredo desse magnífico diretor.

 

Para compor a riqueza do que se vê, temos dois grandes intérpretes contracenando: Liv Ulmann, no papel de Marianne e Erlan Josephson, no papel de Johan. Há também o reforço da maravilhosa fotografia, que esteve aos cuidados de um dos melhores diretores de fotografia do cinema universal, um parceiro constante de Bergman: Sven Nykvist.

 

Depois desta primeira versão para a TV, que veio a público em 1973, Bergman produziu uma versão mais condensada para o cinema, que foi premiada em 1974 com o prêmio de melhor filme estrangeiro no Globo de Ouro.

 

Os seis episódios têm como títulos: 1. Inocência e Pânico; 2. A arte de fazer como o avestruz; 3. Paula; 4. O vale de lágrimas; 5. Os analfabetos; 6. No meio da noite numa casa escura em algum lugar do mundo.

 

O sucesso do filme foi favorecido pela preciosa interação de Bergman com os dois intérpretes do filme, e em particular com Liv Ulmann. Também participou das filmagens outra grande e experiente intérprete, que é Bibi Anderson, igualmente presente em outras produções de Bergman.

 

Na ocasião das filmagens, Bergman estava casado com Liv Ulmann, depois de quatro casamentos fracassados. Os dois permaneceram juntos por cinco anos e tiveram uma filha. Moravam no Ilha de Farö, que se situa entre a Rússia e a Suécia. Bergman escolheu esse lugar diferente para morar, modelado por uma paisagem árida, de vegetação estranha, com solo cinzento e marrom. Só uma vez ao ano é que a paisagem ali ganha cores esplêndidas e animadoras. 

 

Foi em Farö que ocorreram as filmagens de Cenas de um Casamento, num estúdio que Bergman montou junto à sua casa, depois transformado em seu cinema particular. Apesar de seu temperamento difícil, Bergman conseguiu achar um ponto de equilíbrio fabuloso nas filmagens, abrindo um espaço singular para a criatividade dos atores. Liv Ulmann chegou a dizer em entrevista, que Bergman era o diretor ideal, que favorecia aos atores uma singular possibilidade de expressão criativa dos sentimentos. Alguém que tinha o dom de ouvir e o carisma para desvendar os segredos mais íntimos de seus intérpretes.

 

Outro dado importante que ocorreu no filme, foi o recurso a belos e longos close-ups. A atriz Liv Ulmann apreciava muito essa técnica do diretor de fotografia. Constituía um grande desafio para ela. Disse a respeito: “Quanto mais perto chega a câmara, mais ansiosa fico para mostrar um rosto completamente nu, desvendar o que está atrás de pele, dos olhos: dentro da cabeça. O conjunto dos recursos, somados à habilidade do diretor, favoreciam o empreendimento fantástico de uma viagem situada no interior mais profundo do ser.

 

O tema do filme gira em torno de um relacionamento afetivo, com toda a sua complexidade, com suas dores e alegrias. Como personagens, um casal que celebra dez anos de casamento, e que até então tinham uma relação bem adaptada. Os dois provinham de uma vida burguesa, ele professor e ela advogada, envolvida em questões relacionadas ao divórcio. O roteiro gira em torno dessa relação, cobrindo os vinte anos de amizade entre os dois, seja nos momentos de união ou separação. Os dois tem duas filhas, mas a ocular do diretor não se fixa nelas em nenhum momento. Toda a trama ocorre na trajetória do casal.

 

Nos dois primeiros episódios, o casal ainda vive uma condição de regularidade no casamento. Já começam a se deparar com o inferno que preside a relação de amigos ou, no caso de Marianne, de uma cliente que relata para ela a profunda solidão que vive no matrimônio. O confronto com tais situações começa a provocar no casal algumas interrogações sobre o viver juntos. Johan, que é mais frio e racional, chega mesmo a pensar que a solução para o casamento seria um contrato de cinco anos, com direito a prorrogação. Sua preocupação, diferentemente de Marianne, é com os domínios de seu “quintal”, embora tenha consciência de que o mundo afunda-se numa grande crise.

 

Marianne, com 35 anos naquela ocasião, tinha uma preocupação maior com a humanidade. Via também no casamento, a possibilidade de expressão de amor, ternura e carinho. Aos poucos, porém, vai percebendo o ritmo da solidão na vida a dois. Eles falam entre si sobre amor e fidelidade. Ela acredita ser possível a vida em comum, desde que haja uma preocupação e atenção mútua entre os parceiros. Vislumbra também no casamento a possibilidade de companheirismo, humor e tolerância. Ele, Johan, com 42 anos, é mais pragmático ainda que profundamente carente. Em sua visão a fidelidade deve ser algo natural: “Ou ela existe ou ela não existe”.

