Neblinas na igreja católica
Faustino Teixeira
Avaliando com um pouco mais de calma a conjuntura do catolicismo romano nesse difícil momento histórico, confesso que sou tomado por pasmo e preocupação.
Passado esse período que se seguiu à morte do papa Ratzinger, e lendo diversos artigos que foram publicados nesse período, dou-me conta que estamos vivendo uma crise muito grave, que envolve o horizonte de um projeto eclesial, tentado levar adiante pelo papa Francisco.
Muitas coisas foram ditas sobre o Ratzinger, algumas interessantes e válidas. Impressionou-me o fato de em muitos artigos que li, situou-se o gesto de renúncia dele no pontificado como o grande legado que ele deixa para o mundo. A meu ver, concordando com um amigo com que acabo de conversar, o que ele deixa como legado, de fato, é ter sido um inquisidor, que puniu gravemente um enorme contingente de teólogos ou pastoralistas. Esse é o legado que fica para mim.
O que percebi em artigos nacionais e estrangeiros, em análises de teólogos, pastoralistas, bispos, cardeais e vaticanistas, é que a sintonia com o projeto-Francisco está muito frágil.
O clima deixado pelos "lobos", para utilizar uma expressão de Marco Politi, ainda é muito firme e contagioso. As malhas de um catolicismo conservador estão bem asseguradas, depois de quatro décadas dos pontificados de Wojtilla e Ratzinger.
Uma boa parte do clero, um número impressionante de novos padres, e segmentos significativos de leigos, ficam bem mais confortados num horizonte eclesiástico tradicional. Basta ver os alunos nos institutos teológicos, de toda parte, e seu enraizamento num catolicismo conservador.
Os artigos que foram feitos depois da morte de Ratzinger mostram claramente o "fio delicado" que envolve um compromisso mais efetivo com a dinâmica evangelizadora de Francisco.
Confesso a vocês que ando meio sem esperança numa renovação eclesial. Aquele nosso precioso compromisso com uma Igreja que a gente acredita, vai se pulverizando num terreno de escândalos abafados e resistências cada vez mais precisas contra um catolicismo libertador.
A utilização indevida do nome de Deus por católicos tradicionalistas, empenhados na defesa do governo Bolsonaro, causou-me indignação e dor. A estética das arminhas em ambientes eclesiásticos foi uma vida demonstração do encaminhamento desejado por muitos. Os episódios recentes em Brasília foram expressão de sua continuidade...
Essa lamentável situação ocorre também no cenário de igrejas irmãs, como a luterana, que igualmente se viu cindida por posicionamentos adversos com respeito ao apoio a Bolsonaro. A recente e contundente carta aberta de Walter Altmann, um de nossos melhores teólogos no Brasil, dirigida a um pastor bolsonarista é exemplo vivo do que está ocorrendo também em âmbito evangélico.
O que mais me irrita, confesso, é o silêncio que se impõe, com raras e nobres exceções, como no caso de Dom Moll e alguns outros, visualizando um costume bem naturalizado entre católicos de preferir o silêncio ao sadio profetismo.
Não são poucos os amigos, e gente maravilhosa, que me procuram e manifestam sua descrença no catolicismo que está aí; o seu cansaço com o clericalismo e a revolta com tudo o que vem sendo abafado num mundo que parece estar em "decomposição". Talvez essa seja uma palavra forte, mas é a que vem em minha mente, com tristeza.
Em seu recente livro, "Vers l' implosion" (2022), a socióloga francesa, Danielle Hervieu-Léger - entrevistada por Jean-Louis Schlegel -, trata de uma série de questões que nos preocupam: os vacilos presentes numa igreja em processo de "implosão"; de um catolicismo exculturado; de uma igreja bloqueada; de um clericalismo crescente, que ela identifica como auto-imune.
Ao final lança algumas perspectivas de futuro, mas bem tímidas... Grande questão levantada por ela ao final do livro: Como permanecer católico. Avança na ideia, quem sabe, de um catolicismo de diáspora e dispersão.
Cito um trecho do livro: "A crise de abusos sexuais e espirituais revelados depois de cerca trinta anos, faz vacilar a Igreja Católica. A crise vem do interior do catolicismo, e mesmo de seus ´melhores servidores`, padres ou leigos, mas também porque ela é universal e sistêmica. Muito debilitada por uma intensa secularização em razão das mudanças societárias da segunda metade do século XX. Por falta de reformas consequentes, a Igreja aparece cada vez mais expulsa da cultura comum, e deslegitimizada".
Lendo com calma o artigo de Marco Politi, um dos mais lúcidos vaticanistas, sobre a "guerra dentro da Igreja" (Il Fatto Quotidiano), minhas preocupações acumulam-se mais.
Ele fala da "frente conservadora-tradicionalista" que vem se mobilizando contra Francisco, e que agora com a morte do bispo emérito de Roma tende a se agravar: "Petições foram lançadas contra Francisco, cardeais de alto nível questionaram publicamente suas posições teológicas, conferências convocadas a poucos passos do Vaticano falaram de suas ´teses heréticas`, um arcebispo-núncio exigiu perante a opinião pública mundial que Bergoglio deixou o papal trono!".
Falando do governo do papa anterior, Politi sublinha que o pontífice alemão foi um "incansável produtor de uma guerra cultural contra a modernidade em nome de ´princípios inegociáveis`".
E agora, num cenário modificado, depois de sua morte, o que estamos presenciando, diz Politi, são inúmeros ataques doutrinários contra Francisco, movidos por grupos de cardeais e bispos em manobras no mínimo muito estranhas. O fato mais recente, também lamentável, foi a publicação do livro de Ganswein, fiel escudeiro de Ratzinger.
O grosso da batalha, continua Politi, está por vir, com o Sínodo Mundial a ser realizado em Roma em 2024. Ali estará em jogo, também não tenho dúvida, "o próximo conclave que a feroz frente conservadora - fortalecida pelos temores dos moderados - pretende predeterminar."
Há que ter esperança, não tenho dúvida, mas está difícil!!!