 

A tensão entre os dois começa a se fazer presente quando ela anuncia que está grávida, e ele acolhe a notícia com indiferença. Ela não esperava uma tal reação, e se entristece. Ele, sempre pragmático, fica preocupado em resolver logo o assunto, através do recurso do aborto. Ela acaba aderindo à proposta, mas arrepende-se profundamente depois. Acreditava que os dois poderiam receber a criança com alegria, mas era pura ilusão.

 

Aos poucos, a partir do segundo episódio, já começa a emergir mais forte em Marianne uma angústia indefinida, mas dolorosa. Aquela angústia que Heidegger bem definiu, como o “puro ser-ai no estremecimento”, ou seja, como o estar diante de um perigoso “nenhum”, que corta qualquer dicção do eu.

 

Entre o casal começa a brotar uma “atmosfera de desentendimento”. Os dois buscam explicações para o desencontro, e chegam a aventar o influxo dos compromissos familiares, com os pais, aos finais de semana, que acabavam por encolher o tempo de amadurecimento e enriquecimento da vida do casal. Chegam a dizer que um tal compromisso deveria ser um divertimento e não uma obrigação. 

 

Com o tempo, o desentendimento vai se acirrando e o tema da hospedagem do amor entra em crise. Como dizia com razão Frida Kahlo: “Onde não puderes amar, não te demores”. A cisão ocorreu em seguida, quando Johan revela para Marianne, no terceiro episódio, que estava apaixonado por outra mulher, Paula, uma garota de apenas 23 anos. Acrescentou ainda que estava partindo com ela para Paris, por sete ou oito meses. A reação de Marianne foi de estupefação. Não sabia como reagir diante daquele outro, que agora se revelava um estranho. É um momento bonito do filme, quando Marianne expressa com o olhar suplicante, toda a sua dor diante da crua revelação. 

 

A reação de Johan é fria e calculista. Diz a ela, sem rodeios, que depois os dois encontrariam um caminho para resolver a nova situação. E ainda arremata mandando-a para o inferno. Diz não querer levar nada consigo, a não ser alguns livros, e pretende acalmá-la dizendo que nada faltará a ela e as crianças. Diz ainda que está cansado da relação, e que tudo que agora o interessa é sair do inferno em que se viu enredado: “sair de tudo isto, dar o fora”. Revela a Marianne que ainda a continua amando, mesmo depois do encontro com Paula, e que a ama com mais intensidade, mas que precisa desse tempo seu.

 

Marianne ainda busca argumentar em favor de uma nova tentativa na relação, mas sem sucesso. Ela reconhece que pode ter errado todo o tempo, mas que ainda acredita num reatamento em novas bases. Pede a ele para adiar a viagem por alguns meses e sublinha que os dois poderiam na sequência encontrar um novo modo de reparar o casamento e uma forma diversa para a vida sexual.

 

Depois de toda a conversa, regada a dor, os dois se deitam na cama de casal e ficam ali silenciosos e mudos. Ela ainda busca informações sobre Paula, de como ela é e qual a sua idade e de como ela reage na cama. Está angustiada. Ele não deixa de revelar dados sobre a vida da nova amante. Marianne e Johan fazem amor ao raiar do dia, olhando um para o outro “com carinho e angústia”. Permanecem ali, juntos, “mudos, nus, estranhos um para o outro.

 

Johan finalmente a deixa “com suas aflições” logo após o café da manhã. E “sem que Marianne o queira, as lágrimas começam de repente a correr-lhe pelo rosto, mas ela funga, assoa o nariz e recompõe-se”. Desesperada, ela liga para um amigo comum, Fredrik, para relatar o acontecido, e se surpreende ao saber que ele e outros amigos já estavam a par da situação.

 

Depois de um ano sem se verem, os dois amigos voltaram a se encontrar. Johan buscava conviver com Paula na nova situação, mas enfrentado agora dificuldades precisas e um ciúme crescente por parte dela. No início as coisas estavam melhores, e Paula teve um papel importante como companheira de Johan, trazendo alegria e carinho para a sua vida. No momento em que encontra com Marianne, Johan já demonstra viver com dificuldades na outra relação. Por sua vez, Marianne já dava sinais de recuperação na sua vida pessoal. 

 

Os dois se encontram, e reconhecem a existência de um grande carinho mútuo. Eles se abraçam e se beijam com alegria e ternura. Johan relata que tinha conseguido um contrato de três meses numa universidade americana, mas que iria viajar sem a Paula. Durante o encontro, Marianne retoma a conversa sobre o divórcio, mas Johan desconversa. Ela lamenta o fato dos dois terem se separado, e deixado de lado o carinho que era tão importante para eles. Johan reage sinalizando com clareza para Marianne que o que existe na base de qualquer relação é uma “solidão absoluta”. Reitera o fato de que ninguém consegue quebrar essa barreira, e que em verdade a coexistência equilibrada é uma miragem. Por mais que se busquem palavras, elas não servem senão para esconjurar um grande vazio.

 

Mesmo com toda a distância, que reverbera na relação com as filhas, Marianne demonstra acreditar no grande carinho que tem por Johan. Revela que sempre se lembra dele, todos os dias e várias vezes por dia. Continua a manifestar surpresa com uma separação que não estava em seu horizonte. Era um traço bonito de amor que escapou pelas mãos. Em resposta, Johan diz a ela que seria oportuno ela buscar ajuda com um psiquiatra. E ela responde dizendo que vem sendo atendida duas vezes por semana, em conversas que vão além das que ocorrem no consultório.

 

Na verdade, Johan não consegue escamotear o carinho que sente por Marianne, que é também um tesão criativo. Mas quando na ocasião ele busca uma aproximação,  visando colocar sua mão em seu peito, Marianne, delicadamente, desvia-se e evita o contato mais íntimo. Revela, porém, a ele que não consegue entender sua vida e a das crianças com outro homem. Sente-se atrelada a um vínculo profundo com Johan, que não consegue entender. Diz a ele que os outros homens a aborrecem. Na sequência, os dois se beijam, sem se arrojarem em carinhos mais íntimos. Os dois passam a noite juntos, com o sentimento comum da beleza de estarem juntos, ainda que simplesmente dando as mãos. Ela revela a ele que a separação foi um golpe muito duro, e que gostaria de ter ficado “terrivelmente zangada com ele”. Mas como ocorre com os suecos, ela ponderou as reações. E diz: “Quando você me deixou, eu tinha apenas um pensamento na cabeça: eu queria morrer. Fiquei andando às voltas naquela manhã, e estava justamente amanhecendo, e só pensava: não vou sobreviver”.

 

Marianne conseguiu sobreviver à crise e foi aos poucos se recompondo e retomando a vida. Encontrou outros homens pelo caminho, mas deles se cansou, até que encontrou Davi, alguém que se mostrou diferente, carinhoso e atencioso  com as meninas. Disse a Johan que não sabia se era ele, David, que respondia às demandas de seu afeto. Diferentemente da visão de Johan, Marianne não acreditava numa vida solitária, mas queria alguém a seu lado, e intuía que essa pessoa não era Davi. E se lamenta com Johan: “Eu não entendo como você vai poder aguentar o mundo sem mim (...). A gente não pode viver só e ser forte. A gente precisa ter alguém a quem segurar a mão”. E retoma sua vontade de reatar com Johan: “Acho que você deveria se esforçar como um louco para reparar o nosso casamento”. Johan reconhece que gosta de Marianne e se indaga sobre o que há de errado em sua vida. Sublinha também que sente “saudades terríveis”. Em resposta, Marianne diz que os dois poderiam simplesmente ficar ali, “deitados juntos, segurando a mão um do outro”.

 

No penúltimo episódio, ocorre a explosão da violência entre os dois. É quando se firma para eles a vontade de assinar o divórcio. Os dois se encontram num local de trabalho, já com os papeis na mesa para serem assinados. Ela insiste com ele para assinar antes de partir para América. Não sabe ainda que a viagem não iria vingar. Não assinam de imediato, reconhecendo a dificuldade de colocar um fim na relação. Marianne revela então a Johan que começa a sentir-se livre, com um sentimento novo de felicidade. Indica, porém, que os dois anda têm uma noite para beber e amar. Johan confidencia a ela que ainda se sente ligado a ela de uma forma muito profunda e inexplicável. 

 

Num impulso amoroso, Marianne chega a pensar em rasgar todos os papeis que estão sobre a mesa. Foi apenas um impulso. Tomados por um grande estranhamento os dois entram em conflito corporal violento, que deixou marcas de sangue no tapete. São cenas tremendas! Ambos queriam destruir-se mutuamente. Acabam esgotados e tristes... Ela, imóvel, com o corpo recolhido de dor.  Johan então toma a iniciativa de assinar os papéis, num gesto que foi acompanhado por Marianne. Já ao final do encontro, Marianne ainda diz para ele: “Devíamos ter começado a bater um no outro há muito tempo. Teria sido muito melhor”. E quem sabe...

 

Apesar da virulência do conflito que marcou o último encontro dos dois, eles ainda voltam a se encontrar mais tarde. Vivem então um momento diverso, como se inaugurassem uma nova forma de ser, agora mais serenos e maduros. Os dois estavam bem nas suas respectivas relações. Ressurgiam agora, como das cinzas anteriores, com um clamor de vida alternativo. Johan estava diferente, sem a barba e de óculos. Revela a Marianne que vivia então o casamento como uma “comodidade” que era recíproca. Marianne também convivia bem com seu novo par, Henrik. 

 

Eles aproveitaram uma viagem de seus cônjuges para marcar um novo encontro. Os dois estavam ansiosos para reverem-se com alegria. Estariam fazendo, naquele mesmo mês de agosto, 20 anos de casados. O encontro tinha sido marcado na casa de campo de Marianne, mas o plano foi alterado, depois que Johan pediu a um amigo próximo para emprestar sua casinha que ficava junto à praia. Foi ali, naquele lugar distante, que os dois se encontraram novamente. A casa estava meio revirada, e os dois juntos se ajudaram para colocar tudo em ordem e montar o ninho do encontro.

 

Num momento de grande beleza, os dois estão ali, “no meio da noite, numa casa escura em algum lugar do mundo”. A emoção toma conta dos dois e ela o acolhe com grande sentimento e lágrimas nos olhos. Depois de tanto tempo, Marianne dá razão a Johan, concordando com a sua visão sombria sobre o mundo. Reconhece a presença dolorosa de um estado geral de inquietação entre as pessoas, e que é contagiante. Revela que de fato as pessoas andam “escorregando para baixo”, tomadas pelo medo, insegurança e incompreensão.

 

Naquele momento, porém, eles “esquecem” a dor e buscam viver a intensidade do instante, em clima de grande intimidade, aconchego e excitação. Os dois se tratam de forma linda e enamorada. Ele diz: “Meu amor, minha adorada Marianne”. E ela: “Meu querido e adorado Johan”. Apenas isso!

 

Marianne revela mais uma vez que jamais conseguiu amar alguém da forma como gostaria, e nem sentiu-se amada como desejava. Johan responde de forma curta, simples e realista: “Eu acho que a amo à minha maneira, restrita e bastante egoísta. E, à vezes, acho que você me ama à sua maneira, briguenta e fria”. E acrescenta: “Eu acho, pura e simplesmente, que você e eu nos amamos um ao outro. De uma maneira terrena e restrita”. 

 

Nada mais delicado e simples de entender, bem ao modo Zen, o que significa amar nas condições de contingência do humano. Por fim, Johan complementa o seu argumento: “É assim, com toda a simplicidade, no meio da noite, numa casa escura, em alguma parte do mundo, que eu existo, realmente, e a conservo nos braços. E você me conserva nos seus. Eu não posso afirmar que sinto qualquer espécie de elevação ou de sentimento de humanidade”.

 

Trata-se, como imagino, de um bonito amor terrenal, marcado pelos limites do tempo e pelos enigmas de cada um, num mistério profundo que ninguém consegue penetrar com agudez. Toda relação vem pontuada por enigmas e interrogações, que jamais serão complementadas e realizadas. O que importa é abraçar com alegria o momento e o instante, sem deixar escapar sua luz e reverberação. Ou, como diz de forma tão linda Rilke, nas Elegias de Duíno, poder “contemplar um dia, somente um dia o espaço puro, onde, sem cessar, as flores desabrocham”.

Os desencontros da igreja católica com as outras religiões

 Os desencontros da igreja católica com as outras religiões


Faustino Teixeira

IHU


Nós, da teologia latino-americana, sempre tivemos um carinho especial com a exortação apostólica "Evangelii nuntiandi", sobre a evangelização no mundo contemporâneo. Ontem, 22/03/2023, em sua Audiência Geral, o papa Francisco celebrou com alegria esse acontecimento:
"Hoje coloquemo-nos à escuta da “magna carta” da evangelização no mundo contemporâneo: a Exortação apostólica Evangelii nuntiandi, de São Paulo VI (EN, 8 de dezembro de 1975).
É atual, foi escrita em 1975, mas é como se tivesse sido escrita ontem. A evangelização é mais do que uma simples transmissão doutrinal e moral.
É em primeiro lugar testemunho: não se pode evangelizar sem testemunho; testemunho do encontro pessoal com Jesus Cristo, Verbo encarnado no qual a salvação se completou. Um testemunho indispensável porque, antes de mais nada, o mundo precisa de «evangelizadores que lhe falem de um Deus que eles conheçam e lhes seja familiar» (EN, 76).
Não significa transmitir uma ideologia nem uma “doutrina” sobre Deus, não! Significa transmitir Deus, que se torna vida em mim: nisto consiste o testemunho; e também porque «o homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres [...] ou então se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas» (ibid., 41).
Portanto, o testemunho de Cristo é o primeiro meio de evangelização (cf. ibid.) e, ao mesmo tempo, condição essencial para a sua eficácia (cf. ibid., 76), a fim de que o anúncio do Evangelho seja fecundo. Ser testemunha! (...)"
Como teólogo que trabalho o tema do diálogo com as religiões não posso, porém, deixar de mencionar a infeliz reflexão de Paulo VI nessa exortação sobre as religiões não-cristãs. A crítica que faço é a mesma realizada por Jacques Dupuis em seu clássico livro: Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. Dupuis lamenta que esta exortação desenvolveu "uma avaliação bastante negativa" das outras religiões.
Paulo VI reconhece o valor das outras religiões, e sublinha que a igreja católica as respeita e estima. Mas sua visão mantém-se refém da teoria do acabamento, ou seja, a ideia de que as outras religiões vêm animadas pelo desejo do Mistério e que o cristianismo favorece o remate da realização. Para Paulo VI as outras religiões traduzem simplesmente o "o eco de milênios de procura de Deus, procura incompleta, mas muitas vezes efetuada com sinceridade e retidão de coração". Elas traduzem simplesmente uma "preparação evangélica", que é a linguagem utilizada pelo padre da igreja, Justino. Numa visão tipicamente tradicional e desatualizada, Paulo VI identifica as outras religiões como "expressões religiosas naturais" e não sobrenaturais. Como se fossem unicamente "braços estendidos aos céus". Como braços estendidos, manifestariam apenas o desejo do divino, que seria complementado pela missão cristã. De forma bem infeliz, Paulo VI sublinha que somente a religião cristã "instaura efetivamente uma relação autêntica e viva com Deus, que as outras religiões não conseguem estabelecer". O máximo que realizam, é "estender seus braços" para o Mistério Maior, que só vem de fato acolhido no cristianismo.
Duro de roer... Trata-se de uma visão bem fechada, que será retomada com ainda mais violência na Declaração Dominus Iesus, que dirá mais tarde, em agosto de 2000:
"Não há dúvida que as diversas tradições religiosas contêm e oferecem elementos de religiosidade, que procedem de Deus"
A declaração reconhece um valor às outras religiões mas não aceita que tenham "a origem divina". Não são, portanto, religiões reveladas. O documento ratzingeriano entende que os adeptos das outras religiões (e não as religiões em si) "podem receber a graça divina", mas objetivamente encontram-se "numa situação gravemente deficitária, se comparada com a daqueles que na Igreja têm a plenitude dos meios de salvação".
E vamos dormir com um barulho desses!!!
Infelizmente, essa é a visão que predomina ainda hoje na igreja católica. Mesmo o papa Francisco evita de tratar o tema de forma direta, em razão da pressão que a Dominus Iesus ainda exerce sobre as mentalidades. Os exemplos mais claros encontramos nos dois recentes livros de autoridades da igreja católica: Nada mais que a verdade (Georg Ganswein) e Em boa fé (Gerhard Muller). Nos dois livros, são tecidos enormes elogios à Dominus Iesus. Para o cardeal Muller, ex-prefeito do Santo Ofício, essa declaração é "um documento magisterial de alto valor", e expressa "o que para os cristãos é a verdade absoluta".

Uma fresta de luz no romance São Bernardo de Graciliano Ramos

Uma fresta de luz no romance São Bernardo de Graciliano Ramos

 

Faustino Teixeira

 

Nesse primeiro semestre de 2022 estou ministrando um curso sobre os romances e contos de Graciliano Ramos. As aulas acontecem on-line no Instituto Humanitas (IHU) da Unisinos. O curso ainda está em seu início, e o primeiro livro abordado foi São Bernardo.

 

Um dos grandes estudiosos de Graciliano, também conhecido como Graça, foi Antonio Candido, que elaborou uma das mais singelas apresentações de uma das edições das obras completas do escritor, que resultou no ensaio Ficção e Confissão. Em seu texto, Cândido relata a história de Paulo Honório, um personagem que marcou sua vida pela imperiosa vontade de ambição a todo custo, voltado a ser um impiedoso fazendeiro. Talvez seja um dos livros mais duros de Graciliano, pois tudo ali é “seco, bruto e cortante”.

 

No cerne da história, o processo de reificação de Paulo Honório, que não vê diante de si senão a imperiosa vontade de transformar tudo o que o rodeia em coisas rentáveis. É alguém incapaz de perceber a beleza da natureza, pois tudo o que repara são as coisas que lhe podem parecer rendosas. Quem também elaborou um quadro vivo desse personagem foi Luis Costa Lima, em seu ensaio sobre a reificação de Paulo Honório. Segundo Costa Lima, será esse mundo quantificado “que o esmagará”. A reificação se expressa em seu próprio corpo, sobretudo nas suas mãos enormes e endurecidas, incapazes de qualquer gesto de sensibilidade ou gratuidade.

 

O personagem diz ao final do livro:

 

“Foi esse modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.”

 

Ao final de um trajeto de vida onde o personagem acaba solitário em sua fazenda decaída, ele busca refletir sobre os cinquenta anos de sua vida, descascando fatos na mesa da sala de jantar, com seu cachimbo, à luz de uma vela que vai se desfazendo. Ele reflete:

 

“Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para que! Comer e dormir como um porco! Como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurado comida! E depois guardar comida para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo?”

 

Paulo Honório foi se desfazendo, aniquilando-se, nesse processo sem retorno de reificação. Ele se dá conta, depois de tudo que desfez, que seus cinquenta anos de vida foram desperdiçados, “gastos sem objetivo”, num ritmo de vida que aconteceu maltratando os outros e a si mesmo, num processo de despersonalização violento. Como ele mesmo reconhece: “O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada”.

 

A reificação é tamanha que ele se dá conta de que não pode mais retroceder. Essa consciência de dor se aguça depois do suicídio de sua mulher, Madalena, a única pessoa em sua vida que não conseguiu transformar em coisa. Ele chega a aventar a hipótese de um recomeço, se isso fosse possível, mas se dá conta que o estrago já tinha sido feito. E revela:

 

 “Não consigo modificar-me, é o que me aflige”. A dureza penetrou seus órgãos mais íntimos e obstruiu o coração. Agora, com tudo perdido, torna-se incapaz de qualquer gesto de sensibilidade. Não é capaz nem mesmo de se tocar pelo choro do filho: “Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que miséria!”

 

A dor da perda de Madalena, que veio para São Bernardo com intenções humanitárias, e fracassou, provoca os sentimentos de Paulo Honório. Ele reconhece que sua mulher veio para a fazenda “cheia de bons sentimentos”, mas seu projeto de amor esbarrou em sua brutalidade e egoísmo, obstaculizando qualquer possibilidade de transformação.

 

Paulo Honório, porém, reconhece que nem sempre foi assim, egoísta e brutal, mas o seu modo de vida é que o transformou numa coisa insensível e desumana. Ele reconhece que foi a sua profissão que provocou a deteriorização de suas qualidades. 

 

No pequeno grupo de debate que ocorre ao final das aulas veio uma pequena luz, que aqueceu o coração de todos nós que discutíamos o livro. Depois de alguns depoimentos sobre o livro entre os que participavam do debate,  a impressão era de um horizonte sombrio e fechado, que apenas refletia o caminho realista escolhido por Graciliano para narrar a decadência de Paulo Honório.

 

Eis que uma das participantes, a professora Mércia Maria, acenou para a presença da velha Margarida, outra personagem do romance. Ela favorecia o feixe de luz do romance, a “brecha” que todos aguardavam. Margarida era uma pessoa excluída, que vivia duramente com seus parcos recursos em Jacaré-dos-Homens. 

 

Paulo Honório teve, ao início do romance, a ideia de trazê-la para São Bernardo. Ela tinha cuidado dele quando criança. E isto ocorreu. Ela veio alojada “numa casinha cercada de bananeiras”. Seu modo de vida era bem diverso, marcado por simplicidade, restringindo-se a seus parcos recursos. Em São Bernardo veio acolhida com carinho, e Madalena não lhe deixava faltar nada. Era uma pessoa muito simples e não necessitava de muito para viver: “Só preciso uma esteira. Uma esteira e o fogo”. Recusava qualquer luxo. Seus únicos pedidos foram um pote e um tacho, para o fogo amigo nas noites mais frias. E Paulo Honório recupera para ela o velho tacho onde fazia os deliciosos doces na pequena casa onde ele vivia no passado.

 

Ao final do livro, Paulo Honório recorda o início da sua vida: “Fui guia de cego, vendedor de doce e trabalhador alugado”. Veio de uma vida simples, como a de Margarida. Com seus “farrapos de conhecimento” lembra-se agora novamente de Margarida, e lembrando-se dela julga que desnorteou “numa errada”. Se tivesse trilhado outro caminho, da simplicidade e humildade, o horizonte podia ser diverso. 

 

E então sublinha: “Se houvesse continuado a arear o tacho de cobre da velha Margarida, eu e ela teríamos uma existência quieta. Falaríamos pouco, pensaríamos pouco, e à noite, na esteira, depois do café com rapadura, rezaríamos rezas africanas, na graça de Deus”.

 

Essa é uma página de exceção no livro São Bernardo, ali no capítulo 36, onde Paulo Honório fala de um caminho que podia ser diverso, e que, certamente, proporcionaria a ele mais alegria no coração. É o que os místicos sempre nos alertam nas páginas de suas criações maravilhosas: a possibilidade de uma vida de “baixa definição”, onde as “transações são raras ou nem sequer existem”, como diz com acerto Thomas Merton. 

 

A vida na simplicidade é um desfio fundamental para aqueles que buscam um caminho diferente, longe do risco da reificação. Viver a vida, simplesmente, sem maiores presunções, com atenção singela ao ritmo do real. Merton falava desse caminho com brilho nos olhos, e o pode realizar na sua experiência como eremita, ao final da vida. Sua meta era sintonizar-se com o ponto virginal, que está “no centro de todos os demais amores”. 

 

Disse que se casou com “o silêncio da floresta”, e animado por ele pode ver o outro lado das coisas. Como fruto de sua experiência, sublinhou que o mais importante na vida não é deixar-se tomar pela vontade de poder ou pela pressa, mas pela atenção aos pequenos detalhes do cotidiano, aqueles que são os decisivos. Dizia não ser necessário processos complexos de concentração, mas simplesmente “estar presente” no tempo, atendo às surpresas do Mistério.

quarta-feira, 22 de março de 2023

Vandré e seu "duplo desembarque" no Brasil em 1973

 Vandré e seu “duplo desembarque” no Brasil em 1973


Faustino Teixeira

 

Por sugestão da leitura do livro de Dalva Silveira sobre Geraldo Vandré (A vida não se resume a festivais – 2011), fui ler o artigo de Maria Rita Kehl, publicado no livro: Anos 70 – Televisão (Edição Europa, 1979-1980). Dalva tinha indicado essa leitura para poder entender o momento em que vivia a sociedade brasileira em 1973, quando Geraldo Vandré retornou ao Brasil, depois do exílio. 

 

A polêmica maior em torno da volta de Vandré relaciona-se com “o duplo desembarque” do compositor ao Brasil. As pessoas em geral imaginam que ele chegou ao Brasil em 18 de agosto de 1973, e em seguida deu seu trágico depoimento no Jornal Nacional. 

 

Na verdade, Vandré já tinha desembarcado no Brasil um mês antes, em julho de 1973, tendo sido imediatamente preso. Ele ficou, assim, 33 dias recolhido e incomunicável no I Exército do Rio de Janeiro e também na carceragem da Polícia Federal em Brasília. Só depois veio o depoimento no Jornal Nacional.

 

Em seu artigo sobre a televisão no Brasil na década de 1970, Maria Rita Kehl destaca o ano de 1973. Por força das imagens da TV, e das mensagens repassadas, a imagem que se passava do Brasil era a de “um novo tempo”, celebrado pelos atores da Globo naquela tradicional mensagem de fim de ano, que até hoje vem ocorrendo.

 

A TV buscava transmitir para todos a imagem de um novo Brasil, de um Brasil Grande, que atravessava com garbo suas crises econômicas. Foi em 1973 que, segundo Kehl, firmou-se o “Padrão Globo de Qualidade”, e que coincidiu com a chegada da TV a cores no Brasil. E aqui cito Kehl:

 

“A opulência visual eletrônica criada pela emissora contribuiu para apagar definitivamente do imaginário brasileiro a ideia da miséria, de atraso econômico e cultural; e essa imagem glamourizada, luxuosa ou na pior das hip

óteses antisséptica (quando é imprescindível mostrar a pobreza convém ao menos desinfetá-la: em vez de classes miseráveis, um povo ´humilde mais decente` para não chocar ninguém) contaminou a linguagem visual de todos os setores da produção cultural e artística que se propõem a atingir o grande público”.

 

sexta-feira, 10 de março de 2023

Passos da Mística de Gregório de Nissa

 Passos da Mística de Gregório de Nissa (sec IV)

 

Faustino Teixeira

UFJF / IHU



Ontem, 09/03/2023, celebramos no catolicismo a festa litúrgica que homenageia o grande místico capadócio, Gregório de Nissa, um dos luminares do século IV. Como estudioso da mística tive ele sempre por perto, em razão de todas as inspirações que ele provocou na minha reflexão pessoal. Pontuo aqui em particular dois tópicos fundamentais de sua  reflexão mística:

1. A Presença de Deus. Para Gregório, Deus se faz presente na criação através de seu aroma, de seu perfume. Numa de suas homilias sobre o Cântico dos Cânticos, o místico capadócio sublinha que a potência de Deus é inacessível. Dele temos apenas vislumbre de seu “perfume difuso”, que se expande em toda a criação. De Deus acessamos somente esse “mísero”, seu precioso perfume. 

A nós cabe sensibilidade para seguir seus rastros através de nossa percepção aromática das coisas do mundo. Deus, em verdade, está acima de todos os nomes e narrativas. É o nosso tato, que capta sua maravilha no tempo, que fornece a base para a nossa incursão teológica. 

Acessamos, assim, Deus mediante suas “operações” que se deixam captar no tempo. Sublinha o capadócio que nosso conhecimento do Mistério é exíguo e remoto, mas precioso. Em síntese, não podemos falar de Deus a partir de sua essência, mas a partir dos traços enigmáticos de seu agir na criação. Daí a essencial distinção que o Capadócio opera entre ousia-energeia. Como diz Pseudo-Dionísio Areopagita em sua Teologia Mística, o Moisés contempla não é Deus, mas o lugar onde Ele está.

Mesmo quando falamos que Deus é Misericordioso, não é dele que falamos, no sentido de captar algo de sua essência, mas o que dele se irradia para nós em seu aroma presente na criação. Foi o que falou também Mestre Eckhart no Sermão Alemão de número 83, em torno de uma reflexão sobre Efésios (Ef 4,23). Diz Eckhart: “Ninguém pode dizer nem compreender nada de Deus”. 

O mesmo o ocorre quando falamos que ele é “bom” ou “melhor”. Não é dele que falamos. Tudo isso é expressão dos nomes que conferimos em nossa limitação a ele. É também incorreto dizer que Deus é “um ser”, pois o que o adorna é uma “nadidade sobreessencial”. Por isso Eckhart serve-se de Agostinho para nos advertir quanto ao risco de “tagarelar” sobre Deus. Diante dele, o que me melhor ocorre é o silêncio reverencial.

O que captamos de Deus são simplesmente traços contingentes de sua “atividade” no mundo. Para Gregório, mesmo o Filho participa da contingência, ou como diz Rahner, ele participa da “bem aventurada ignorância de Deus”. O Filho, segundo o capadócio, é “absolutamente contingente com respeito à vontade do Pai”. O grande exegeta jesuíta, Xavier Leon-Dufour, que tanto influenciou o meu orientador, Jacques Dupuis, sublinha que no evangelho de João Jesus jamais diz explicitamente que é Deus, nem diz também diretamente que era Filho de Deus, ou o Messias. Jesus preserva Deus num grande mistério, não querendo em hipótese alguma encerrar o Mistério de Deus numa fórmula.

2. A sede de Deus. Para Gregório de Nissa, o ser humano está sempre em busca do Mistério e nunca esgota a sua realidade. Ele pode até se aproximar, em momentos de grande êxtase, mas o Mistério permanece sempre resguardado. A bonita expressão que o capadócio expressar para falar sobre essa sede é epektasis. Em sua homilia 10, Gregório de Nissa diz que todos nós somos “ébrios” do Mistério. 

Moisés gozou da experiência de proximidade de Deus, chegou “próximo” de sua luz, mas ainda esteve aprisionado pela névoa e penumbra do Mistério. Na homilia 2, o capadócio fala da epektasis, da sede que não tem fim. Ele diz ali:

“Quando mais abundantemente somos tomados pela beleza de Deus, tanto mais forte a ardência do desejo”. 

É o que também dizia João da Cruz num de seus mais lindos poemas, "Entrei onde não sabia". João da Cruz sublinha que todo buscador que chega na proximidade do Mistério, desfalece; quando mais ousa avançar em sua direção, mais recua em seu entendimento. E igualmente Dionísio Areopagita em sua Teologia Mística: “Quanto mais olhamos para cima, mais os discursos se contraem”.